sexta-feira, setembro 08, 2006

102 - LISBOA – cidade que quer ser UNESCO, artigo de Celeste Ramos - Infohabitar 102

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LISBOA – cidade que quer ser UNESCOBreve apontamento sobre estacionamento automóvel subterrâneo



Muito frequentemente o noticiário da televisão ou da imprensa escrita levanta "lebres" sobre problemas das cidades, um pouco de todas elas, mas sendo Lisboa e Porto sempre as vedetas já que são cidades-capital, o Porto capital do país atlântico e berço da solidificação da nacionalidade e reforço do país que somos ainda, e Lisboa capital do país mediterrânico e cais de embarque e desembarque do mundo e, ainda, capital do poder.




Fig. 1: Rossio, Maio 2005 – Monumentos, Cow Parade, trânsito e estacionamento para turistas.

Hoje também, 18 de Agosto, e ao fim de 3 meses de presença no espaço público, deixaram a cidade as 101 vacas da Cow Parade que lhe davam alguma novidade de arte na rua, alegria e diferença, tendo constado que de todas as cidades do mundo por onde se realizou a exposição, Lisboa foi o local onde teriam sido mais bem tratadas pelos habitantes, como que a mostrar que nem há nem vandalismo nem indiferença por este tipo de acontecimento que dinamizou a cidade e despertou o olhar dos que viverão um quotidiano mais monótono e rotineiro, já que Lisboa é uma cidade extremamente vandalizada não apenas com grafittis, impossíveis de extirpar, nos mais importantes e frágeis monumentos de calcário macio, para além de outros monumentos que estão durante anos tapados com extensos lençóis de publicidade que cobrem toda a fachada atestando, mas não garantindo, que estão a ser restaurados, provocando o maior distúrbio e poluição visual, como se já não bastasse o excesso de gigantescos painéis de publicidade ao mais insignificante produto, incluindo a publicidade em movimento de todos os transportes públicos sem excepção – mas não se vê publicidade a produtos culturais, nem cultura na rua, sendo que, entretanto, há legislação para a "poluição visual."
E se por caso algo de cultural "acontece" no verão, logo surgem imensos e desinteressantes palcos e barraquinhas nas praças (ou relvados da Torre de Belém) que deveriam estar sempre limpas e desimpedidas e que depois do espectáculo acabar ficam tempos sem fim antes que a autarquia decida retirá-las.
Assim poderia parecer que o cidadão comum é indiferente e selvagem mas lembremos a recente exposição de fotografia sobre Lisboa na Praça de Comércio, muito visitada, bem como a anterior exposição das gigantescas esculturas de Botero, acontecimentos que, de tão raros, caíram no esquecimento e é fundamental a sua renovação contínua já que Lisboa é uma cidade única possuindo cinco praças contíguas que poderiam ser o coração da animação cultural de rua.




Fig. 2: Botero na Praça do Comércio, 1998 – Foto: Dias dos Reis.


Interessante constatar que decorre em Edimburgo o Festival anual de Teatro de rua, iniciado em 1947 e que não apenas alegra a cidade durante três meses por ano, como atrai milhões de turistas sendo, duplamente, acontecimento cultural e de grande benefício para reanimação económica do local e do país em geral.
Hoje também, no programa de televisão "Alice no país dos Viajantes" a entrevista com alguém (António J. Gonçalves) que um dia começou, sem programar, a olhar o rosto do cidadão anónimo e aparentemente indiferente que viaja no metropolitano e começou a desenhá-lo, cidadão aparentemente distraído de olhar ausente e igual a quem está ao lado, tendo esta iniciativa conduzido não apenas a perceber a real diferença e peculiaridade de cada pessoa desenhada, de tal forma que se entusiasmou e repetiu, ao longo de três anos, a mesma procura do "rosto anónimo" nos metropolitanos em 10 cidades capitais do mundo nos cinco continentes.
Interessante porque a partir desta atitude sem finalidade que não apenas o seu prazer de desenhar, conduziria mais tarde a ter outro olhar sobre o cidadão-urbano e que o levaria até a decidir a profissão de designer, que tem hoje, pois que a partir desse simples impulso inconsciente o fez descobrir características pessoais até aí não reveladas.


Fig. 3: Rossio, Maio 2005 – Cow Parade.


