Pequenos grandes mundos do pormenor doméstico
por António Baptista Coelho (texto e imagens)
Sobre o mundo do detalhe doméstico
O que aqui se irá comentar, em seguida, sobre o
detalhe doméstico refere-se, essencialmente, a matérias suplementares, ou
melhor dito, paralelas, às directamente associadas aos espaços da
habitação, globalmente bem distintas dos
aspectos funcionais domésticos, que se considera terem sido já amplamente
visados em diversos estudos, e privilegiando determinadas notas associadas ás
opções de Arquitectura interior e ao seu diálogo com os habitantes, sempre ao
serviço das opções gerais de adequação, adaptação/versatilidade e
apropriação/identificação, que se considera serem objectivos fundamentais a
redescobrir nas soluções domésticas.
Os mundos do pormenor doméstico
Pela sua importância serão primeiro abordados os
aspectos ligados à criação de vários tipos de "lugares" ou
"sítios" domésticos específicos, quase sempre, não coincidentes com
determinados compartimentos ou espaços da habitação.
Em próximos artigos desta série serão abordados, com
o mercido desenvolvimento, os vãos exteriores, considerando-se a sua enorme
importância na qualidade arquitectónica e vivencial habitacional, seguindo-se
os diversos aspectos que apoiam na criação de “sítios” domésticos muito
específicos, depois os aspectos cruciais e por vezes insuspeitados do
cromatismo residencial, em seguida, os aspectos de maior pormenor ligados à
arrumação doméstica, depois, algumas pontes de ligação com a construção, os
equipamentos e as instalações e, finalmente, uma abordagem complementar e
sempre necessariamente "em aberto" de outros aspectos de
pormenorização, que, conjuntamente com aqueles aspectos e em grande integração
com espaços domésticos considerados como bem desenvolvidos.
Todos estes elementos constituintes do espaço
habitacional privado são protagonistas na construção de um estimulante mundo de
interioridade doméstica, marcado pela apropriação, pelo bem-estar, pela
identidade pessoal e familiar, e por um "sentido doméstico" ou de
verdadeira "concha", tal como tão bem referiu Amália Rodrigues, que
não é fácil de desenvolver mas que tem enorme importância na felicidade que
podemos gozar na nossa habitação.
De certa forma parece haver elementos que,
apondo-se, caracterizando e marcando os espaços domésticos, ao nível do
pormenor, são muito importantes para fazer passar o nível de satisfação
doméstica de um patamar meramente adequado/funcional para um outro patamar que
é em boa parte responsável pelas tais casas felizes e que nos ajudam a ser felizes.
Sob este tema iremos aqui paulatinamente
considerando, essencialmente, aspectos de arquitectura de interior, associados
ao desenvolvimento de: paredes; pavimentos; vãos de porta; guardas, parapeitos
e peitoris; isolamentos; equipamentos; instalações; bay-windows e outros "lugares-janela"; floreiras;
mobília encastrada; e outros pormenores.
E a ideia é apontar, aqui, aspectos de pormenor que
mais fácil e naturalmente proporcionam ambientes domésticos estimulantes, e não
realizar uma abordagem sistemática de todos os elementos que aqui podem ser
previstos.
Calma no uso pormenorizado da habitação
Toda esta faceta de abordagem à qualidade
habitacional depende da possibilidade de haver alguma calma na apropriação da
habitação pelos seus habitantes, uma calma que fica evidenciada no seguinte
texto, que foi escrito algumas semanas após uma mudança de casa.
"Fim de tarde. Sentado no sofá de canto,
por trás da mesa de abas, leio, finalmente o jornal matinal. Um lugar
preferido, os meus filhos definiram outros sítios de preferência mais na ponta
do sofá grande ou no cadeirão estofado, a Isabel sente-se melhor no maple
repousando os braços e gozando, também, a luz quente e baixa do
cavalo/candeeiro em ferro forjado. Os sítios da casa vão, gradualmente, tendo nomes
e chamando por certos usos, mas é preciso dar um certo tempo redondo para que a
nova casa nos reconheça e para que nós também a possamos conhecer."
