quinta-feira, junho 28, 2007

146 - Um dia por Lisboa – Fazer e não fazer. Texto de Nuno Teotónio Pereira - Infohabitar 146

 - Infohabitar 146

No passado dia 19 de Junho, foi organizado, no contexto da próxima eleição para a Câmara Municipal de Lisboa, um encontro de características inéditas e que se revelou do maior interesse. Tratou-se da iniciativa de um grupo de personalidades independentes relativamente às candidaturas em disputa e que se desenrolou no Teatro São Luís, numa maratona non-stop, das 18 às 24 horas.
Orientados por uma mesa composta por Luísa Schmidt, Nuno Artur Silva, João Seixas, Leonor Cintra Gomes e outros, foram ouvidos depoimentos de cerca de 30 pessoas convidadas, onde pontificavam figuras públicas das mais variadas profissões, entre as quais arquitectos, jornalistas, etc. Ao mesmo tempo, cabinas dotadas de gravadores foram postas à disposição dos assistentes, para poderem também manifestar as suas opiniões sobre o que fazer e o que não fazer em Lisboa, versando temas como ambiente, vida quotidiana, mobilidade, urbanismo, reabilitação, governação, participação dos cidadãos, etc.
Todas as intervenções estão a ser tratadas e sistematizadas, com vista à respectiva divulgação.



Fig. 01

LISBOA / Fazer e não Fazer



A – O QUE DEVE ABSOLUTAMENTE SER FEITO

QUATRO COISAS A EXIGIR AO GOVERNO / ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA PARA VIABILIZAR A GOVERNABILIDADE DA CIDADE



1. Um governo para a AML, com meios, competências e legitimidade democrática.


É sabido que muitos dos mais graves problemas da cidade só podem ser resolvidos à escala metropolitana. O que foi decretado recentemente pelo governo sobre a composição da Junta Metropolitana pouco ou nada adianta. É indispensável que este órgão e a Assembleia sejam eleitos – não necessariamente por sufrágio universal, mas pelo conjunto dos membros das assembleias municipais dos concelhos envolvidos.

Neste quadro, a criação da tão prometida Autoridade Metropolitana de Transportes deve ser imediata. Caso já existisse, teria sido possível que os milhões enterrados no inútil túnel do Marquês fossem investidos em parques automóveis gratuitos nos acessos rodo e ferroviários à cidade, reduzindo substancialmente a entrada de carros em Lisboa.

Estes objectivos devem ser concretizados no período de emergência dos próximos dois anos, Se tal não puder acontecer, a CML deverá, para garantir a governabilidade da cidade, propor aos municípios da AML um mecanismo permanente de concertação visando a obtenção de consensos relativamente aos problemas mais graves, funcionando como uma espécie de governo paralelo, com vista a suprimir a ineficácia da Junta, com a sua organização actual.


2. Exigir também legislação imediata com vista à penalização fiscal progressiva dos fogos devolutos,


dado que a duplicação do IMI há pouco decretada é absolutamente insuficiente para obrigar a colocar no mercado de venda ou arrendamento as quase cem mil habitações desocupadas na cidade.

Efectivamente, só com o agravamento, ano-após-ano, do imposto (como há anos se pratica em Espanha), será possível atingir um duplo objectivo: reocupar essas casas, ao mesmo tempo que, por efeito do aumento célere da oferta, fazer baixar os preços hoje praticados em Lisboa, inacessíveis a uma vasta camada da população.

Entretanto, após a tomada de posse da nova Câmara, devem os serviços iniciar de imediato o recenseamento dos fogos devolutos, tarefa que nas cidades do Porto e Coimbra se tem revelado extremamente lenta, devido à dificuldade em cumprir os preceitos legais.

Também esta questão deverá estar solucionada no período de emergência, para que os objectivos de repovoamento da cidade possam ser concretizados ao longo do mandato seguinte.

3. Exigir ainda a cessação do domínio absoluto das frentes ribeirinhas pela APL.


Tal poderá ser concretizado por uma gestão tripartida desses territórios, envolvendo APL, CML e AML, cabendo naturalmente ao governo as decisões finais nos casos em que não se verifique consenso.

4. Finalmente, exigir aos ministérios e outros órgãos a desocupação célere dos pisos térreos e das sobre-lojas do Terreiro do Paço,


com excepção apenas dos acessos aos edifícios – reduzidos ao mínimo indispensável.

Será assim possível, a curto prazo, a instalação, ao longo das arcadas, de espaços de animação, cultura, lazer e mesmo comércio, indispensáveis para que o Terreiro do Paço se transforme num pólo de convívio dos que moram em Lisboa, dos que aqui trabalham e dos que a visitam. Quanto à placa central, deve ser tratada e respeitada como um monumental espaço de contemplação.



Fig. 02

OUTRAS QUATRO COISAS QUE DEVEM ABSOLUTAMENTE SER FEITAS, NO ÂMBITO DAS COMPETÊNCIAS DOS ÓRGÃOS MUNICIPAIS


1. Refazer o mapa das freguesias, agrupando as de área mais reduzida, por forma a dotá-las de dimensão e massa crítica capazes de desempenharem um papel relevante na administração de proximidade.


No mesmo sentido, estes órgãos devem ser dotados de competências e meios, descentralizando os serviços camarários, de acordo com o princípio da subsidiariedade. Estas novas unidades administrativas poderão ser designadas por “bairros”, como acontecia nas primeiras décadas do século XX, preservando as freguesias históricas o seu carácter simbólico.

2. Retomar com vigor a política de habitação social, mas em moldes radicalmente diferentes dos anteriores.


Com a execução do PER e a extinção do Casal Ventoso, levadas a cabo com um decidida vontade política, mas com soluções algo desajustadas, foi possível erradicar na quase totalidade os bairros degradados e de barracas em Lisboa, subsistindo todavia milhares de famílias vivendo em condições indignas na cidade. No entanto, a solução não estará na construção de novos bairros, guetizados, mas sim na adopção pela CML da nova política em ultimação pelo governo com a designação de “Porta 65”. Trata-se de realojar as famílias carenciadas em habitações devolutas dispersas na cidade, contando para isso com apoio estatal, em termos de financiamento e de agilização de procedimentos. Também para este fim a forte penalização fiscal dos fogos devolutos é necessária e urgente.

Complementarmente, os núcleos de habitação social construídos no âmbito do PER, isolados do tecido urbano e por isso muitas vezes com carácter de guetos, deverão ser inseridos em contextos alargados e socialmente diversificados, tarefa a atribuir à EPUL, no cumprimento dos objectivos que, há 40 anos, justificaram a criação da empresa.


3. Arrancar com o Plano da Baixa-Chiado, como objectivo fulcral para a cidade


 mas pondo de lado propostas fundamentalistas de restrições ao tráfego automóvel – antes procurando promover a sua conveniência com o peão – de forma a evitar um novo factor para a desvitalização da zona.

Ainda no campo da mobilidade, promover a construção de parques de estacionamento:

a) de carácter dissuasor e gratuitos, junto dos eixos de transportes colectivos que convergem para Lisboa;

b) a preços acessíveis, para residentes, nos bairros mais carecidos de Lisboa, como forma de evitar o êxodo populacional para as periferias.

4. Finalmente, sujeitar a ampla discussão pública as medidas mais relevantes ou polémicas, antes da tomada de decisões.


E isto aos diferentes níveis: municipal, de bairro, ou mesmo da AML. Entretanto, rejeitar, como método de participação, os referendos, muitas vezes de efeitos perversos e de clara ilegitimidade no contexto da democracia representativa. Debate público, tão alargado quanto possível, sim, mas reservando sempre as decisões para os órgãos eleitos.

Ainda no campo da participação dos cidadãos, duas iniciativas:

a) ao nível de bairro, ensaiar a prática do orçamento participativo;

b) para melhoria e manutenção do espaço público, organizar grupos de voluntários, também ao nível local, para a detecção de anomalias ou incongruências lesivas da sua dignidade e harmonia e de fácil resolução – e que muitas vezes se prolongam por décadas perante a inacção dos poderes públicos.


Fig. 03

B – O QUE NÃO DEVE ABSOLUTAMENTE SER FEITO


1. Licenciar mais condomínios fechados


que são, no interior das cidades, como que tumores malignos que prejudicam a função de sociabilidade que estas devem desempenhar.

2. Licenciar mais grandes superfícies


pois as que já existem têm contribuído para asfixiar o comércio de bairro e das zonas centrais da cidade.

3. Instalar um hotel no Terreiro do Paço


pois isso constituiria um atentado gravíssimo ao estatuto de símbolo do poder que o conjunto monumental possui e que deve ser respeitado.

4. Entaipar o Jardim Botânico com volumes de construção no Parque Mayer


por forma a que esse tesouro escondido de Lisboa possa ser contemplado a partir desse recinto e da Avenida da Liberdade.

Lisboa, Teatro S. Luís / 19.06.07
Nuno Teotónio Pereira


Ilustrações de ABC inseridas pela edição.
Edição no Infohabitar: Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 28 de Junho de 2007.
Artigo editado por José Baptista Coelho.

quinta-feira, junho 21, 2007

145 - Cidade do peão ou do automóvel – I, artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 145

 - Infohabitar 145

Cidade do peão ou do automóvel – cidade acolhedora ou cidade agreste; sobre a humanização das acessibilidades na cidade e no habitar

Comentário de Fausto Simões, editado em 2007/09/07



1. A cidade que era e a cidade que é

A intervenção urbana planeada quase sempre visou tornar a cidade mais funcional, uma qualidade que assumida na sua plenitude, tanto tem a ver com aspectos, que se podem considerar, mais “maquinais”, ou “super-funcionais”, num sentido estrito desta expressão, como com aspectos especificamente ligados a uma ampla adequação, também ambiental e mesmo de carácter visual, globalmente ligados à humanização do espaço urbano, uma humanização muito chegada aos aspectos que motivam o viver em conjunto e a animação citadina, que são assuntos urbanos fundamentais, mas também ao tornar a cidade verdadeiramente agradável, acolhedora e estimulante. E desde já se sublinha que estão errados aqueles que imaginam que a referida funcionalidade mais estrita e estes aspectos “ditos” de humanização são antagónicos; diria mesmo que só haverá um tal antagonismo em situações mal planeadas e mal desenhadas, de outra forma, haverá sim sinergias mútuas.