Lisboa, onde parece que só acontece sempre a mesma coisa, dependendo de quem a olha, ou que o que existe estará organizado e institucionalizado até nos aspectos negativos, permite ainda acontecimentos especiais e novos despertares para quem se interessa pela "paisagem-humana", sendo que o autor citado, à medida que avançava na sua aventura por várias cidades do mundo captando o ritus de cada rosto, acabou por encontrar afinidades nos homens e mulheres das mais variadas condições culturais, tendo afirmado que aprendeu também, só pelo olhar, que não podia ultrapassar o limite do "privado" em pleno espaço público, silêncio interior de observado e observador, viagem que o levou além da rotina e permitiu ver uma faceta da "vida" do cidadão da cidade –, que interessante me parece este "despertar" pessoal.

As mesmas cidades do mundo são tanto úteros de germinação de saberes e cultura, de qualidade de vida e de alegria e bem-estar, como de actos de violação do mais importante da vida para além da democracia e que é a PAZ entre os países, como se a união das nações que protege os direitos humanos e a paz mundial já tivesse envelhecido a ponto de ser inútil qualquer Resolução para bem comum, lei mundial sem qualquer importância e conteúdo reduzida a artifício que está caindo por terra.
A cidade que não é ainda local de conforto para os habitantes residenciais e passantes, é no entanto um livro-de-história-viva e óbvia de cada país, actualizada com cada acontecimento, por sua vez livro-aberto e jornal-diário da evolução e aceitação-rejeição, conforto ou stress e comportamentos de que nas pedras e pelas pedras fala, e responde, à vida do quotidiano e nos vai informando como os mandantes vão ignorando o valor dos patrimónios construídos e imateriais que fazem a vida do homem da cidade e dela esperam condições para serem felizes e com ela evoluírem em vez de se degradarem.



Fig. 4: jornal diário de Lisboa I – Os eventos e as obras como cidade-efémera: partida do raly Lisboa-Dakar nos Jerónimos, castanhas e pastéis em Belém, festa do fim do ano na Pç. do Comércio e estaleiro da ampliação do Metro na Alameda.

O habitat do homem não se limita ao espaço físico da sua casa e rua, sendo que a sua evolução cultural e de cidadania radicando no espaço-tempo-vivência é, igualmente, legível em cada momento.
Relação íntima, contudo tornada tão inconsciente porque repetitiva e tal que a cidade espaço-físico envelhece e perde qualidade estética e cultural e com ela o cidadão apressado ou mais indiferente ou de viver penoso e triste, toma a degradação por osmose do lugar e habitua-se, por vezes esquecendo os seus valores mais humanizantes que podem até chegar à violência com o descontentamento acumulado que tem limites de "restauro."
A cidade-física desumanizada arrasta a desumanização comportamental do habitante individual e colectivamente porque, isoladamente, se confronta com a impotência de refazer-se a si mesmo e muito menos a própria cidade.
Como ser cultural o homem aprende no seu habitat mas também desaprende, colabora na dignificação e vitalização da cidade, ou na sua agonia.




Fig. 5: jornal diário de Lisboa II – A arquitectura como cenário do trânsito.

Vem este breve apontamento a propósito sobretudo da discreta notícia no CM de 16 de Maio de 2006 em que a comissária da dinamização da candidatura da Baixa Pombalina a Património da Humanidade, ameaçou demitir-se se fosse construído estacionamento automóvel subterrâneo no Largo Barão de Quintela, atitude que apelida de "torpe e inútil crime" e demonstra que "os autarcas que elegemos continuam a não saber governar a cidade histórica" (opinião igualmente exposta ao diário “O Público”).
Mas logo outra vereadora, mentora do comissariado, apresentou "alternativa" à construção desse parque de estacionamento.
Mas nunca foi discutido, ou tornada pública, a discussão do parque de estacionamento subterrâneo do Largo do Martim Moniz que, a seu tempo de construção, originou algum deslizamento da encosta da Mouraria (concurso de ideias 1981), para além de difícil solução de drenagem de águas pluviais, como não foi discutida a construção do parque automóvel subterrâneo debaixo da estátua de Luís de Camões (mas é certo que à rua Garrett lhe foi retirado carácter e dignidade com a sucessão de diferentes pavimentos e cotas), nem de outros dois de 5 pisos subterrâneos na Calçada do Combro, parques situados em zonas da cidade tão históricas como a Baixa pombalina, como o Bairro Alto, Bica, ou Alfama e Mouraria, como o Chiado e Largo de Camões, zonas que em fim de semana engarrafam durante longas horas a partir das 24h, para entrada dos jovens nos parques porque é a hora de início do seu fim-de-semana, o que impede, a horas ainda normais de qualquer cidadão andar na rua (por ser hora de saída de qualquer espectáculo), impedindo igualmente a circulação dos ainda existentes transportes públicos, de que se destaca o sobrevivente eléctrico que lá vai tocando para desimpedir caminho, sem conseguir.

