Raul José Hestnes Ferreira: Lisboa, 24 de novembro de 1931; Lisboa, 11 de fevereiro de 2018.
É sempre com profunda tristeza que escrevemos sobre a partida de um amigo, mas porque a maneira de combatermos tal tristeza é contribuir, mais um pouco, para o registo e a mais do que merecida divulgação da pessoa, do seu pensamento e da sua obra, aqui se faz uma sóbria referência à partida do Raúl Hestnes Ferreira, na noite de domingo dia 11 de Fevereiro, e uma pequena homenagem à sua pessoa.
O texto que se junta, mais
abaixo, retirado de uma conversa entre amigos, quer, assim, saudar e
homenagear, de forma convivial e participada, um dos grandes arquitectos
portugueses do Século XX e início do XXI e fazê-lo com o necessário sentido de
grupo e de naturalidade; e não tenhamos dúvida de que a Arquitectura só ganha
em termos de desenho enriquecido e de verdadeira humanidade com uma tal
naturalidade e um tal sentido de grupo e de diálogo, qualidades marcantes na
pessoa e na prática do Raúl Hestnes Ferreira.
Afinal, e tal como disse o
próprio Hestnes Ferreira (em1973): “De acordo com o que penso que seja a
arquitectura, a formação profissional nada é se não for estruturada por uma
perspectiva humanista que clarifique os aspectos técnicos dessa formação e lhes
dê sentido...”
Lembremos, também, que a
Arquitectura só ganha com uma continuada, cuidada e sentida leitura e
divulgação de ideias, pois desta forma vamos conseguindo cruzar e reter
palavras, desenhos e obras, e na carreira de Raúl Hestnes há, sem dúvida,
excelentes palavras, muitas delas como professor de futuros arquitectos, belos
desenhos e grandes obras de Arquitectura.
E passemos à conversa entre
amigos, que foi acima referida:
“(Hestnes Ferreira) – Aquela ideia da casa, muito ligada até
aos românticos, e sei lá, ao Thoreau, o tipo que vai para a floresta, corta a
árvore, arranja as pranchas, faz a sua casa e ali, ali é a sua casa, é uma
ideia que continua, a estar presente, culturalmente ...
(Manuel Vicente) – Afinal uma casa é boa para uma família
quando for boa para todas, não é? Mas isto não é o elogio do anónimo mas antes
da extrema qualidade, a universalidade pela qualidade e não a universalidade
pelo «éffacement», pelo apagar.
(Bravo Ferreira) – O neutro ... o neutro é chato em qualquer
situação, é sempre cinzento...
(Manuel Vicente) – Do neutro ninguém se apropria... uma pessoa
só se apropria daquilo que ama. Uma pessoa não pode amar uma coisa que não seja
nada.
(Hestnes Ferreira) – E quando visitamos uma casa do século
passado e ficamos deslumbrados com certo tipo de espaços e gostamos mesmo de ir
para lá, isso é mesmo um sintoma de que aquilo transcendeu a família para quem
foi feito, continua a sugerir e se calhar já foi utilizada de mil e uma formas,
já teve mil e uma jarras diferentes em mil e uma mesas diferentes.
(Bravo Ferreira): restou-lhe sempre a qualidade, e essa é que
está sempre.”
(Raul
Hestnes Ferreira, Manuel Vicente e Vicente Bravo Ferreira, “Conversa à roda de
uma casa”, Arquitectura, n.º 129, 1974, pp. 36-40).
Raúl Hestnes com Nuno Teotónio Pereira, Vasco Folha e Teixeira Trigo no Auditório do Edifício Sede do então INH – hoje IHRU – , no âmbito da iniciativa que é, mais à frente, referida.
Uma sentida homenagem à partida de Raúl Hestnes podia e pode ficar por aqui, pois tantas são as obras e tantas são as memórias que por ele falam!