Num excelente trabalho editado, já há alguns anos no LNEC, por João Muralha Farinha e José Teles de Menezes (1), refere-se, e cito, que “o aparecimento do automóvel era, no princípio do século (século xx), visto como solução para os problemas de mobilidade e acessibilidade e como contribuição válida para melhorar muito significativamente a qualidade de vida nas grandes metrópoles. Porém, a generalização do automóvel suprimiu as funções tradicionais de espaço multifuncional desempenhadas pela rua. Nas ruas projectadas no século xix era frequente perto de metade da sua largura ser destinada a peões, o que era largamente suficiente uma vez que, na época, poucos edifícios tinham mais que três pisos. À medida que a altura dos edifícios aumentou (originando portanto maior movimento dos peões) a largura dos passeios não foi aumentada de forma correspondente; foi mesmo diminuída devido à necessidade de mais espaço para escoamento do tráfego de veículos.“

Tal como disse António Mega Ferreira, referindo-se a Lisboa (2), mas que devemos generalizar a muitas das nossas cidades e vilas: “Há-de haver um tempo em que se percebe que uma das mais belas cidades da Europa não pode continuar a viver exclusivamente ao ritmo das pressões do trânsito automóvel.”

E nesta matéria há que afirmar que os peões têm de ter ou têm de recuperar o direito de cidade! Do recreio livre e do desporto citadino (3), ao flanar e ao andar a pé como conceito essencial de deslocação e de bem-estar físico, os peões têm de recuperar o seu direito de cidade, que não será exercido contra ninguém, apenas contra a bem conhecida persistência dos infelizmente bem conhecidos e numerosos cenários urbanos visual, ambiental e funcionalmente agressivos e insustentáveis.

E aqui há que sublinhar que o automóvel não é o único culpado por uma cidade agreste para os peões, também a ineficácia ou a ignorância de um urbanismo que, quase sempre, pouco ou nada tem a ver com muitos cuidados fundamentais, por exemplo de insolação (4) e sombreamento do peão (e dos edifícios), de adequação à ventilação urbana e de suavização por elementos de verde urbano.

E como exemplo de um tal urbanismo, aliás tantas vezes quase ao exclusivo serviço do automóvel, cita-se o arq. Manuel Tainha (5) na sua definição do conjunto de Chelas, em Lisboa, “como uma zona sombria” e “um território dilacerado”. E é o mesmo projectista que afirma ser “preciso afrontar isso com coragem e imaginação. Socorrendo-se de quem? Não sei. Dos urbanistas e dos poetas. Seja de quem for. O que está a acontecer em Chelas é um caso paradigmático. As pessoas vivem nos interstícios das grandes vias e o automóvel é soberano na cidade. As áreas residenciais são áreas residuais entre os sistemas de circulação.”



Fig. 1


2. Sobre a “praga automóvel”

Importa sublinhar que nestas urgentes acções de re-humanização da cidade e de controlo daquilo que já designado como a “praga automóvel”, há que privilegiar as estruturas de acessibilidade amigas do peão e do ambiente e geradoras de agradabilidade numa estratégia na promoção da qualidade, da vitalidade e das fundamentais sequências de espaços públicos urbanos estimulantes.

Nestas matérias, que jogam com aspectos tão distintos como a gestão de sinergias entre vários tipos de tráfego e a referida re-humanização e re-caracterização de uma cidade viva, fica bem evidente o papel da multidisciplinaridade, afinal uma opção que encontra velhos e bons aliados na arquitectura urbana e na engenharia de tráfego; e aqui sublinha-se que o conceito de vizinhança de proximidade, que comecei a usar nos estudos do LNEC sobre habitação, já há mais de dez anos, fui buscá-lo à engenharia de tráfego, e que, hoje em dia, as fundamentais matérias das slow-cities, que poderão ser uma saída fundamental para a verdadeira reabilitação do espaço urbano deste século das cidades, são matérias que tanto têm a ver com a arquitectura urbana, como com a engenharia de tráfego.

Em tudo isto há que interiorizar que as praças, as pracetas e as ruas citadinas são as salas e os corredores da cidade e são elementos protagonistas da humanização e da segurança em meio urbano, e é necessário afirmar que já chega de cidades feitas de zonas autistas em condições de acessibilidade e de continuidade urbana, autistas porque nelas é quase impossível ou é muito pouco agradável optar por circular a pé entre elas. E para tal é urgente intervir nessas ligações entre bairros citadinos, (re)constituindo gradualmente grandes e motivadoras sequências urbanas que nos devem poder levar com prazer, a pé e em transportes públicos, da porta da nossa casa e do nosso espaço de vizinhança, passando pelo coração bem caracterizado do nosso bairro, até outros bairros da nossa cidade e, finalmente, ao coração dessa mesma cidade.

De certa forma trata-se de apostar na (re)constituição de uma continuidade urbana real, porque usável pelo peão com verdadeira autonomia, aquela de que ele só goza a pé ou em transporte público, desde que este transporte seja confortável e estimulante.

E para se desenvolver esta humanização estratégica da cidade não devemos privilegiar um caminho de proibição e de segregação simplista do automóvel privado, mas sim um outro caminho que passe, seja pelo apoio á sua funcionalidade estratégica, seja pela sedução do habitante para a prática pedonal e para o uso de motivadores e funcionais transportes públicos; um caminho de integração de tráfegos e de humanização das vizinhanças residenciais e dos centros citadinos, que nos liberte dos aspectos de “praga” que caracterizam o trânsito dos automóveis privados (como o ruído, a poluição atmosférica e viual, e a insegurança), mas que continue a considerar e,mesmo, que melhore: a sua integração funcional com os diversos usos da cidade; a sua conjugação com os outros tipos de tráfego; e mesmo a sua harmonização com uma imagem urbana e residencial humanizada e arquitectonicamente qualificada, que é também aquilo que urge pedir às cidades no início deste novo século.



Fig. 2


3. Harmonização de tráfegos e humanização da cidade habitada


Uma tal harmonização global de tráfegos e a associada temática dos modos “suaves” e dos modos de acalmia de tráfego são todos aspectos que merecem um adequado aprofundamento, pois têm uma actualidade evidente, seja em termos da agradabilidade e funcionalidade que podem e devem induzir, urgentemente, na vida nas cidades, seja nas suas importantes consequências em termos de circulação, acessibilidade, segurança e agradabilidade nas vizinhanças residenciais, onde têm evidentemente uma relação extremamente directa com os aspectos da humanização do habitar.

E assim um pouco apenas numa perspectiva de apontamento do aprofundar dessa urgente aliança entre a humanização do habitar e a suavização, ou também humanização, do tráfego citadino, registam-se, em seguida, algumas opiniões de Jane Jacobs e de Spiro Kostof.

Já no “longínquo” ano de 1961 Jane Jacobs abordou, num seu famoso livro, vários temas essenciais na questão da harmonização de tráfegos, sublinhando-se, aqui algumas posições da autora (6):

“A separação entre peões e veículos só é possível contando-se com a redução estrondosa do número de veículos nas cidades. De contrário os estacionamentos, as garagens e as vias de acesso à volta das zonas pedonais … seriam medidas de desintegração e não de recuperação urbana” (p.383).

“A vida atrai a vida, a separação dos pedestres não pode ser capricho (Jacobs, p.388). As ruas de pedestres se constituírem barreiras para os automóveis estacionados ou em movimento em volta de áreas intrinsecamente frágeis e fragmentadas podem ocasionar mais problemas do que solucioná-los” (p.298).

“A redução de automóveis tem de ser medida de base, mas ligada ao estímulo do uso do transporte público, e a pressão da cidade sobre o automóvel não pode ser arbitrária nem negativa e tem de ser uma medida gradual e com um amplo tempo de aplicação” (p.404).

“Calçadas largas são imprescindíveis… filas duplas de árvores… alargar e intensificar uso de calçadas com uso constante e o leito da rua seria assim automaticamente estreitado” (p.405).



Fig. 3


4. Sobre o desenho urbano pormenorizado e qualificado

Spiro Kostof (7) estudou a evolução das zonas mistas de peões e veículos que servem conjuntos residenciais (8), teve em conta os conhecidos problemas de desvitalização em centros urbanos pedonalizados e aproximou-se da caracterização das condições de aliança entre humanização do tráfego e humanização do habitar, tendo sublinhado que “o mais importante aspecto do apoio ao peão ... liga-se não ao desenho de pólos comerciais, mas sim ao de vizinhanças residenciais ... através de um novo tipo de rua residencial – designado por woonerf, que significa literalmente pátio/vizinhança residencial (9) –, uma rua cuja principal função não é a circulação e o estacionamento automóvel, mas sim o andar a pé e o recreio (10).

E especifica, ainda, Spiro Kostof (11), que uma tal rua ou vizinhança de proximidade tem de ser caracterizada por “elementos que a distinguem claramente das restantes vias: pavimentos com aspecto ambíguo que distinguem da imagem da estrada; elementos de acalmia de tráfego de veículos; e inserção de verde urbano e de estacionamento repartido de forma a bloquear linhas de vista com continuidade ... uma paisagem de rua partilhada com o carro, mas desenhada em torno das necessidades e dos prazeres pedonais”.

E como, por vezes, as designações até têm grande importância sublinha-se, ainda com o recurso ao estudo de Kostof, que este conceito de vizinhança de proximidade foi designado na Alemanha por “rua viva ou vivível” (Wohnstrasse) e julgo que este movimento terá estado também associado às opções seguidas pelos manuais de desenho urbano residencial desenvolvidos designadamente em Inglaterra cerca da década de 70 do século passado. Posteriormente este conceito esteve na base do desenvolvimento do chamado “novo urbanismo” americano, embora numa perspectiva de imagens urbanas mais informais e/ou mais temáticas ou até revivalistas, como é o caso da cidade feita pela Disney.