Que alternativa?
Que espaço físico de Lisboa é alternativa à Lisboa histórica e aos dois eixos fundamentais do seu desenvolvimento (Av.ª da Liberdade-Fontes Pereira de Melo - Av.ª da República), que são auto-estradas urbanas que para além de se terem já tornado altamente perigosas para o peão foram inutilizadas para a habitação com túneis e uma quase total exclusividade de serviços?
Que espaço físico de Lisboa é alternativa se a Lisboa histórica é continuamente dizimada com túneis, desvios e "atalhos" de que o do Marquês é o mais recente e ainda mais gravoso do que os anteriores, desfazendo para sempre a imagem do orgulhoso Marquês que fez construir essa Baixa Pombalina, rotunda hoje reduzida à maior e mais intolerável pequenez urbana, ainda por cima situada num eixo que é espinha-dorsal da cidade desde que foi iniciado com o Passeio Público onde se passeava Eça de Queiroz para "olhar e ser visto"?

Quebrou-se a "espinha dorsal" irreversivelmente e, a seguir, vai-se partindo e desfazendo o "esqueleto" ou casco histórico da cidade em nome do desenvolvimento que tem tido como "matriz" geradora o acesso por automóvel e os locais para o seu estacionamento.
Desmantela-se a Cidade por causa do automóvel e do estacionamento com túneis, passagens desniveladas e nós viários, desde o interior urbano até às margens do rio, constituindo cortinas de floresta-betão que impedem a visibilidade da cidade longe e perto em geral, bem como dos mais carismáticos e identitários monumentos da cidade e, a seguir, desmantelam-se os bairros ainda carismáticos de Alcântara e beira rio para surgirem Torres que vão adulterando os belos sky-line da cidade de colinas que está entaipada de densos take-away conjuntos habitacionais em espécie de fast-arquitectura internacional sem desenho e sem alma.
Desmantelam-se os espaços públicos da cidade-mãe cujos habitantes se vêem compelidos a deslocalizar-se para os bairros periféricos, também históricos e de qualidade de vida e do ambiente, que igualmente se vão desumanizando com a densificação habitacional anónima, ou para fora da grande Lisboa, em processo imparável.


Fig. 6: acesso ao Parque subterrâneo das Portas do Sol em Alfama.


Os parques subterrâneos no miolo urbano central vão proliferando e competindo com as infra-estruturas gerais urbanas naturalmente enterradas e a que a modernidade acrescenta outras mais actuais, para além do Metropolitano, como se houvesse já outros "andares" subterrâneos da cidade.
Haverá alternativa para continuar a fazer solo-urbano em mais andares subterrâneos?
Haverá possibilidade de ter alternativa preenchendo a mesma área urbana densificando-a em superfície, preenchendo todos os espaços de respiração da cidade, e densificando também em altura acima e abaixo do solo? Alternativa à que contempla o automóvel e nunca o habitante, atitude que transvaza a cidade capital e se repercute até Bragança em cujo coração histórico o automóvel já conquistou o "subterrâneo"? O que contribui para a impermeabilização da totalidade do solo urbanizado sem espaço para entrar a chuva quando cai e se infiltrar e, por isso, originar enxurradas à primeira chuvada.

A impermeabilização dos aglomerados urbanos, pequenos e maiores, traz problemas de grande gravidade relativamente à água no solo e recarga das toalhas freáticas e, com mais andares subterrâneos, esse problema torna-se cada vez mais e mais grave, conduzindo a maior secura da terra, pois que a água que nela cai é rejeitada, mesmo nos jardins igualmente de pavimentos impermeáveis, ou nos magníficos separadores de trânsito centrais da maioria das ruas de Lisboa que, ou desapareceram para alargamento das faixas de rodagem, ou ficaram, mas porque no Inverno os automóveis aí estacionavam e se enchiam de lama, foram cobertos de betuminoso porque a "Árvore não é importante e a água da chuva também não" e sumir-se-á nalgum sumidouro qualquer e já está provado que sujos ou limpos não há sumidouros que cheguem porque para não haver enxurradas é necessários que os locais de drenagem absorvam a totalidade da chuva em 50% do tempo da queda pluviométrica.

A alternativa das cidades europeias (que ultrapassa a UE) e do mundo mais evoluído é cada vez mais o transporte colectivo e não o privado e que o seu uso nos centros urbanos seja regulado.
Cidade espaço-colectivo, espaço dos homens, de conforto e cultura, de andar na rua a pé ao sol e à chuva, a passear e a correr, a visitar monumentos e miradouros, já não existe (tornou-se refém do transporte privado), excepto nos bairros cada vez mais periféricos onde nascem novos bairros por vezes até "problemáticos" ou, então, condomínios altamente defendidos por sofisticada tecnologia, como se se vivesse em "prisões" fomentando um separatismo humano cada vez mais desaconselhável cultural e sociologicamente.