No entanto, para quem se lembra bem da sua forma de nos falar/tocar e muito especialmente para quem não teve esse privilégio, juntam-se, em seguida, algumas notas – em jeito de relato informal (e não revistas, relativamente à sua edição na Infohabitar em 2006 ) – referidas a uma intervenção de Raúl Hestnes sobre o “habitar” e o seu próprio percurso projectual, realizada em 24 de Janeiro de 2006, no Auditório do Edifício Sede do então INH – hoje IHRU – , no âmbito de uma iniciativa deste Instituto e do GHabitar – intitulada “Encontro sobre prática profissional em projectos e reflexão para o futuro na promoção de habitação - com Raúl Hestnes Ferreira, Nuno Teotónio Pereira e José Teixeira Trigo.”
Raúl Hestnes
Ferreira falou-nos, então, sobre os aspectos que podem ser identificados
como fundamentais no habitar a casa, falou-nos sobre as raízes do habitar e
sobre os espaços domésticos polarizadores da vida em comum e em família.
Iniciou a sua galeria de
imagens (projectadas) com a planta de uma casa simples de Rio de Onor, retirada
da “Arquitectura Popular Portuguesa” e falou sobre o projecto e a sua
ponderação, sobre os espaços domésticos mais correntes e sobre outros recantos,
que são os principais obreiros do habitar interior, como foi o caso da entrada
desnivelada que criava um espaço de transição na entrada do escritório da casa
que projectou para o seu pai, o poeta
José Gomes Ferreira.
Falou-nos com exemplos
ilustrados sobre o estar junto ao fogo e à televisão que reúnem as pessoas à
sua volta, mas antes disso falou-nos do viver simples junto ao chão e em torno
do fogo, da mesa como espaço familiar e unificador de actividades, lembrando
hábitos orientais de usar a mesa para um grande leque de actividades, num
encadeamento natural de usos, utentes e horários, e também nos falou do grande
quarto/sala com uma ampla mesa de Jorge Luís Borges, onde este escritor
trabalhava, recebia, conversava, vivia.
Continuando a reflectir
sobre estas matérias dos espaços domésticos essenciais e envolventes e a
propósito da pequena casa de férias de Francisco Keil do Amaral, Hestnes
Ferreira disse-nos que era uma casa muito amigável, uma casa pequena, mas que
reflectia e envolvia o modo muito informal/simples, humano e caloroso que
caracterizava o modo diário de viver daquela família, dando-lhe um bom suporte,
até naquela mesa estrategicamente situada sob a janela e sobre a vista
exterior.
Passou depois para as
sempre novas questões do dia/noite doméstico, uma forma interessante de colocar
uma eventual distinção de duas zonas, que serão provavelmente tanto dia/noite
como, por exemplo, comuns/privadas; e aqui defendeu opções de adaptabilidade,
em que através de uma adequada concepção estrutural e de um cuidadoso
dimensionamento, se possa alterar a disposição das zonas de dormir e de estar,
entre outras.
Sobre o exterior urbano e
relativamente ao Bairro das Fonsecas e Calçada, em Lisboa, cujo projecto
coordenou, referiu que os fogos tiveram uma relação directa com a génese da
forma edificada, proporcionando flexibilidade na sua integração e que a tipologia
de acessos foi influenciada, no esquerdo/direito predominante, por uma opção
dos próprios habitantes, que foram convidados pelos projectistas a visitarem
(nos Olivais, Lisboa) uma outra bem diversa forma de circulação comum através
de galerias, e seguidamente a expressarem a sua tipologia preferida, que, como
se deduz, foi o esquerdo/direito; que aliás é bem matizado por pequenas
galerias/varandas de distribuição nos cantos interiores dos edifícios. Sobre
este bairro Hestnes Ferreira chamou ainda a atenção para a sobriedade da sua
envolvente, que contrasta com pequenos interiores de quarteirão mais
diversificados; e, quanto aos fogos, salientou que se ouviram os moradores,
projectando-se organizações habituais/bem conhecidas.