Importa ainda sublinhar uma consideração de Kostof nestas matérias e que refere que para se enquadrarem estas novas tipologias residenciais e de tráfego é frequente ter de ser desenvolvida nova regulamentação específica.

Afinal uma regulamentação que reinterprete e reconfigure a tendência, ainda predominante, do apoio ao tráfego rápido e ao estacionamento, que, na recente opinião de autores americanos “criam receitas virtuais de desintegração urbana”, uma regulamentação que, ainda segundo, Kostof, que se refere a Duany e Plater-Zyberk, disponibilize “uma arma contra mais avanços do automóvel em território do peão”, bem como “um código genérico de urbanidade, consolidador da sabedoria vernacular de determinadas zonas urbanas preexistentes, desenvolvendo novos standards e dimensões para ruas”; um código que o mesmo autor, referindo-se ainda a Duany e Plater-Zyberk, terá, como objectivo central o desenvolvimento de vizinhanças, através, designadamente, da reinvemção de uma “habitação animadora da rua ... como tipologia habitacional standard”, e da dinamização do andar a pé “pela localização de lojas a distância flanante de casa”, por passeios amplos (ex., largura mínima 3,7m, quando há lojas) e pela obrigatoriedade de integração de árvores de arruamento.(12)

Mas é ainda o mesmo Spiro Kostof (13) que nos alerta para a fundamental diferença entre criar condições físicas adequadas para o convívio e a vida urbana e o desejado desenvolvimento prático de tais condições, quando, após relembrar o que foi a rua do passado – “... um sítio pouco saneado, física e moralmente, mas também escola e palco de urbanidade.” – afirma que não entende “o reviver do contentor (forma/carácter da rua) sem um compromisso solene de o reinvestirmos com verdadeiro vigor urbano, com urbanidade.” E sublinha que “enquanto ... alegremente passearmos sozinhos em caixas de metal reluzentes, climatizadas e musicais, a rua renascida será um local que gostamos de visitar talvez frequentemente, mas não habitar – um espaço de brincadeira, um museu... o sítio de enterro da excitação não ensaiada, da acumulação do conhecimento dos modos de ser e viver e dos benefícios residuais de uma vida pública.”

Mas entre o que se deseja que possa voltar a ser a rua habitada e o que se vai conseguindo fazer, gradualmente, um pouco melhor, é fundamental assumir a defesa de uma nova rua ou vizinhança próxima claramente mais amiga do peão e de uma cidade habitada, e, por exemplo, nos Bairros de Alvalade e de Olivais Norte/Encarnação, em Lisboa, os dois com desenhos bem distintos, esta forma de fazer cidade habitada e humanizada está presente, sugerindo que, afinal, este objectivo até talvez não seja assim tão difícil de atingir; mas atente-se à qualidade da arquitectura urbana que caracteriza qualquer um destes exemplos, assim como outros mais recentes.


Fig. 4
Falta referir que nestas matérias embora não devamos ser fundamentalistas também não podemos ser complacentes com situações cuja gravidade acaba por arriscar a própria sobrevivência de uma cidade viva, porque agradável para o homem. E nesta matéria há que sublinhar que as cidades não são feitas para serem “viveiros” de edifícios e/ou circuitos de automóveis, as cidades são feitas para os homens, e por isso se devem humanizar. Mas devemos nesta matéria ser ainda mais corajosos no sentido em que a recuperação da cidade para o homem/peão deve ser o primeiro passo da reabilitação da cidade como espaço privilegiado e protector do homem e designadamente do mais idoso e do mais desprotegido.

Há, assim, que por cobro à inadmissível selva de obstáculos e de péssimas condições de apoio físico e de orientação pedonal, que caracterizam os nossos espaços públicos. E tudo o que se fizer para melhoria destas condições favorece os idosos e as crianças, que são, afinal, aqueles habitantes que mais usam a cidade, que tanto podem dar de vida à cidade e aos quais a cidade tanto pode dar em termos de quadro de vida naturalmente formativo e recreativo.

As cidades amigas das crianças e dos idosos devem proporcionar, como aspectos básicos dessa amizade, nos seus espaços públicos, condições específicas e adequadas de segurança, acessibilidade, funcionalidade e de conforto; e se as cidades forem amigas das crianças e dos idosos elas serão duplamente amigas dos restantes habitantes, que ganharão seja com as essas condições, seja com a acrescida vitalidade do espaço urbano.



Fig. 5


6. Cidades com escala humana


E conclui-se esta breve reflexão sobre a humanização do tráfego citadino e sobre uma cidade mais amiga com recentes palavras de António Pinto Ribeiro (14):

“A maioria das nossas cidades tem perdido a escala que seria mais adequada à sua fruição enquanto espaço, arquitectura, urbanismo e coreografia, porque a medida do cidadão pedestre – que deveria ser a medida reguladora das cidades – tem sido preterida em favor do automóvel, actual meio prioritário de ocupação da cidade... Neste sentido, seria desejável que a cidade voltasse a ter como medidas de planeamento o peão e o utente do transporte público. Tal corresponderia, segundo penso, a uma ligação mais epidérmica com o espaço, à possibilidade de se instalar durabilidade no tempo de gozo da cidade.”

Uma durabilidade e um gozo citadinos que muito têm a ver com a proposta que Daniel Filipe fez quando escreveu (15) que: “De vez em quando, apetece a gente tomar por uma dessas ruazinhas que não se sabe onde irão acabar, deixando correr o tempo ao sabor dos passos erradios.”



Fig. 6


Notas:
(1) João Muralha Farinha e José Teles de Menezes, “O papel das áreas pedonais na renovação urbana”, 1983, pp. 6 e 7.
(2) António Mega Ferreira (referindo-se a Lisboa), “Roma Bernini”, Público – espaço Público, 21 Junho 1999.
(3) É, por exemplo, muito interessante e oportuna esta perspectiva de “desporto citadino“, direccionada para a criação de condições “miniaturizadas” para a prática desportiva e de uma forma que não afecte a essencial continuidade urbana – exemplos entre tantos possíveis, mas infelizmente pouco seguidos, são dados pelos “cantos” e postes para basquete ou pelos pequenos recintos vedados e equipados para “mini-futebol” bem “encaixados” em pequenos “intervalos” nas bandas edificadas, como um caso de integração num espaço vago num gaveto – AAVV, “Les piétons ont droit de cité ; Mini-foot“, Lyon Cité, n.º 39, 1999.
(4) Armando Cavaleiro e Silva, e João José Malato, “Geometria da insolação de edifícios”, 1969.
(5) “O artista é o mais frio dos homens – entrevista com Manuel Tainha”, Arquitectura e Vida, 2000.
(6) Jane Jacobs, “Morte e vida das grandes cidades” , trad. Carlos Mendes Rosa, 2001 (1961).
(7) Spiro Kostof, “The City Assembled – The elements of urban form through history”, 2004 (1992).
(8) Tal como refere Spiro Kostof, em “The City Assembled”, em cerca de dez anos, na Alemanha, a partir de 1966, passou-se de 60 áreas centrais urbanas pedonais para 370, e a grande Sröget em Copenhaga, entre a Câmara Municipal e a principal praça, foi um grande êxito.
(9) Designado woonerf, literalmente “living yard” (pátio residencial), por Niek De Boer da Universidade Técnica de Twente em 1963
(10) Nos meados dos anos 70 após vários ensaios o Woonerf foi nacionalmente adoptado na Holanda e mereceu um sinal de tráfego distinto. O pedido de redesenho/reconfiguração de uma determinada rua parte dos seus respectivos residentes.
(11) Spiro Kostof, “The City Assembled – The elements of urban form through history”, 2004 (1992), pp.240 a 242.
(12) Duany e Plater-Zyberk, citados por Kostof na obra que tem sido referida (p.242), associam todos este aspectos à aplicação de uma TND – Traditional Neighborhood Development ordinance (código de Desenvolvimento Tradicional das Vizinhanças, DTV).
(13) Spiro Kostof, ob. cit, p.243.
(14) António Pinto Ribeiro, “Abrigos: condições das cidades e energia das culturas”, 2004, p. 18.
(15) Daniel Filipe, “Discurso sobre a cidade”, Lx, Presença, Forma, 1977

Lisboa, Encarnação – Olivais Norte
21 de Junho de 2007
Imagens e texto de ABC
Edição de José Baptista Coelho
Comentário de Fausto Simões (editado em 2007/09/07)
Li o seu artigo sobre a "cidade invadida" (pelo automóvel) segundo Jan Gehl (http://www.metropolismag.com/html/content_0802/ped/index_b.html.) ...

"Ponto 1: Estive há duas semanas numa homezone (a woonerf britânica) em West Ealing. Creio que é uma das mais activas em Londres. Uma operação muito singela mas relevante porque é uma iniciativa dos cidadãos em que são patentes resistências mas também perseverança para as vencer. Isto é para mim fundamental!

Ponto 2: Perfilho a sua defesa das "áreas ambientais" pedonais que no entanto não excluem o automóvel, o qual é domesticado, obrigado a submeter-se ás regras do peão, por vários meios simples bem tipificados na homezone. Mas, ao peão temos que acrescentar a bicicleta que o complementa com um raio de acção maior e é igualmente amigável. Mesmo Lisboa poderia ter áreas, não só ribeirinhas mas também de planalto e ao longo de curvas de nível, bem cicláveis. Combinar o peão com a bicicleta em redes locais pedonais e cicláveis que progressivamente poderiam integrar-se numa rede contínua por corredores de ligação.

Ponto 3: Peões e bicicletas têm que se integrar numa rede hierarquizada, intermodal de transportes á escala urbana ou metropolitana em que os transportes públicos e o automóvel cobririam as maiores distâncias. Mas como faze-lo numa cidade que se difunde e endurece numa rede rodoviária feita para o automóvel? Parece-me que Leiria é um caso paradigmático.
Esta tendência é fortíssima. Por exemplo Milton Keynes foi concebida como uma cidade apoiada num monorail gratuito complementado por uma extensíssima rede pedonal e ciclável. Não obstante, hoje ela é dominada por uma rede rodoviária em que reina o automóvel e a extensa rede ciclável que foi executada, é utilizada para passeio e não como meio de transporte. O seu centro é uma colecção de grandes superfícies servidas por enormes parques de estacionamento. Espero ir para o mês que vem a Milton Keynes para verificar in loco este caso."