Fig. 7: jornal diário de Lisboa III – As ruas da Baixa pombalina como parques de estacionamento

Os centros mais nobres da cidade de Lisboa, que quer ser UNESCO apenas num bocadinho tão pequeno como a Baixa Pombalina que já nem sequer tem "vida" mas apenas a dos que aí trabalham ou nela desembocam para atingir locais de trabalho muito afastados, estão martirizados com o automóvel e os estacionamentos que se concentram cada vez mais nesses centros, em espécie de "condomínios-auto", a dialogar com os condomínios dos que da cidade histórica fogem para se concentrarem "emparedados", como se estes espaços fossem cada vez mais individuais e individualizados sem lugar para o COLECTIVO – unidades-colectivas individualizadas, ghetizadas – cidade fechada sobre si mesma e virando costas aos que vivem ainda "na rua que é livre" e que não virou ainda "auto-estrada urbana."


Fig. 8: jornal diário de Lisboa IV – O Tejo como monumento.


Lisboa auto-suicida-se como cidade, mas quer ser UNESCO ali apenas no que lhe resta, na Baixa Pombalina já tão decadente e desinteressante, cuja vida cultural, social e comercial já lá não está porque se "deslocalizou" também, porque os habitantes dali foram sendo expulsos para além do insolúvel problema do túnel do metropolitano que fez desaparecer o Cais das Colunas e que não tem solução à vista e é paisagem dolorosa de se olhar com os lixos acumulados e águas paradas, num espectáculo que define a maior degradação da forma de governar a cidade histórica capital que no séc. XVI era "modelo" de pujança e beleza e modernidade que a "europa" visitava para admirar o esplendor cultural e económico e até de moda.



Fig. 9: jornal diário de Lisboa V – As praças como auto-estradas:
Pç. Marquês de Pombal, Pç. da Figueira, Pç. do Oriente e Pç. dos Restauradores.

Que dignificação para o Espaço Unesco ? Grito de desespero? Esperança de conservação de uma página de história mas já sem "Cais das Colunas"? Tentativa de re-vitalização?
Será que Lisboa histórica e cultural a merecer ser UNESCO "se resume" à Baixa Pombalina? E a dois monumentos, o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, esta também já tão entaipada com nós viários que não se vê de lado nenhum e tal que para ser "descoberta" mesmo por quem habita a cidade, é necessário descobrir o mais complicado dos circuitos para lá chegar e nenhum deles pode ser feito a pé – cidade entaipada.
A vereadora que não queria o referido estacionamento automóvel subterrâneo tinha razão ao afirmar que "os autarcas que elegemos continuam a não saber governar a cidade histórica."


Maria Celeste d'Oliveira Ramos – Sábado, 18 Agosto 2006 – Bairro de Santo Amaro – também assediado como nunca pelo camartelo que derruba edifícios do séc. XIX ou outros de igual interesse que "datam" o bairro e a evolução e "idades" da cidade e que, assim, não passa de "um bairro-qualquer -incaracterístico" de tão maltratado pelos decisores e onde já não respira nem esta parte da cidade nem os residentes que assistem, impotentes, nesta última década, ao desaparecimento da qualidade da arquitectura e do ambiente e das perspectivas sobre o rio que estão definitivamente comprometidas, como se o rio já não fizesse parte integrante de toda a cidade.

Fotografias da arqtª Maria João Eloy e de Dias dos Reis.

18 Agosto 2006
Maria Celeste d'Oliveira Ramos

2 comentários :

Anónimo disse...

ADORO O VOSSO TRABALHO JÁ VI QUE SÃO PESSOAS QUE SE PREOCUPAM COM O MEIO AMBIENTE E ESTES SERES QUE FAZEM TUDO PRA O DESTRUIR,NÃO É! MAS MESMO ASSIM CONTINUEM A FAZER ISTO PORQUE EXISTEM POUCAS OU NENHUMAS PESSOAS A FAZÊ-LO!
ASS:APRECIADOR DO infohabitar...

Anónimo disse...

sou um leitor e grande admirador do vosso trabalho! gostava que soubessem que este tipo de blogs são muito raros e os que flam do mesmo assunto, só dizem barbaridades, portanto continuem com todo o mmeu apoio e acho que iam gostar das fotos que tirei há 2 horas.. se as quiserem liguem para:916204925 e perguntem por Eduardo Mendonça.
obrigado por serem tão bons apreciadores deste mundo sob-destruição!