Infohabitar,
Ano XIV, n.º 633
Artigo da Série “Habitar e
Viver Melhor” n.º CVI
Cantos e recantos domésticos: bases de mundos pessoais
por António Baptista Coelho
A nossa “casca de caracol”
Um dos aspectos que podem
transformar as nossas casas em sítios únicos, onde, tendencialmente, nos
poderemos sentir muito bem e verdadeiramente “em nossa casa”, a tal “casca de
caracol”, referida uma vez por Amália Rodriques, que é tão identitária e
apropriável como agradável e envolvente.
E esta “casca de caracol”
bem habitável e que acaba, também, por nos habitar, tem a ver, não só com a
capacidade de recheio/povoamento da “casa” pelos mais diversos elementos de
mobiliário/arquitectura de interiores e de recheio pessoal e recordação (ex.,
livros, quadros, memórias de viagens, ofertas de família/amigos, fotografias,
etc.), mas também com a constituição e repartição da “casa” em inúmeros
pequenos espaços e recantos apetecíveis para desenvolver as mais diversas
actividades mais ou menos úteis, mas sempre fundamentais, como é, por exemplo,
o sentar ali no canto, junto à janela, ou o tirar um livro da estante e
pousá-lo numa pequena mesa para o desfolhar, ou arrumar a colecção no final do
corredor naquelas prateleiras que foram feitas à medida, ou sentar, por alguns
minutos, para repousar num sofá-cama arrumado num qualquer canto de um
compartimento; e, depois, “a casa” vai-se tornando, naturalmente, “a nossa
casa”.
Os recantos vários que são
responsáveis pela base de identidade e pelos mundos pessoais domésticos
constituem naturais sequências ou malhas de agradável e diversificada
perambulação pela nossa casa, sentindo que nos podemos ir detendo, ao longo
dela, em muitos espaços ou “possibilidades espaciais”, com um mínimo ou,
idealmente, com um máximo de condições de conforto e de propostas de
actividades e subactividades ou microfunções.
Esta possibilidade de uso
prolongado, intenso, “sincopado” e disseminado da nossa casa tem, naturalmente,
muito a ver com as opções de mobiliário
e equipamento, mas tem também muito a ver com a capacidade microfuncional e a
adaptabilidade de recepção de mobiliário e de outros elementos de Arquitectura
de interiores, que é proporcionada pelos diversos espaços domésticos e pelas
suas respectivas margens de uso e de adaptabilidade, consideradas muito para
além dos respectivos perfis funcionais básicos.
Importa salientar que a
condição contrária a uma tal desejável possibilidade doméstica, marcada pela
identidade, adaptabilidade e agradabilidade, pode ser sintetizada pelo recurso
ao, infelizmente frequente, “mau exemplo” de habitações onde a sequência de
circulação/actividades é praticamente “única”, monótona e rigidamente
hierarquizada, e onde dificilmente conseguimos arranjar um sítio de permanência
agradável, assim como sítios a que possamos chamar “mais nossos”.
E estas, últimas, negativas
condições, tal como as positivas, não têm apenas a ver com aspectos de eventual
constrangimento por excesso de mobiliário (ele próprio, por vezes, também
absurdamente sobredimensionado), e/ou apenas por condições dimensionais muito
mínimas, pois há, até, condições mínimas domésticas “habitacionais” com
múltiplos espaços para uma agradável permanência como por exemplo acontece em
caravanas e iates; tem a ver, portanto, essencialmente com a disponibilização,
muito natural, quer de “folgas” dimensionais e de capacidade de apropriação,
quer de alternativas de usos e de multiplicidades adaptativas, que são todas
elas condições que muito dependem de uma ampla qualidade do projecto geral e
pormenorizado de Arquitectura.
Associações e hábitos interessantes sobre recantos domésticos
Os recantos vários,
identificadores e apropriáveis/apropriadores, constituem, eles próprios, a
principal razão de ser das associações entre diversas funções e entre diversas
actividades da habitação.
São, também, os recantos e
espaços do pormenor os elementos que caracterizam e dão coesão a uma habitação
funcional e ambientalmente consistente.