Cordialmente, Fausto Simões

quinta-feira, junho 14, 2007

144 - Palestra de Teixeira Trigo no LNEC – notas de António Baptista Coelho - Infohabitar 144

 - Infohabitar 144


50 Anos de Engenharia – Reflexões sobre Ética e Qualidade

Notas sobre a “aula” de José Teixeira Trigo


Engenheiro Civil, Investigador Coordenador do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, na Sala 1 do LNEC, em 29 de Maio de 2007.
Os apontamentos que se seguem, são apenas isso: “apontamentos” pessoais relativos à palestra de Teixeira Trigo, acima devidamente registada.
Naturalmente que estes apontamentos foram “passados a limpo” e corrigidos no sentido de não conterem, em princípio, grandes desvios do discurso proferido, uma correcção feita com base em notas do próprio Teixeira Trigo, que gentilmente as disponibilizou. No entanto, sublinha-se que se procurou realizar uma “leitura” pessoal do que foi ouvido na “aula”, esperando-se que o próprio Teixeita Trigo possa vir a rever as suas notas para então dispormos da versão integral da sua última “lição” no LNEC, como funcionário desta casa, mas também da primeira “lição” das muitas que dará neste seu início de uma nova etapa do seu logo e rico percurso de vida e de ensino.



Fig. 01
Logo de início Teixeira Trigo referiu que não pretendia fazer uma ligação entre as principais experiências da sua vida e os aspectos de ética de qualidade, escolhidos como tema-base desta palestra, um tema que sublinhou ter também abordado em outras suas intervenções no LNEC e na Universidade Lusófona.

Destacou que considera que a actividade humana se pode desenvolver no quadro de três tipos de conceitos e objectivos: a lógica, que referiu ser muito cara à engenharia, a estética, e a ética.
Mas por se tratar da actividade humana e devido à natureza específica de cada uma desta matérias, desde sempre houve “zonas cinzentas”, por exemplo na ética e Trigo destacou que é fundamental desenvolver uma preocupação crescente com o que está bem ou mal, sendo cada vez mais necessária a introdução de princípios éticos na engenharia; pois, como referiu, “ a actividade de engenharia é de confiança pública.”

Referiu haver princípios e valores estáveis, que servem e deverão sempre servir de referência e que se devem associar, naturalmente, aos códigos de conduta profissionais. Valores que o marcaram, na sua formação, desde pequeno e até à Faculdade de Engenharia, no Porto. E Trigo salientou entre tais valores imutáveis, em primeiro lugar, a protecção da vida humana, e, depois, a protecção da saúde e, finalmente, a protecção dos bens.



Fig. 02
Mas, de forma distinta destes valores de referência, noutros aspectos Trigo considera que tem havido significativas mudanças, tendo salientado os seguintes:

- Relativamente ao conforto e ao bem-estar, cuja interpretação tem variado com o tempo, havendo um crescendo de matérias associadas.

- No que se refere à preocupação para com o património edificado, que Trigo sublinha ser recente, tendo exemplificado com o que foi a destruição da Alta de Coimbra, feita à luz de princípios urbanísticos da época e com a frequente demolição de construções que valem pelo seu conjunto.

- Nas matérias relativas à protecção e à defesa do património ambiental, uma matéria também recente, com cerca de 20 anos; o que fica evidenciado pelo estudo dos códigos de conduta da engenharia e do número de referências a esta a e outras matérias que constam das diversas versões, por exemplo, do Estatuto da OE (entre 1982 e 1998 as referências ao ambiente passaram de uma para sete).

- No que se refere à temática/problemática da qualidade de vida, que tem sido objecto de recentes e significativas evoluções, embora Trigo também sublinhe que já da “Utopia” de Thomas More (Século XVI) constem preocupações com a vida terrena; e portanto não foi este um tema “descoberto” no século XIX.

- No que se refere a aspectos que estão muito ligados a especificidades culturais e regionais, e nesta matéria e a título de exemplo, Trigo lembrou a oconceito de corrupção, que considera ainda muito integrado e assumido de forma menos correcta em algumas sociedades, que a terão de ultrapassar para conseguirem um adequado desenvolvimento.



Fig. 03
Finalmente, e ainda nesta sequência de reflexões sobre conceitos que têm sofrido alguma mutação e que são estruturalmente dinâmicos, embora, também, em boa parte sempre marcados por essenciais preocupações de boa-prática, e desejavelmente dos referidos aspectos de lógica, estética e ética (perdoe-se esta pequena consideração do autor destas linhas), Teixeira Trigo avançou no conceito de qualidade, um dos temas centrais da “aula”, e relativamente ao qual Trigo sublinhou dever ser assumido, considerando-se diversos aspectos e designadamente:

- que a definição de necessidades é algo distinta da satisfação das expectativas de clientes e utilizadores;

- que são também bem distintos os conceitos de cliente e de utilizador;

- que se tende a considerar que são os técnicos que têm a sabedoria para discernirem sobre o que as pessoas realmente precisam, uma situação relativamente à qual Trigo sugere que haja o máximo de cuidado;

- e, finalmente, que há que atender a grandes diferenças nos contornos e conteúdos da procura e da definição da qualidade na sua aplicação aos diferentes sectores da produção, destacando aqui, a título de exemplo, que nestas matérias e no sector da produção automóvel tudo está perfeitamente claro e rigorosamente especificado, situação esta que julga não ser directa (ou mesmo desejavelmente) aplicável noutros sectores – o autor destas linhas julga ter sido este o sentido da intervenção de Teixeira Trigo nesta matéria específica.



Fig. 04
Ainda sobre o conceito de qualidade Teixeira Trigo referiu que a garantia da mesma é actualmente um dos grandes objectivos da sociedade, condição esta que, importa salientar, ultrapassa, claramente, o “simples” cumprimento de determinados aspectos de qualidade.

Depois o conferencista desenvolveu uma súmula da sua vida nas suas fases de formação e nas suas diversas facetas profissionais e formativas.
Não se irá fazer aqui qualquer síntese desta parte da intervenção mas não se resiste a referir um episódio, ainda liceal, sublinhado por Trigo relativamente a uma sua participação, com os colegas da turma, na discussão de fichas/verbetes correspondentes à elaboração, por alguns dos seus professores de então, da primeira edição do dicionário de português da Porto Editora; e refere-se este episódio pois julga-se que ele testemunha muito do espírito colaborativo e basicamente aberto que caracteriza Teixeira Trigo, sempre disponível para um forum em que, a partir da releitura e da eventual reinterpretação de matérias mais ou menos conhecidas, se possam gerar novas pistas e perspecticas de interpretação das respectivas situações.



Fig. 05
Depois de uma breve resenha biográfica, falou das obras que mais o marcaram e a propósito delas referiu os arquitectos com quem trabalhou; numa paixão pela arquitectura que nele bem conhecemos.
Falou da sua longa e fértil carreira no LNEC e, sequencialmente, no IST, nos mestrados em que participou, e, por fim, na coordenação da Engenharia da Universidade Lusófona.
Destacou na sua vida no LNEC, o trabalho na Marca de Qualidade LNEC e o seu mandato de três anos como Presidente do Conselho Científico do LNEC, sublinhando ter, nesta qualidade, tentado estruturar a respectiva funcionalidade ao serviço, entre outros aspectos, do enquadramento e do apoio aos mais jovens investigadores e de uma perspectiva de renovação e de futuro.

Antes de iniciar a fase conclusiva da sua “aula” Teixeita Trigo referiu, a propósito da preparação que fez para esta sessão, uma “meia-hora” de um bem recente sábado, em que, em pouco tempo, se confrontou: com um autocarro em claro excesso de velocidade e que ostentava a conformidade com dterminadas regras de qualidade; com um marco de correio em grande parte vandalizado e que não proporcionava qualquer indicação de horário de recolha da correspondência (e sugeriu serem os CTT uma instituição daquelas que mais deviam/podiam garantir uma certa e crucial permanência de valores cívicos); com um condutor a estacionar o carro no passeio, obrigando-o a ir pela estrada e tendo lugar de estacionamento logo ali; e, finalmente, ao abrir o jornal ter-se deparado com uma afirmação em que se referia que mais do que o bom senso o que importava era cumprir a lei.



Fig. 06
São pistas que Trigo associa, directa e indirectamente, aos problemas que hoje em dia se colocam na sociedade, que a irão marcar, fortemente, nos tempos mais próximos e que têm de merecer respostas positivas e eficazes; e a propósito desses exemplos Teixeira Trigo reflectiu, mais um pouco, com a plateia sobre temas aos quais irá, sem dúvida, voltar em próximas intervenções.

Depois, e a propósito de algumas citações (a propósito), o palestrante, bem à sua maneira prática e natural, foi deixando mais algumas ideias que considera de ter em conta seja no LNEC, seja no quadro social em que, tal como acredita Trigo, o LNEC deverá continuar a ter um lugar de primeira linha.

Em seguida, o autor desta síntese das ideias expressas pelo palestrante, limita-se, praticamente, a uma transcrição das citações por ele feitas, na ordem em que foram feitas, embora quase sempre uma transcrição parcial, mas que se quer sempre significativa em termos das ideias assim lançadas.



Fig. 07
De Armando Lencastre referiu que “a Engenharia é a Ciência-Arte, que apoiada na Matemática e na Física, mas também no bom-senso, resolve problemas relacionados com o bem-estar em favor da dignidade das pessoas.”

De João Lobo Antunes a ideia de que “quando as pessoas não confiam umas nas outras só cooperam sob sistemas de regras e regulamentos formais ...”

De Marçal Grilo, e do Encontro Nacional sobre Qualidade e Inovação na Construção, no LNEC em 2006, a ideia de que os sistemas de qualidade se destinam a suprir a falta de cultura de qualidade, substituindo-se a boa prática por bons procedimentos.

