segunda-feira, março 05, 2018

633 - Cantos e recantos domésticos: bases de mundos pessoais - Infohabitar 633

Infohabitar, Ano XIV, n.º 633

Artigo da Série “Habitar e Viver Melhor” n.º CVI

Cantos e recantos domésticos: bases de mundos pessoais

por António Baptista Coelho


A nossa “casca de caracol”

Um dos aspectos que podem transformar as nossas casas em sítios únicos, onde, tendencialmente, nos poderemos sentir muito bem e verdadeiramente “em nossa casa”, a tal “casca de caracol”, referida uma vez por Amália Rodriques, que é tão identitária e apropriável como agradável e envolvente.
E esta “casca de caracol” bem habitável e que acaba, também, por nos habitar, tem a ver, não só com a capacidade de recheio/povoamento da “casa” pelos mais diversos elementos de mobiliário/arquitectura de interiores e de recheio pessoal e recordação (ex., livros, quadros, memórias de viagens, ofertas de família/amigos, fotografias, etc.), mas também com a constituição e repartição da “casa” em inúmeros pequenos espaços e recantos apetecíveis para desenvolver as mais diversas actividades mais ou menos úteis, mas sempre fundamentais, como é, por exemplo, o sentar ali no canto, junto à janela, ou o tirar um livro da estante e pousá-lo numa pequena mesa para o desfolhar, ou arrumar a colecção no final do corredor naquelas prateleiras que foram feitas à medida, ou sentar, por alguns minutos, para repousar num sofá-cama arrumado num qualquer canto de um compartimento; e, depois, “a casa” vai-se tornando, naturalmente, “a nossa casa”.
Os recantos vários que são responsáveis pela base de identidade e pelos mundos pessoais domésticos constituem naturais sequências ou malhas de agradável e diversificada perambulação pela nossa casa, sentindo que nos podemos ir detendo, ao longo dela, em muitos espaços ou “possibilidades espaciais”, com um mínimo ou, idealmente, com um máximo de condições de conforto e de propostas de actividades e subactividades ou microfunções.
Esta possibilidade de uso prolongado, intenso, “sincopado” e disseminado da nossa casa tem, naturalmente, muito  a ver com as opções de mobiliário e equipamento, mas tem também muito a ver com a capacidade microfuncional e a adaptabilidade de recepção de mobiliário e de outros elementos de Arquitectura de interiores, que é proporcionada pelos diversos espaços domésticos e pelas suas respectivas margens de uso e de adaptabilidade, consideradas muito para além dos respectivos perfis funcionais básicos.
Importa salientar que a condição contrária a uma tal desejável possibilidade doméstica, marcada pela identidade, adaptabilidade e agradabilidade, pode ser sintetizada pelo recurso ao, infelizmente frequente, “mau exemplo” de habitações onde a sequência de circulação/actividades é praticamente “única”, monótona e rigidamente hierarquizada, e onde dificilmente conseguimos arranjar um sítio de permanência agradável, assim como sítios a que possamos chamar “mais nossos”.
E estas, últimas, negativas condições, tal como as positivas, não têm apenas a ver com aspectos de eventual constrangimento por excesso de mobiliário (ele próprio, por vezes, também absurdamente sobredimensionado), e/ou apenas por condições dimensionais muito mínimas, pois há, até, condições mínimas domésticas “habitacionais” com múltiplos espaços para uma agradável permanência como por exemplo acontece em caravanas e iates; tem a ver, portanto, essencialmente com a disponibilização, muito natural, quer de “folgas” dimensionais e de capacidade de apropriação, quer de alternativas de usos e de multiplicidades adaptativas, que são todas elas condições que muito dependem de uma ampla qualidade do projecto geral e pormenorizado de Arquitectura.