Sobre a diversificada
experiência residencial em Beja (outros extensos projectos do seu atelier) – a
Unidade João Barbeiro e a Cooperativa Lar Para Todos – começou por salientar a
importância da harmonização construtiva em sede de projecto, numa relação
aberta com a obra e com as potenciais e específicas qualidades de execução que
aí muitas vezes se detectam e que têm a ver, por exemplo, com capacidades
técnicas concretas de determinadas empresas e mesmo de determinados operários.
Depois falou da
caracterização pública e também comum do grande pátio da Unidade João Barbeiro,
do modo como, a partir dele, se pode aceder com naturalidade aos fogos,
motivando-se o convívio, e da forma como o conjunto se integra solidamente na
sua envolvente directa através de uma base de betão em que se integram galerias
públicas comerciais, harmonizando-se, assim, um espaço de vizinhança assumido e
eficaz com a tal sobriedade urbana, já acima apontada.
Relativamente à
Cooperativa Lar Para Todos referiu, no exterior, os pátios alongados sempre que
possível vitalizados pelos acessos directos a fogos térreos, e salientou o
investimento ambiental e caracterizador que foi desenvolvido nos amplos espaços
comuns de cada edifício (com distribuição esquerdo/direito), trespassados e
matizados pela luz natural de cima abaixo e em cada entrada dos fogos (nos
grandes patins comuns). Nestes espaços procurou-se realizar uma agradável e
muito graduada transição com a rua, estimular o convívio possível e
proporcionar uma cuidadosa transparência da vida dos fogos [neste caso através
de um pano de tijolo de vidro no hall privado, que assim ainda leva luz
natural ao centro/entrada da habitação].
Finalmente, ainda neste
último conjunto, mas ao nível dos fogos, há uma clara e muito estimulante
inovação na criação de um amplo espaço familiar de cozinha/refeições, mas
também a rara possibilidade de toda a continuidade entre esse espaço, a entrada
e a sala, poder ser vivido praticamente como um único grande espaço.
E fica aqui um desafio
para quem não conheça estas excelentes obras habitacionais se deslocar a Beja e
as percorrer com vagar; uma óptima visita, não tenham dúvidas e uma homenagem
viva à Arquitectura de Hestnes Ferreira.
Mais tarde, na fase de
debate, Raúl Hestnes sublinhou ter havido uma época em que se acreditou que a
arquitectura poderia mudar o mundo.
Uma imagem da introdução, feita por Manuel Correia Fernandes, à memorável intervenção de Raúl Hestnes Ferreira na Conferência que realizou a encerrar as 1as Conferências CIHEL – Congresso Internacional da Habitação no Espaço Lusófono – no final da tarde do dia 6 de Março de 2017, no Porto, no que foi mais uma grande lição de humanidade, vitalidade e excelente Arquitectura!
Escreveu Francisco Keil do
Amaral:
“As cidades são algo mais do que conjuntos de edifícios
ladeando ruas e praças. São organismos vivos. Os edifícios, as ruas e as praças
formam com as pessoas que ali habitam, transitam, trabalham e passeiam,
unidades coerentes e características... as cidades morrem mesmo sem terem sido
destruídas. Basta quebrarem-se os elos que ligam num todo harmonioso os
edifícios e as pessoas; basta que o modo de vida deixe de corresponder à feição
e ao carácter das edificações" (em "Lisboa uma
Cidade em Transformação", p. 31); e não tenhamos dúvidas, e quem conheceu
o Raúl Hestnes não as tem, que o Raúl foi daqueles que trabalhou, diariamente e
ao longo de toda a sua longa vida, para defender e reforçar esses elos que
ligam, num todo harmonioso, os edifícios e as pessoas.
Bem hajas Raúl Hestnes
Ferreira,
Estarás sempre connosco
António Baptista Coelho, GHabitar e CIHEL
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