De José Manuel Moreira e do Congresso Nacional de Estruturas de 2002, a noção de que “a qualidade das obras só é sustentável se apoiada na qualidade humana de pessoas capazes de sonhar e projectar obras úteis e belas; mas também de acompanhar a sua realização, com competência, técnica e ética ...”

De Ferry Borges o entendimento de que “os princípios da moral e da justiça, expresos sob a forma de ética, devem sobrepor-se e condicionar as formulações utilitaristas.”

E novamente de Armando Lencastre e das suas “Memórias Profissionais – Meio Século ao Serviço da Engenharia”, a seguinte escala de classificação ética:
- “no baixo nível ético estariam os que se orientam por razões egocêntricas;
- menos baixo seria o nível dos que já reconhecem os interesses das empresas em que trabalham;
- mais elevado seria o daqueles que juntam aos valores anteriores os interesses da sociedade em que se inserem;
- o mérito máximo seria dos que subordinasse toda a sua actividade ao aumento da dignidade da pessoa humana.”

E, finalmente, de Einstein, e no que se refere ao conteúdo do ensino, a noção de que não chega ensinar a alguém uma especialidade, pois são igualmente necessários valores essenciais, designadamente, de beleza e de moral.



Fig. 08
Os vários Prémios obtidos por Teixeira Trigo ao longo da sua longa prática profissional, que pretende agora retomar, foram apontados, sumariamente, e numa pespectiva que sublinhou a importância que, para ele, teve e tem o trabalho em equipas multidisciplinares e muito qualificadas, em que muito se discute, da construção aos acabamentos, e até ao próprio desenho da arquitectura; pois através da discussão pode-se aprender a ver melhor determinadas realidades e consegue-se, sempre, aprender, um pouco mais, de outras disciplinas que confluem em objectivos comuns de construção da cidade (reflexão desenvolvida pelo autor a partir deste ponto da intervenção de Trigo).

E a satisfação com que Trigo se refere a muitas das suas obras liga-se, objectivamente, aos seguintes aspectos de projecto e obra: qualidade das equipas; dimensão dos problemas; resultado no que se refere a qualidade estética; e reconhecimento pela sociedade.

Um outro tema apontado foi a importância da análise das construções sob forma exigencial. Da habitação á cidade, a partir da definição de critérios de análise – ex., durabilidade , estética, economia, durabilidade – e considerando que cada tipologia de edifícios tem exigências específicas - ex., habitação, escolas, universidades, hotéis, equipamentos sociais, centros comerciais, templos, rodovias, ferrovias, captação de águas, etc.. E importa sublinhar que este leque tipológico, com terminologias próprias, foi também caminho de Teixeira Trigo nas suas diversas facetas profissionais, colaborando na tradução em regras dos ensinamentos que a experiência vai permitindo acumular; mas, como sugeriu o palestrante, nem tudo pode/deve ser passado de uma forma directa entre a prática e a forma legal, forma esta que, depois, tem tendência a ficar “congelada em Diário da República”.



Fig. 09
Teixeira Trigo apontou ainda, sumariamente, as múltiplas ferramentas utilizadas no processo de aplicação da Marca de Qualidade LNEC, reflectindo um pouco sobre a imprtância deste processo e sobre as suas complexidades, que decorrem, em boa parte, considera ele, de se visar, ma Marca e em outros processos de controlo da qualidade, um mecanismo de controlo de todas as intervenções na obra, situação que se revela, habitualmente, pouco agradável para todos os intervenientes; e apontou que se aceita razoavelmente bem a revisão de um qualquer trabalho desde que não se apontem erros específicos. E estes erros, sublinha Trigo, são quase sempre decorrentes de deficiências quanto a definições de prazos, ausência de acompanhamento e deficiente definição de responsabilidades.

Trigo terminou com um pequeno apontamento de problemas actuais em que destaca o aumento do peso do estado e o excesso de normas, que considera constituir factor propício para mais ocasiões de corrupção.

As preocupações que aponta visam os centros das nosssas cidades e os espaços exteriores públicos, que considera em “estado de decrepitude”, exceptuando-se de tal estado as pessoas que os habitam.



Fig. 10
E deixa o desafio da racionalidade e da capacidade de actuar com lógica e com rapidez, considerando que em alguns casos há que avançar para demolições parciais ou totais. Uma racionalidade que Trigo defende dever ser marcada pela clareza, pela capacidade de discernimento e pelo reforçado desenvolvimento da formação, pois Teixeira Trigo diz não estar nada preocupado com o excesso de formação no sector da construção, seja no respectivo aprofundamento seja em número de pessoas formadas. Trigo diz que “não há formação excessiva, pode haver é formação enviezada e inadequada às necessidades da sociedade.”

Como se referiu no início deste texto ele não é um relato fiel da “aula” de Teixeira Trigo no LNEC a 29 de Maio de 2007, e sublinho que o termo “aula” pedi-o de empréstimo ao seu velho amigo e parceiro de trabalhos Teotónio Pereira, que assim a designou. Este texto contém, apenas, aquilo que ouvi da sua “aula” e não há melhor receita para fixar o que se ouve do que a escrita; e também por isso o fiz.
Mas para conhecer o verdadeiro “texto” de mais esta excelente “aula” de Teixeira Trigo teremos de esperar que ele passe a limpo as suas notas, cuja consulta, que se agradece, foi essencial para o enquadramento destes apontamentos pessoais.

Lisboa, Encarnação/Olivais Norte, 14 de Junho de 2007-06-04
Notas e imagens de ABC
Edição de José Romana Baptista Coelho

quinta-feira, junho 07, 2007

143 - 20 anos de habitação social portuguesa – artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 143

 - Infohabitar 143


INH, vinte anos de habitação de interesse social em Portugal, de 1984 a 2004


Nota prévia
Numa referência destacada à recente transformação do Instituto Nacional de Habitação (INH) em Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), entidade esta que se saúda e à qual se desejam os melhores êxitos e as maiores felicidades, apresenta-se, em seguida, com um mínimo de alterações, o texto que baseou a intervenção do autor na sessão de apresentação do livro, intitulado “INH, 1984-2004, 20 anos a promover a construção de habitação social”, que teve lugar em Lisboa, na Torre do Tombo, em 26 de Maio de 2006. Este estudo, que foi editado pelo INH e desenvolvido pelo LNEC, em estreita colaboração com um amplo conjunto de técnicos do INH, integra uma síntese técnica da actividade de promoção de habitação levada a cabo pelo INH durante os seus primeiros 20 anos de funcionamento (de 1984 a 2004), num período total de actividade que atingiu os 23 anos em Maio de 2007.





Fig. 00: um dos conjuntos destacados no último Prémio INH, de 2006; uma promoção privada na Gala, Figueira da Foz, 81 fogos; projectistas Arq. Duarte Nuno Simões, Arq. Nuno Simões, Arq.ª Joana Barbosa e Eng. Pinto Martins.

Perfil geral do estudoSalienta-se, em primeiro lugar, que a razão porque se optou por um leque bastante amplo de casos, é que houve uma noção comum de que é bem diferente fazer um conjunto habitacional, por exemplo, numa cidade importante, ou fazê-lo numa zona afastada e por vezes tecnicamente menos equipada. Não é que se considere que tudo o que se apresenta seja de referência arquitectónica, mas há a certeza de que tudo o que se apresenta neste livro configura uma qualidade habitacional com um sinal claramente positivo e que corresponde a uma boa evolução da habitação de interesse social em Portugal.
Procurou-se, assim, fazer um livro útil, de registo comentado da diversificada experiência na habitação a custos controlados (HCC) entre 1984 e 2004, sem se esquecer o que aconteceu antes, em Portugal, nesta matéria da habitação de interesse social, pois para haver presente e futuro, tem de haver passado.





Fig. 01: Bairro Social do Arco do Cego, Lisboa, iniciado em 1918 (e com um muito longo período de construção), projecto dos arquitectos Edmundo Tavares e Frederico Machado; um dos primeiros “bairros sociais” portugueses e com uma dimensão importante (quase 500 fogos).

Estrutura do estudo : a promoção apoiada pelo INH na pequena história da habitação de interesse social portuguesa
O trabalho é iniciado com a fundamental referência aos projectistas coordenadores, promotores e construtores dos mais de 250 conjuntos residenciais que representam, neste livro, a promoção financiada e apoiada pelo INH nos seus vinte anos de actividade, entre 1984 e 2004.

Depois da apresentação e do enquadramento geral do tema, desenvolvem-se algumas reflexões sobre o conceito de habitação com qualidade e custos controlados e sobre o interesse do registo das boas práticas.

Faz-se, em seguida, a apresentação sintética de vinte anos de actividade do Instituto Nacional de Habitação (INH).
Depois procede-se a uma abordagem técnica resumida da promoção de habitação de interesse social, em Portugal, no período entre 1918 e 1984, que antecedeu a criação do INH, privilegiando-se, quer o apontar da sequência das instituições e organismos que têm sido responsáveis, em Portugal, pela promoção de habitação de interesse social, quer algumas reflexões gerais sobre os respectivos resultados, designadamente, quanto à aliança entre qualidade arquitectónica e satisfação residencial.

Em seguida apresenta-se o Prémio INH, através da apresentação da sua metodologia, baseada no contacto directo com as habitações habitadas e em reuniões de discussão e análise com a presença do júri e dos promotores, projectistas e construtores – foram feitas, até 2006, 568 acções deste tipo – e na caracterização do seu papel, considerado positivo e significativo, na dinamização das boas práticas habitacionais, seguindo-se uma pequena “viagem” pela evolução dos diversos tipos de promoção de HCC ao longo das várias edições do Prémio.

Finalmente desenvolve-se, em três grandes capítulos – cada um deles referido a um dos tipos de promoção de HCC (municipal, cooperativa e privada) – a apresentação, ano a ano, ao longo de vinte anos de actividade do INH, de mais de 250 casos individualizados da promoção habitacional financiada e apoiada pelo Instituto, salientando-se os respectivos projectistas, promotores e construtores, e sintetizando-se, para cada uma das promoções, as respectivas características urbanas e arquitectónicas residenciais, acompanhadas por imagens fotográficas e alguns elementos dos respectivos projectos.