Associações e hábitos interessantes sobre recantos domésticos

Os recantos vários, identificadores e apropriáveis/apropriadores, constituem, eles próprios, a principal razão de ser das associações entre diversas funções e entre diversas actividades da habitação.
São, também, os recantos e espaços do pormenor os elementos que caracterizam e dão coesão a uma habitação funcional e ambientalmente consistente.
E, de certa forma, ao proporcionarem a inovação na mistura funcional e de actividades e ao atribuírem afirmada caracterização geral e particularizada, os vários recantos e espaços do pormenor doméstico, acabam por se tornar na própria razão de ser de habitações bem adequadas a determinadas formas de habitar e a determinadas utilizações.
Poderá ficar, assim, naturalmente, um pouco de fora o perfil “médio” ou “tipificado” de uso e apropriação da habitação, mas podemos até continuar a disponibilizá-lo a quem não queira uma casa razoavelmente “à medida”, ou então e melhor, poderemos disponibilizar uma base habitacional adaptável e, simultaneamente, o apoio “especializado” do arquitecto no sentido de a afeiçoar, nos seus microespaços e nas suas sequências de uso aos modos e desejos habitacionais de um dado habitante e/ou família. 
Mas podemos/devemos procurar servir uma enorme diversidade de pequenos hábitos de uso da casa, e são muitos, pois cada família e cada habitante tem os seus, mas há perfis de “microactividades” que podem ser seguidos, como, por exemplo, o espaço para a acumulação de jornais, os sítios mais propícios para os vasos de plantas, os locais das chaves, etc. etc. De certo modo ensaiando-se uma muito ampla e não fechada rede de “microactividades” domésticas, globalmente suportadas pela capacidade de adaptação da solução e, naturalmente, pelos nossos próprios micro-hábitos de vivência doméstica.

Recantos domésticos: aspectos motivadores,  problemas correntes e questões levantadas (dimensionais e outras)

O que nos motiva num uso intenso e prolongado dos espaços e conteúdos domésticos é tudo aquilo que associa o desenvolvimento de hábitos próprios e de uso e aspectos de caracterização positiva dos sítios que habitamos, como se passa, por exemplo, com os espaços nos vãos de janela que é possível ocupar com algumas plantas e/ou elementos de decoração, proporcionando-se, assim, neste caso, para além da respectiva acção de apropriação e de identificação, a criação de uma estimulante sequência de planos de vista marcados pela proximidade e fundo de elementos naturais, ou pela “colagem” dos elementos de decoração a um fundo paisagístico distante – isto, naturalmente, quando as vistas exteriores são interessantes e são bem enquadradas pela própria pormenorização dos vãos exteriores (matéria esta que é de grande importância por si só e pela sua retroacção com esta temática da criação de microzonas domésticas).
Os principais e potenciais problemas, nesta renovada dinâmica de grande diversidade e adequação das micro-soluções domésticas, decorrem, naturalmente, de apropriações excessivas que coloquem em risco, quer a sanidade e a funcionalidade básicas do interior da habitação, quer a dignidade da imagem do respectivo edifício habitacional.
As questões que se levantam, nesta proposta de reflexão e concepção habitacional, referem-se, essencialmente, à muito frequente ausência deste tipo de microespaços em soluções habitacionais globalmente mal desenvolvidas, mal pormenorizadas e submetidas a uma perspectiva de unifuncionalidade global, marcada por uma hierarquia rígida e pouco ou nada adaptável, continuada por espaços/compartimentos, mal dimensionados e monofuncionais, como se em cada compartimento todos actuassem da mesma maneira e desempenhando, apenas, as actividades “primárias”; o que se poderia definir como uma verdadeira “máquina de habitar”, conceito este que parece ser, apenas, aceitável e mesmo assim altamente criticável, nas famosas “boxes” mínimas de alguns hotéis japoneses.



Notas editoriais:
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Infohabitar, Ano XIV, n.º 633

Cantos e recantos domésticos: bases de mundos pessoais

Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho

Infohabitar, Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
Editado nas instalações do Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do Departamento de Edifícios (DED) do LNEC.

Apoio à Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.



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