Infohabitar, Ano XIV, n.º
632
Artigo da Série “Habitar e Viver Melhor” n.º CV
Microfunções e microespaços domésticos: uma abordagem geral
por António Baptista Coelho
Uma nova microfuncionalidade doméstica
Quando se colocam em causa “regras” domésticas árida
e cegamente funcionalistas e rigidamente hierarquizadas, num tempo marcado por
tanta diversidade nos modos e desejos e necessidades habitacionais e por
tantas novidades tecnológicas aplicáveis ao espaço doméstico, estamos,
provavelmente, também em tempo de fazer “descer” a estruturação funcional da
habitação das grandes funções (ex., dormir, estar, cozinhar, tomar refeições)
para uma densa e muito variada rede de microfunções aplicáveis a um espaço
doméstico e de trabalho, pessoal e familiar, que assim se definirá, muito
positivamente, em termos da harmonização entre essenciais aspectos funcionais e
igualmente essenciais aspectos de identidade e apropriação domésticas, numa
nova mistura formal e funcional, que, sendo bem desenvolvida, enriquecerá a
experiência da respectiva vida diária e poderá, até, incrementar o valor global
desse espaço doméstico, que passa a ser um espaço positivamente caracterizado e
expressivamente “único”.
“Novos casulos” domésticos
Generalizando, podemos considerar que haverá algumas
acções domésticas que poderão “libertar-se” das respectivas e mais correntes
“prisões” espaciais e funcionais, reconvertendo-se em termos da sua
caracterização própria e dos seu relacionamentos mútuos mais correntes em
microfunções associáveis a pequenos espaços tendencialmente agregáveis em
alguns espaços maiores (ex. “clássico”, recanto de preparação de refeições
associável a grande cozinha multifuncional ou a sala-comum). E será
interessante, embora não seja aqui feito, imaginar uma rede de microfunções
disseminadas na habitação, embora se alerte para um reviver de uma nova
rigidez, agora microfuncional, que provavelmente poderá ser bem combatida por
uma reflexão sobre as relações microfuncionais que se considerem específica e
mutuamente incompatíveis, designadamente, por questões associadas a aspectos de
segurança e de sanidade.
Desta forma o novo habitar, aqui mais confinado à
escala doméstica e privativa, poderá caracterizar-se, seja por uma
relativamente habitual estrutura espacial, marcada por espaços conhecidos e aos
quais atribuímos usos correntes e habituais, seja por uma outra camada de
dispositivos espaciais e funcionais e/ou de virtualidades espaciais e
funcionais que irão associar-se, diversamente e até inesperada ou
inusitadamente àquela estrutura espacio-funcional mais “clássica”,
reconvertendo-a em soluções domésticas extremamente marcadas por gostos,
desejos e até “manias” ou idiossincrasias que, afinal, irão transformar um
espaço antes impessoal numa verdadeira e própria casca de caracol bem à medida
das nossas necessidades pessoais mais íntimas e dos nossos sonhos: uma casca de
caracol que caracteriza bem o que também poderemos referir como “novos casulos”
domésticos.
Naturalmente que uma tal opção “espacio-funcional-formal-caracterizadora” obrigará a um espaço doméstico bem marcado por uma ampla adaptabilidade, mas desde que esta função de adaptabilidade doméstica possa exercer-se sem influenciar potencial e significativamente a saúde e o bem-estar dos habitantes, num caminho que parece poder ser extremamente positivo e enriquecedor por proporcionar casas muito mais ligadas à identidade e ao gosto de cada um; mas atenção que esta perspectiva parece influenciar, mais fortemente, as habitações com menor número de quartos, e, portanto, mais ligadas a uma ocupação humana mais reduzida.
Seguem-se pequenos textos de comentário breves sobre
alguns micoespaços domésticos tendencialmente privativos e diferenciados, que
podem marcar e enriquecer funcional e espacialmente os espaços comuns
domésticos – proporcionando-se estar razoavelmente “sozinho/à parte”, mas
potencialmente em companhia. Mas salienta-se que, de nenhuma forma, os espaços
em seguida apontados esgotam o amplo e rico leque potencial de microespaços
domésticos, um leque que foi, aliás, extensamente abordado, já há muitos anos,
na magistral “Linguagem de Padrões” de Alexander et. Al – uma obra que é sempre
importante revisitar.
Alcovas
Uma alcova ou recanto de dormir/repousar pode integrar-se bem num espaço amplo com características potencialmente conviviais, proporcionando quer o maior desafogo no convívio, quer a possibilidade de se realizar uma actividade individualizada, mas numa situação de companhia mútua, o que pode ser muito apreciado por pessoas que, por exemplo, tenham dificuldade de concentração quando isoladas; e na prática corresponde, sempre, a uma positiva alternativa para desenvolvimento das mais diversas actividades, para além de enriquecer espacialmente o espaço maior onde se integra.
Regulamentarmente impossíveis ou, pelo menos, bastante difíceis as alcovas podem ter inúmeras apropriações, para além de serem os espaços/cama que as caracterizam, sendo possível integrarem pequenos e intimistas espaços de trabalho e/ou lazer pessoal, grandes “recantos” estratégicos para a arrumação e exposição de colecções, recantos de leitura bem povoados por livros e quadros nas paredes, etc.
Trata-se, aqui, de uma matéria doméstica e
arquitectónica de grande importância histórica e que pode e deve ter um
adequado reaproveitamento numa urgente revisão dos aspectos exigenciais que
devem estruturar a concepção habitacional, visando-se, designadamente, a
geração de soluções mais diversificadas, adaptáveis e versáteis a diversos
modos de habitar e à respectiva mutação de gostos e necessidades habitacionais.