Optou-se por uma apresentação ampla e com sinal positivo, de uma grande diversidade de situações e tipologias urbanas e arquitectónicas e, também, por uma estruturação anual, que integra as três modalidades de promoção (municipal, cooperativa e privada). Esta opção baseia-se, essencialmente, em ter-se privilegiado um tipo de livro com carácter intermédio entre o manual técnico e a apresentação de maior divulgação, de forma a poder-se obter, assim, um máximo de utilidade na sua utilização.

Como remate do trabalho faz-se o apontamento de algumas notas conclusivas ligadas ao que se julga poder ser a sua utilidade e o seu potencial no desenvolvimento de estudos práticos e aprofundados sobre a aliança que as tipologias de arquitectura urbana podem e devem proporcionar entre a qualidade do respectivo desenho doméstico e urbano e a satisfação residencial e cívica dos respectivos habitantes.




Fig. 02: o Bairro de Ramalde, no Porto, cerca de 1955, uma obra do Arq. Fernando Távora e “a primeira referência às propostas do movimento moderno no âmbito da habitação económica”, nas palavras do Arq. Francisco Barata.

Não há presente, nem futuro, sem passado

É infelizmente corrente começar ciclicamente tudo ou quase tudo de novo, mesmo que a experiência acumulada tenha um claro sentido positivo. Mas, como já se disse aqui, não há presente, nem futuro, sem passado. E para haver passado tem de haver registos, análises e divulgações do que foi feito.
não há futuro sem memória viva. Não há, realmente, futuro sem memória, nem há futuro sem uma memória viva, portanto estruturada e ponderada.

Não é admissível continuarmos a pensar tudo de novo quando se desenvolve uma nova intervenção residencial, isto não devia ser possível quando tanto já foi feito em termos de habitação e urbanismo com interesse social, em Portugal – num período de cerca de 85 anos – e nos mais de 100 anos de habitação social na Europa.

A história da habitação de interesse social é feita, naturalmente, de progressos e retrocessos, e a utilidade, de primeira linha, de uma ferramenta de divulgação, como este livro, é mostrar claramente, a quem queira ver, que é possível fazer habitação com controlo geral de áreas e de custos, e com um positivo controlo da sua qualidade arquitectónica; e, mais do que isto, que é possível fazê-lo, sem quaisquer tipos de estigmas negativos em termos de imagem urbana, conteúdo funcional e solução tipológica; ver para crer...

Naturalmente, quem conheça a evolução das três linhas de promoção de HCC – municipal, cooperativa e privada –, percebe, ao longo do correr das páginas deste livro, a flutuação da qualidade e da quantidade dos diversos tipos de promoção; mas quem conhece esta história conhece-lhe a sua evidente qualidade global crescente, que é o que importa aqui e agora salientar.

Alguns aspectos que caracterizaram os três tipos de promoção de HCC:

A grande diferença entre a intensa actividade e qualidade da promoção das Cooperativas de Habitação Económica, que marcou claramente o primeiro decénio e o início do segundo decénio de funcionamento do INH, mas que, a partir daí, foi reduzindo gradualmente essa mesma actividade no domínio da HCC. Condição esta muito empobrecedora da diversidade da oferta habitacional e que muito prejudica a fundamental miscigenação social e física em cada conjunto residencial; e há aqui que sublinhar que se houvesse uma análise pormenorizada dos cuidados de gestão e manutenção posterior à ocupação, esta promoção ficaria ainda mais em evidência.

O gradual mas claro crescendo de qualidade da promoção municipal, provavelmente associado ao gradual equipamento técnico dos municípios; e é de assinalar a grande qualidade e a verdadeira marca de exemplaridade que tem caracterizado, nos últimos 10 anos esta promoção municipal; um pouco herdeira da exemplaridade da promoção cooperativa dos primeiros 10 anos.

Quanto à promoção privada bastará dizer que ela também foi responsável por algumas das melhores soluções desenvolvidas, nos últimos vinte anos, embora num reduzido número de casos.

E o desenvolvimento de grandes quantidades de fogos para realojamento de pessoas que viviam em barracas, realizado no âmbito do PER, que marcou o segundo decénio da promoção de HCC e que provocou retornos pontuais, mas negativos, de grandes concentrações. Sobre esta problemática há que destacar que não deveria ser possível repetir maus exemplos, que todos sabemos irão reflectir-se em muito negativas consequências sociais para as populações realojadas e para as de acolhimento e, afinal, há casos de municípios que fizeram muito bem, intervenções de pequenas escala e bem integradas, mas também fizeram mal, conjuntos massificados e inadequados aos seus habitantes.




Fig. 03: as belíssimas primeiras fases da EPUL no Restelo, Lisboa (de 1973 a 1985); projecto urbano dos arquitectos Nuno Portas e Teotónio Pereira e do paisagista Gonçalo Ribeiro Telles; projecto de edifícios dos arquitectos Teotónio Pereira, Pedro Botelho e João Paciência.


Aprender com as boas práticas e disseminar as boas práticas habitacionais

Falemos então da relação directa entre esta publicação e algumas das actividades desenvolvidas pelo INH, entre as quais se destacam:

A realização de fóruns e acções de formação, acções estas em que houve muito frequentemente a colaboração activa de investigadores do LNEC e, ultimamente, do Grupo Habitar.

A Promoção de um prémio anual, que chegou já à 18ª edição e que se caracteriza por visitas a todos os conjuntos candidatos, incluindo-se sessões de apresentação, discussão e análise local das opções escolhidas; actividade formativa e informativa que já está próxima de chegar às seis centenas de acções locais.

E a edição anual do catálogo do Prémio, revestida de um importante carácter técnico, e complementada pela muito útil publicação dos chamados Casos de Referência, também já com muitos casos editados; iniciativas estas coordenadas pelo Arq. Rogério Pampulha;

Refiro estas iniciativas do INH, porque tenho a convicção que o trabalho que hoje se apresenta constitui uma peça de remate, que complementa estas várias actividades.

Quando iniciei a elaboração do livro pensei que uma das suas principais utilidades seria ajudar a que fosse mais difícil poderem desenvolver-se retrocessos em termos de uma habitação de interesse social que se deseja funcional e culturalmente qualificada. O que quero dizer com isto é que uma informação sistematizada como a que está agora disponível, neste livro, na mão de projectistas e de responsáveis pelo desenvolvimento habitacional, constitui uma ferramenta que, para além do útil aspecto do apontamento de caminhos e de ideias, ajuda a consolidar a noção de que “a fasquia” da qualidade residencial global da habitação de interesse social chegou já a um nível relativamente elevado, e que há uma grande diversidade de modelos residenciais e urbanos possíveis.

Combatem-se assim dois fantasmas negativos que sempre assombraram cada nova promoção de interesse social: a ideia de que este tipo de iniciativa tem de ter uma imagem global específica e, tantas vezes, negativamente discriminada; e a ideia de que a habitação de interesse social tem de se cingir a um leque tipológico reduzido e pouco imaginativo.

Julgo que este é um papel essencial deste livro, se estiver presente em muitas mesas de trabalho e for verdadeiramente usado, como se deseja, por muitos colegas; e já agora aproveito para dizer mais alguma coisa neste sentido, é que o leque de soluções apresentadas pode também servir, em todo o país, como mais uma referência para a promoção habitacional da iniciativa privada, numa perspectiva em que fará pouco sentido que esta habitação possa oferecer resultados construídos com uma qualidade global inferior à patente nos muitos casos apresentados de HCC.

Outra utilidade deste livro é servir de elemento de intercâmbio e de disseminação de experiências seja dentro do espaço lusófono seja na UE, seja com os países geográfica e culturalmente ligados a Portugal; é possível aprofundar agora uma tal troca de experiências, pois passa a haver uma ferramenta ilustrada e bilingue, e todos ganharemos com essa divulgação; chega de viver de costas voltadas e chega de repetir experiências, quando podemos saltar etapas, pois os casos residenciais são específicos, mas têm frequentemente, importantes aspectos comuns.





Fig. 04: no Prémio INH, ao longo de 18 edições, realizaram-se centenas de reuniões de debate e de crítica como esta na inagem, que reuniram, em cada local e após a visita a cada conjunto residencial e urbano, os membros do Júri do Prémio (júri multidisciplinar) com os respectivos projectistas, promotores e construtores, numa inestimável acção de formação/informação e disseminação de experiências.

Ensinamentos da Habitação de Interesse Social

Nesta matéria da experiência, a história da habitação social na Europa e em Portugal deu-nos soluções inovadoras, designadamente ao nível do habitar humanizado, num rico filão de arquitectura residencial e urbana, cujas potencialidades foram ainda pouco exploradas. Exemplifica-se isto com um exemplo concreto:

No início da promoção de interesse social em Portugal, no lisboeta Bairro Social do Arco do Cego, lançado em 1918, foram desenvolvidas bandas super-densificadas de pequenos unifamiliares agrupados costas com costas e em ruas contínuas, que, hoje em dia, passados que são cerca de oitenta e cinco anos, continuam a ter uma extraordinária procura; diga-se que é por causa do sítio, com certeza que também é, mas as áreas das casas são bem reduzidas – as típicas da “habitação social” – e não há garagens, nem outros “luxos”.

Hoje em dia, alguns conjuntos de habitação de interesse social que marcaram a história desta promoção começam a ser considerados como marcos culturais da sociedade e da cidade.

Afinal, e considerando a grande variedade e qualidade das soluções de habitação apoiada que se conhecem na Europa é possível defender, tal como referem Giovanni Ottolini e Vera De Prizio, que “a reduzida qualidade funcional e de desenho de muitos edifícios habitacionais não depende de razões de custo, mas de carências de projecto e de estereótipos de produção.” (1)
E podemos citar Monique Eleb, quando esta refere que “o alojamento de luxo não oferece hoje em dia um modelo de habitar e isto acontece há decénios”, e, tal como diz a autora, “as diferenças entre habitações de luxo e sociais têm menos a ver com aspectos de estruturação e distribuição e mais com a localização, expressão das fachadas ou utilização de certos materiais.”(2) – e eu diria que esta é uma frase-chave, apenas lhe junto a importância que tem o adequado desenvolvimento e equipamento do espaço exterior; uma árdua batalha que foi travada e em boa parte já ganha pelo INH.