E, de certa forma, ao
proporcionarem a inovação na mistura funcional e de actividades e ao atribuírem
afirmada caracterização geral e particularizada, os vários recantos e espaços
do pormenor doméstico, acabam por se tornar na própria razão de ser de
habitações bem adequadas a determinadas formas de habitar e a determinadas
utilizações.
Poderá ficar, assim,
naturalmente, um pouco de fora o perfil “médio” ou “tipificado” de uso e
apropriação da habitação, mas podemos até continuar a disponibilizá-lo a quem
não queira uma casa razoavelmente “à medida”, ou então e melhor, poderemos
disponibilizar uma base habitacional adaptável e, simultaneamente, o apoio
“especializado” do arquitecto no sentido de a afeiçoar, nos seus microespaços e
nas suas sequências de uso aos modos e desejos habitacionais de um dado
habitante e/ou família.
Mas podemos/devemos procurar
servir uma enorme diversidade de pequenos hábitos de uso da casa, e são muitos,
pois cada família e cada habitante tem os seus, mas há perfis de
“microactividades” que podem ser seguidos, como, por exemplo, o espaço para a
acumulação de jornais, os sítios mais propícios para os vasos de plantas, os
locais das chaves, etc. etc. De certo modo ensaiando-se uma muito ampla e não
fechada rede de “microactividades” domésticas, globalmente suportadas pela
capacidade de adaptação da solução e, naturalmente, pelos nossos próprios
micro-hábitos de vivência doméstica.
Recantos domésticos: aspectos motivadores, problemas correntes e questões levantadas (dimensionais e outras)
O que nos motiva num uso
intenso e prolongado dos espaços e conteúdos domésticos é tudo aquilo que
associa o desenvolvimento de hábitos próprios e de uso e aspectos de
caracterização positiva dos sítios que habitamos, como se passa, por exemplo,
com os espaços nos vãos de janela que é possível ocupar com algumas plantas
e/ou elementos de decoração, proporcionando-se, assim, neste caso, para além da
respectiva acção de apropriação e de identificação, a criação de uma
estimulante sequência de planos de vista marcados pela proximidade e fundo de
elementos naturais, ou pela “colagem” dos elementos de decoração a um fundo
paisagístico distante – isto, naturalmente, quando as vistas exteriores são
interessantes e são bem enquadradas pela própria pormenorização dos vãos
exteriores (matéria esta que é de grande importância por si só e pela sua
retroacção com esta temática da criação de microzonas domésticas).
Os principais e potenciais
problemas, nesta renovada dinâmica de grande diversidade e adequação das
micro-soluções domésticas, decorrem, naturalmente, de apropriações excessivas
que coloquem em risco, quer a sanidade e a funcionalidade básicas do interior
da habitação, quer a dignidade da imagem do respectivo edifício habitacional.
As questões que se levantam, nesta proposta de
reflexão e concepção habitacional, referem-se, essencialmente, à muito
frequente ausência deste tipo de microespaços em soluções habitacionais
globalmente mal desenvolvidas, mal pormenorizadas e submetidas a uma
perspectiva de unifuncionalidade global, marcada por uma hierarquia rígida e
pouco ou nada adaptável, continuada por espaços/compartimentos, mal
dimensionados e monofuncionais, como se em cada compartimento todos actuassem
da mesma maneira e desempenhando, apenas, as actividades “primárias”; o que se
poderia definir como uma verdadeira “máquina de habitar”, conceito este que
parece ser, apenas, aceitável e mesmo assim altamente criticável, nas famosas
“boxes” mínimas de alguns hotéis japoneses.
Notas editoriais:
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tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico
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pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e
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recebido na edição.
Infohabitar, Ano XIV, n.º
633
Cantos e recantos domésticos: bases de mundos pessoais
Infohabitar
Editor: António
Baptista Coelho
Infohabitar, Revista do GHabitar (GH) Associação
Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa
de Habitação Económica (FENACHE).
Editado nas
instalações do Núcleo de
Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do Departamento de Edifícios (DED) do LNEC.
Apoio à Edição:
José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.
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