Vestíbulo ou corredor pessoal
Caso os espaços de vestíbulo ou corredor que sirvam
determinados espaços domésticos mais privados sejam adequadamente dimensionados
e estruturados, eles podem agregar às respectivas funções de circulação e
recepção, outros aspectos/funções variados e estimulantes, como aqueles
associados a uma adequada apropriação e identificação dessa zona da habitação,
mas também outros aspectos tão identificadores como funcionais, como é o caso
de alguns tipos de arrumações, designadamente, de livros, elementos decorativos
diversos, colecções, etc.
Não tenhamos dúvida de que o resultado será
excelente, seja porque, assim, se consolida a coerência/fluidez de todo o
espaço interior doméstico – reforçando-se funcional e ambientalmente as zonas
de ligação entre espaços principais –, mas também porque haverá mais espaços
específicos e diversificados para usos específicos e diversificados, mais
apropriação do espaço doméstico e um maior potencial funcional, designadamente,
associados a uma mais expressiva repartição/disseminação dos variados perfis de
arrumação doméstica.
Ainda um aspecto interessante nesta perspectiva é o
resultado global que pode ser trazido ao espaço doméstico que agregue
microespaços domésticos deste tipo – em que há quase uma marcação de
aproximação e um expressiva identificação/apropriação –, que pode resultar numa
marcação global muito rica, quase de uma grande habitação formada de outras
quase “pequenas habitações”.
Parece ser, ainda, interessante anotar que no caso
contrário, de existência de significativos espaços de acesso doméstico
“privativos” e funcionalmente limitados ao seu uso como circulação, tais
espaços acabam por poder constituir-se como relativos bloqueios
funcionais/ambientais na desejável fluidez do espaço doméstico.
Marquise ou varanda
Antes de abordar esta matéria há que
salientar que a “marquização selvagem”, clandestina e desregrada das varandas
habitacionais é, realmente, uma verdadeira praga responsável pela crítica
deterioração da imagem urbana e residencial de muitos dos nossos bairros e
cidades, e que deveria ser energeticamente combatida e regenerada, de forma
estratégica e designadamente em vizinhanças e bairros expressivamente
patrimoniais, com é, por exemplo o caso de Alvalade, Campo de Ourique e Olivais
Norte, em Lisboa.
No entanto, a concepção, de origem (quando da
concepção da solução habitacional) de espaços de marquise, adequadamente
encerrados e programados em termos de conforto ambiental, pode permitir
excelentes espaços de transição, quer entre um interior mais
“protegido”/recatado e o exterior caracterizadamente público, quer entre
espaços exteriores e interiores bem marcados; podendo ser muito interessantes
os usos domésticos, mais privatizados ou mais comuns, destes espaços e sendo,
ainda, interessantes as vistas que eles poderão permitir, do lado do espaço
público, sobre os interiores habitacionais – um pouco como “olhadelas” fugazes sobre aspectos caracterizadores de
interiores domésticos mais “divulgáveis”. Mas salienta-se, novamente, que
apenas é de aceitar a marquise/”jardim de Inverno” adequadamente projectada em
total sintonia com o respectivo edifício.
Lugar-janela ou janela-lugar
Embora esta matéria da associação entre recantos
domésticos e vãos exteriores com vista e /ou luz natural, seja retomada mais à
frente, nesta série editorial, não poderíamos deixar de a apontar aqui, ainda
que sumariamente, e por duas ordens de razões.
A primeira razão, que parece óbvia, mas que não deve
ser descurada, tem a ver com o resgate de uma negativa concepção habitacional
que tendia a considerar a geração do espaço interior, pelo menos, um pouco
separada da geração dos respectivos vãos exteriores – e quem o negue está a
fugir à verdade, julga-se, pelo menos quando não estamos a tratar de
arquitectura de qualidade.
A segunda razão refere-se à enorme força expressiva e
ao fortíssimo conteúdo de imagem/função que estão associados à geração de
“lugares-janelas” – que associam pequenos espaços, bem caracterizados, à
contiguidade de vãos exteriores – e de “janelas-lugares” – vãos exteriores que,
pela sua força expressiva, amplitude e adequada pormenorização se acabam por
constituir em verdadeiros pequenos mas importantes subespaços domésticos; e
nesta categoria há que salientar o grande interesse das bay-windows, vãos
exteriores com variadas tipologias de pormenor e que, de certo modo, fazem
expandir pontual/localmente o espaço interior doméstico sobre o exterior
contíguo, proporcionando estar, um pouco, lá fora, mas também no agradável
interior da habitação e, simultaneamente acabam por marcar esse exterior urbano
de vizinhanças e pequenas ruas citadinas com pontuais, mas estimulantes e
rítmicos sinais domésticos.
Notas editoriais:
(i)
Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a
caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de
edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões
expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições
individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo
portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii)
De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado
nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma
quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou
que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na
Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição
dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se
circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é
pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser
de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado
tal e qual foi recebido na edição.
Infohabitar, Ano XIV, n.º
632
Microfunções e microespaços domésticos: uma
abordagem geral
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Infohabitar, Revista do GHabitar (GH)
Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional –
Associação com sede na Federação
Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
Editado nas instalações do Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do Departamento de
Edifícios (DED) do LNEC.
Apoio à Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação
- Olivais Norte.
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