Tal como o Arq.º George Ferguson, presidente do Royal Institute of British Architects (RIBA), referiu, há pouco tempo, “uma escola melhor desenhada leva a um melhor ensino, e uma casa e um escritório melhor desenhados resultam em pessoas mais felizes.”(3)
Se assim for, e considerando conjuntos habitacionais frequentemente dedicados a pessoas socialmente desfavorecidas, é natural que a promoção de habitação de interesse social, possa assumir um papel de relevo como ferramenta de apoio ao desenvolvimento pessoal e social dessas pessoas e das respectivas vizinhanças e comunidades locais.

Tem, assim, de ficar bem claro que viver numa obra de boa arquitectura residencial é uma experiência que influencia muito positivamente toda a nossa vida; um tema hoje bem actual quando se está, finalmente, no caminho certo da arquitectura para os arquitectos. Trata-se de um facto conhecido, mas parece que tem sido ainda pouco interiorizado pela própria sociedade, em termos da importância que tem no que se refere à evolução de soluções formais e funcionais em ligação, por um lado, com a história da cultura e do sequencial enriquecimento do nosso património urbano, e por outro, com os aspectos da satisfação das necessidades e desejos de uma grande diversidade de grupos socioculturais.

Não irei avançar mais nesta matéria, quero apenas alertar para a importância que tem poder-se numa boa arquitectura, uma condição que é, realmente, indutora de alegria. Nesta perspectiva faz-se no livro uma rápida síntese da sequência de soluções que marcaram a história da habitação de interesse social portuguesa, destacando-se, naturalmente, o desenvolvimento de soluções arquitectónicas bem qualificadas e humanizadas, como é o caso:

- do ainda hoje inovador grande bairro de Alvalade, em Lisboa, caracterizado por ser um conjunto integrado de habitação para vários grupos sociais e de equipamentos colectivos e serviços dos mais diversos tipos, mas bem harmonizados, uma verdadeira cidade viva e atraente, marcada por uma arquitectura urbana bem pormenorizada;

- e como é também o caso do mais amplo e completo exemplo residencial modernista que existe em Portugal, o bairro de Olivais Norte, também em Lisboa, com a sua aliança entre qualidade arquitectónica e satisfação residencial; e sublinhe-se que o urbanismo de Olivais Norte respeita regras, bem actuais, de biodiversidade, durabilidade, coerência urbana e natural, favorecimento da insolação e da ventilação natural nos fogos, integração do tráfego de peões e veículos, e harmonizada integração de diversos grupos sociais.

Um conjunto de aspectos todos ligados à, tão actual, sustentabilidade urbana e residencial.




Fig. 05: o conjunto urbano com 330 habitações do Alto da Loba, em Paço de Arcos, promovido pela Câmara Municipal de Oeiras em 1993, com projecto dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Pedro Botelho.

Lançar algumas reflexões sobre a habitação de interesse social

Apontam-se, agora, muito brevemente, algumas questões fundamentais, colocadas por ilustres projectistas do habitar; começo por Charles Moore:

“A casa deveria constituir o centro do universo para aqueles que a partilham. Resolver o puzzle para o centro do universo de uma única família é uma tarefa complicada, cheia de sensibilidades particulares, gostos pessoais e necessidades específicas, para não falar em orçamentos. Mas articular dezenas, ou até centenas destes centros, conjuntamente, para serem habitados por pessoas cujas identidades geralmente não são conhecidas e que estão em constante mutação, aproxima-se de uma situação sem esperança de resolução... Muita da nossa prática tem sido neste mundo ténue, tentando desenvolver a perspectiva na qual as formas físicas e os espaços podem produzir um sentido de lugar, e tentando desenvolver um quadro no qual os próprios habitantes proporcionam boa parte da energia para o acto do habitar.” (4)

E é ainda Moore que nos diz: “Estou contra as atitudes que fazem de edifícios com potencial para comunicar com os seus habitantes, edifícios mudos. Estou contra a rápida homogeneização do lugar. Acredito que este silêncio é imposto pelo fazer edifícios sem cuidado, e multiplicando uma tal falta de cuidado sem qualquer preocupação. O resultado foi que os edifícios, quando tornados mudos, ficaram tão desinteressantes, que os habitantes deixaram de tomar atenção neles, deixaram de se preocupar com eles.”(5)

Uma questão que foi também abordada numa conversa editada, há já alguns anos, na revista Arquitectura, e em que se faz uma aproximação à aparente naturalidade e simplicidade da boa arquitectura doméstica:
(dizia Hestnes Ferreira) – “Aquela ideia da casa, muito ligada até aos românticos, e sei lá, ao Thoreau, o tipo que vai para a floresta, corta a árvore, arranja as pranchas, faz a sua casa e ali, ali é a sua casa; é uma ideia que continua, a estar presente, culturalmente ...
(dizia Manuel Vicente) – Afinal uma casa é boa para uma família quando for boa para todas, não é? Mas isto não é o elogio do anónimo mas antes da extrema qualidade, a universalidade pela qualidade e não a universalidade pelo «éffacement», pelo apagar.
(dizia Bravo Ferreira) – O neutro ... o neutro é chato em qualquer situação, é sempre cinzento...
(dizia Manuel Vicente) – Do neutro ninguém se apropria... uma pessoa só se apropria daquilo que ama. Uma pessoa não pode amar uma coisa que não seja nada.
(dizia Hestnes Ferreira) – E quando visitamos uma casa do século passado e ficamos deslumbrados com certo tipo de espaços e gostamos mesmo de ir para lá, isso é mesmo um sintoma de que aquilo transcendeu a família para quem foi feito, continua a sugerir e se calhar já foi utilizada de mil e uma formas, já teve mil e uma jarras diferentes em mil e uma mesas diferentes.
(e concluía Bravo Ferreira): restou-lhe sempre a qualidade, e essa é que está sempre.” (6)

E, finalmente, nesta matéria, lembremos Távora (em “Da organização do espaço” ):
“Projectar, planear, desenhar devem significar encontrar a forma justa, a forma correcta... projectar, planear, desenhar não deverão traduzir-se para o arquitecto na criação de formas vazias de sentido...” (p. 74).
“Para além da sua preparação especializada – e porque ele é homem antes de arquitecto – que ele procure conhecer não apenas os problemas dos seus mais directos colaboradores, mas os do homem em geral. Que a par de um intenso e necessário especialismo ele coloque um profundo e indispensável humanismo. Que seja assim o arquitecto – homem entre os homens – organizador do espaço – criador de felicidade” (p. 75).

Acabei de citar; e sublinho esta renovada referência à criação de felicidade com a arquitectura.



Fig. 06: o estimulante e bem pormenorizado conjunto de 72 fogos promovidos pela Cooperativa de Habitação e Construção de Cedofeita (HABECE), em 1994, projecto dos arquitectos João Pestana, Chaves de Almeida e Fernando Neves.


Notas sobre o futuro da “habitação de interesse social

Avancemos agora com algumas notas, muito breves, sobre o futuro da habitação de interesse social e comecemos com o que se julga ter sido já conseguido; apontam-se seis aspectos:

1. Assumir-se o espaço exterior como espaço do habitar, que merece, portanto, acabamento, equipamento e manutenção; uma conquista difícil do INH, ao longo da sua vida, mas já bem conseguida, embora ainda mereça aprofundamento.

2. A muito rica diversidade e adequação local, que marcou, por todo o país, as muitas promoções de HCC apoiadas pelo INH e desenvolvidas por municípios, cooperativas e empresas; embora o verdadeiro fantasma do projecto-tipo ainda, por vezes e pontualmente, subsista ou renasça.

3. O desenvolvimento em todos os tipos de promoção de HCC de um número significativo de verdadeiros casos residenciais e urbanos globalmente exemplares, em que se alia qualidade arquitectónica, construtiva e apropriação pelos moradores.

4. A tendência crescente, embora ainda pouco marcada, de desenvolvimento de soluções bem caracterizadas, integradas e valorizadoras dos respectivos sítios; uma tendência que é preciso reforçar.

5. A dimensão tendencialmente reduzida dos conjuntos, muitos deles até cerca de 50 a 100 fogos, portanto favoravelmente integráveis; embora aqui haja ainda que lutar contra as críticas fugas à regra, marcadas pela concentração social e ainda por projectos-tipo sem justificação.

6. E um sexto aspecto que se liga à pequena dimensão e que é a positiva tendência de aproximação às características socioculturais dos habitantes, aliada à descoberta das virtudes de uma diversificada mistura de tipos de habitações e de grupos de habitantes.

Sobre o que há para fazer, sublinha-se o seguinte comentário de Nuno Teotónio: “há poucas décadas atrás praticava-se na habitação social uma arquitectura de ponta, que enfrentava os problemas com soluções inovadoras” (7); ... e, sobre isto, e avançando mais um pouco, partilha-se a opinião de Francesc Peremiquel, relativamente à actual escassez de inovação tipológica residencial, que deveria ser baseada no desejável repensar de funcionalidades domésticas e de relacionamentos urbanos (8).

Devem, assim, ser aprofundados aspectos, tais como: a caracterização dos modos de vida de diferentes grupos populacionais, a definição de programas gerais e específicos de exigências, a análise de soluções habitacionais aplicadas que tenham tido sucesso ou insucesso, e a caracterização pormenorizada de diferentes tipologias e agrupamentos habitacionais, por exemplo, no que se refere aos aspectos do convívio, da adequação à família e ao indivíduo e da gestão.

A este nível salienta-se ainda a urgência de se realizarem estudos práticos sobre o que pode ser o habitar dos grupos sociais mais fragilizados e a questão da adequada caracterização das pequenas tipologias, numa perspectiva que vise a sua efectiva integração na cidade.

Ao nível urbano há que privilegiar os agrupamentos de vizinhança, pois se no edifício habitacional muito já foi desenvolvido, na programação dos equipamentos colectivos e espaços públicos de vizinhança é vital um trabalho ponderado sobre que elementos de programa a considerar e em que relações preferenciais, diversificando misturas tipológicas de fogos, edifícios e espaços públicos. E sublinhe-se que se pensa quer em intervenções de raiz, quer em intervenções de regeneração urbana.

Pode dizer-se que muito de tudo isto tem a ver com um jogo de agregação tipológica com sentido amplo, que privilegia o micro-urbanismo e alguma inovação na conjugação entre células habitacionais – inovação esta muito ligada à adaptabilidade doméstica e aos possíveis serviços comuns; mas um jogo que tem de ter, simultaneamente, dois “clientes” a satisfazer: o habitante e a cidade, o bem-estar e a cultura.

E assim pode dizer-se que, hoje em dia, estudar a habitação de interesse social deve ser estudar a cidade e o modo como fazer cidade viva pois, como disse Manuel Correia Fernandes, “o modo mais natural de fazer cidade é (fazê-la) com habitação. E Correia Fernandes sublinha que “cidade sem habitação não faz sentido. E quando faz, é certo estarmos a falar de cidades «únicas» e talvez nem sequer estejamos a falar da cidade dos homens. Não são essas cidades que agora nos interessam. As que nos interessam são as cidades onde vivem os homens e onde podemos ler a sua história” (9) - acabei de citar.

E fazer cidade viva é saber construir no construído e fazer cidade socialmente integrada, imitando alguns dos aspectos que caracterizaram, tal como nos diz Teotónio Pereira, “os verdadeiros sucessos neste domínio que constituíram os bairros de Alvalade e dos Olivais em Lisboa; nestes casos, os programas de realojamento foram concretizados de uma forma integrada em áreas que foram objecto de outro tipo de promoção também da iniciativa do Estado e mesmo de promoção privada ... e cooperativa... Porque é aqui que se joga o futuro das zonas urbanas das áreas metropolitanas: ou se fazem planos integradores dos diversos estratos da população, através de modos de promoção variados, ou irá acentuar-se a segregação social do espaço urbano com todas as consequências perversas que daí decorrem.” (10)



Fig. 07: um pormenor do muito humanizado pequeno Bairro do Telheiro, em S. Mamede de Infesta, uma promoção da Câmara Municipal de Matosinhos, em 2002, com projecto do Arq. Manuel Correia Fernandes.

A importância de humanizar a habitação

E chegamos, por fim, ao centro da questão, que é a humanização da habitação, pois tal como escreve, Joaquín Arnau: “A substância dos hábitos constitui a habitação. E a habitação é a função que propicia e decanta a Arquitectura. Como a visão na Pintura, a audição na Música, a leitura na Poesia ou o movimento na Dança, a habitação afina-se, magnifica-se e resplandece com a Arquitectura. Que é o esplendor da habitação. Diferente de outros hábitos, como os de ver ou ouvir, complexos mas concentrados num só dos sentidos, o hábito de habitar liga-se a todos eles. Na pluralidade das sensações, a Arquitectura assemelha-se ao Teatro. A habitação é assim o propósito principal da Arquitectura: a sua tese.” (11)

E continua Claire Cooper Marcus: "A casa pode ser um quarto ou uma habitação completa... e também pode ser um estado de espírito. Sentir-se em casa é sentir-se confortável, à-vontade, relaxado, rodeado, talvez, por aqueles que realmente nos percebem e se preocupam connosco... Para o homem-santo errante, estar em casa pode ser estar em qualquer parte do mundo, em quaisquer condições. Mas para a maioria de todos nós, seres humanos menos evoluídos, a existência de uma habitação permanente, onde nos possamos enraizar é, tanto uma componente necessária de segurança física, como uma expressão psicológica muito significante de quem nós somos." (12)

E a casa não pára na soleira, há que habitar o espaço público respeitando a sua natureza específica, tal como é apontada por Gonçalo Byrne: “A grande diferença da cidade para o edifício é que a cidade é uma obra que gera espaços compartilhados onde as pessoas estão condenadas a encontrar-se; é o espaço público. O facto de ser compartilhada justifica a gestão democrática, ou seja, a gestão que não exclui.“ (13)

E sobre o espaço público, sobre a sua importância e estimulante complexidade, apenas uma pequena frase de Eduardo Prado Coelho, que nos diz que: “- Há alguma coisa nessa actividade, que é o filosofar, que tem alguma afinidade com o caminhar …” (14)



Fig. 08: o conjunto de 91 habitações promovido pela Câmara Municipal de Lisboa na Travessa do Sargento Abílio, no Calhariz de Benfica, em 2001, com projecto do Arq. Paulo Tormenta Pinto.


Remates sobre a HCC portuguesa

Vou agora concluir. Muito se fez, em Portugal, ao longo dos últimos 22 anos de promoção de habitação de interesse social e antes deste período, desde os primeiros decénios do século XX, e é urgente estudar e aproveitar essas experiências, divulgando-se as boas práticas, aprofundando-se o conhecimento sobre as características e as potencialidades das diversas tipologias urbanas e residenciais, assegurando-se o desenvolvimento dos aspectos positivos, reduzindo-se ao máximo os negativos, e tudo se fazendo para que, cada vez mais, não haja retornos pontuais a erros passados, tais como os da concentração e segregação social e da monotonia e da tristeza de imagens.

Este livro é mais um passo nesta linha de estudos práticos, que importa prosseguir numa perspectiva de aprendizagem continuada, servida por um registo eficaz, por uma abertura ao diálogo e à cooperação multidisciplinar e pela referida divulgação alargada e comentada das boas práticas.

O INH e futuramente a instituição que lhe sucederá, o IHRU, podem contar com o LNEC, com o amplo leque disciplinar do seu Departamento de Edifícios e com o seu Núcleo de Arquitectura e Urbanismo para apoiar o desenvolvimento dos trabalhos sobre habitação apoiada em Portugal, tal como aconteceu no passado, um passado que vai já, longe, até à actividade das “Habitações Económicas.”

E nesta problemática é fundamental visar três aspectos-chave:

– Perceber que “a boa arquitectura dignifica quem a concebe e promove, dignifica o lugar onde se implanta, e dignifica os seus moradores” – nas palavras de Duarte Nuno Simões (intervenção na entrega dos Prémios INH 2000).

– Considerar a habitação como um problema urbano, cívico e político, pois, nestas matérias do habitar, e tal como refere Luís Fernández–Galiano, “precisamos de mais arquitectura, mas, sobretudo, precisamos de mais cidade.” (15)

– E precisamos de mais cidade viva e culturalmente válida e de soluções de habitar que sejam, tal como defende Teotónio Pereira, “instrumentos de igualdade de direitos de cidadania” (16), e precisamos de seguir o conselho de de George Patrix e “introduzir, nos programas habitacionais, valores sensíveis às aspirações do homem, ... ultrapassando o razoável e o funcional... voltando a dar um rosto humano ao espaço construído ... voltando a dar uma dimensão poética ao nosso ambiente envolvente” (Design et Environnement, 1973, p.165).

Termina-se com uma referência a esta última dimensão, num poema do madeirense José António Gonçalves:

“O arquitecto é um ser que caminha sobre a espuma das paisagens
e vive encantado pelas sombras que sobrevivem à flor da relva exactamente
no lugar onde as outras pessoas nunca passam
perguntam os mestres no cruzamento das traves onde
descansa o arquitecto
curiosamente maravilhados pelo silêncio
que se desprende das paredes
consumindo a casa toda a partir do traço exacto
que descai do tecto
em direcção ao corpo
da terra...
eis o arquitecto debruçado sobre a mesa com a aflição
dos guerreiros ...
o arquitecto é o abismo que atormenta o sonho”



Fig. 09: um dos conjuntos destacados no último Prémio INH, de 2006; uma promoção da Câmara Municipal de Matosinhos, em Matosinhos, 108 fogos projectados pela Arq.ª Paula Petiz.

Notas:
(1) Giovanni Ottolini e Vera De Prizio, “La casa attrezzata - qualità dell'abitare e rapporti di integrazione fra arredamento e architettura”, 1993.
(2) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997, p.17.
(3) Artigo de Rita Jordão Silva no Jornal Público de 29 de Novembro de 2004, citando George Ferfuson, Presidente do Royal Institute of British Architects na inauguração da nova galeria do Victoria and Albert Museum, dedicada a uma exposição permanente de arquitectura, num significativo retorno ao passado pois até 1909, e tal como se refere no artigo, “a arquitectura era a alma do Victoria and Albert Museum”.
(4) Oscar Riera Ojeda e Lucas H. Guerra, “Moore Ruble Yudell – Houses & Housing”, 1994, p. 12.
(5) Idem, Ibid.
(6) Raul Hestnes Ferreira (HF), Manuel Vicente (MV) e Vicente Bravo Ferreira, “Conversa à roda de uma casa”, Arquitectura, n.º 129, 1974, pp. 36-40.
(7) Nuno Teotónio Pereira – Escritos (1947 – 1996, selecção), p. 252.
(8) Francesc Peremiguel – Mètodes, instruments i tècniques pel projecte residencial, em Habitatge: innovació i projecte.
(9) Manuel Correia Fernandes – Anos 80 As Cooperativas de Habitação e o Desenho da Cidade, a Senhora da Hora em Matosinhos, p. 1.
(10) Nuno Teotónio Pereira – Tempos, Lugares, Pessoas, p. 38.
(11) Joaquín Arnau – 72 Voces para un Dicionario de Arquitectura Teorica, p. 99.
(12) Claire Cooper Marcus, "Self-identity and the Home", em "Housing: Symbol, Structure, Site", ed. Lisa Taylor
(13) Inês Moreira dos Santos e Rui Barreiros Duarte (entrevistadores), “Estruturas de mudança - entrevista com Gonçalo Byrne”, Arquitectura e Vida, n.º 49, 2004, p. 51.
(14) Eduardo Prado Coelho, “O inabsorvível”, Público - opinião, 17 Janeiro 2004
(15) Luís Fernández–Galiano, Editorial de “Arquitectura Viva”,” nº 97, 2004.
(16) Nuno Teotónio Pereira – Escritos (1947 – 1996, selecção), p. 252.

Editado por: José Baptista Coelho