E uma calma no uso intenso da casa que estará,
sempre e naturalmente, ligada a algum desafogo espacial, ou a um desafogo pelo
menos mínimo no usufruto doméstico, que tem a ver não apenas com o respectivo
espaço interior, mas também com adequadas condições de relação com o exterior
(bons vãos de janela), de conforto ambiental (boa luz natural e bom isolamento
térmico e sonoro) e de possibilidade de uso do próprio exterior contíguo;
estando este, pelo menos, minimamente composto, equipado e limpo, e sendo o
exterior, pelo menos, minimamente motivador do seu próprio uso, e aqui podemos
citar Alain Sarfati, quando este
explicita o prazer que espera oferecer aos habitantes propondo percursos
embebidos no habitat: “o convite à descoberta, à exploração exprime-se no
atravessar de diferentes passagens, ligações, escadas, galerias, áleas e
caminhos”. (1)
Vários tipos de "lugares" ou "sítios" domésticos específicos
Tal como refere o arquitecto Herman Hertzberger, nas suas Lições de Arquitectura (2),
citando Aldo van Eyck, é fundamental fazer “de cada casa e de cada cidade uma
porção de lugares, pois uma casa é uma cidade em miniatura e uma cidade é uma
casa enorme”; e como se partilha inteiramente esta ideia, de uma casa, uma
habitação, serem verdadeiras cidades “em miniatura”; a casa tem de ser
realmente uma porção de lugares, mutuamente bem integrados, mas individual e
positivamente caracterizados, porque úteis, mas também carregados de sentido
doméstico.
E não tenhamos dúvidas de que este mosaico de
sítios/lugares constituintes de uma habitação não se esgota nos respectivos
espaços e compartimentos, tem de ter uma "célula" mais fina,
naturalmente mais fácil de concretizar em grandes habitações, mas que tem,
obrigatoriamente de se verificar até nas habitações mínimas, e podemos mesmo
dizer que nestas habitações tal qualidade de "grão fino", composto
por pequenos lugares domésticos, é fundamental até, também, para suavizar e se tornar
muito mais aceitável até a eventual escassez espacial.
Por estas razões iremos, em próximos artigos desta série
editorial, numa viagem informal e de "sentido aberto" ou dinâmico por
alguns dos sítios/lugares domésticos que nos fazem parar para pensar, para
sentar e para olhar, quando visitamos uma habitação que vale a pena; pois nas
outras um relance rápido chega!
E há, ainda, que sublinhar ser possível
"montar" uma habitação "funcionalmente mínima", porque
composta por poucos espaços e compartimentos principais e correntes - como
quartos e corredores -, através de um amplo espaço multifuncional,
caracterizado por excelentes condições de conforto ambiental, pormenorização e
durabilidade, em que as diversas funções domésticas se associem muito mais a
lugares/sítios dimensionalmente reduzidos e pouco ou nada compartimentados, do
que a espaços e compartimentos "clássicos"; e sublinha-se o interesse
que esta perspectiva de desenvolvimento doméstico tem quando pensamos no
habitar privado de pessoas sós, casais e eventualmente pessoas idosas que optem
por este tipo de habitar.
Esta associação entre habitações pouco
compartimentadas e integradas por variados lugares/sítios e o habitar privado de pessoas sós ou casais,
prende-se ao desenvolvimento da habitação como uma verdadeira segunda pele, que
sirva o modo como gostamos de viver/habitar e que sirva e evidencie,
naturalmente, a nossa identidade, sendo aqui exemplificada, nas palavras de
José Pacheco Pereira (2005), sobre a casa/sala/biblioteca, bem viva e
caracterizada, onde vivia Eugénio Andrade:
“Uma sala coberta de livros, ao mesmo tempo sala de
ler, escrever, de comer, com uma cozinha incrustada, … o quarto, com janela
para a Duque de Palmela, uma rua silenciosa quase sem trânsito, numa parte do
Porto perdida do centro, mesmo estando perto do centro... Um desenho de Jean
Cocteau no corredor… Esta foi sempre a sua verdadeira casa.” (3)
E, já agora, o grande Jorge Luís Borges, também tinha uma sala com uma grande mesa
onde tudo acontecia - vida, trabalho e convívio - tal como salientou Raúl
Hestnes Ferreira, na 4.ª Sessão Técnica do Grupo Habitar. (4)
Notas:
(1) Monique Eleb e Anne Marie Chatelet, “Urbanité,
sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, p. 239
(2) Herman Hertzberger, Lições de Arquitetura, São
Paulo, Martins Fontes, 1996 (1991),p.193.
(3) José Pacheco Pereira, “Rua Duque de Palmela 111
(Eugénio de Andrade); «Uma sala coberta de livros…»”, Abrupto, Early Morning
Blogs n.º 520, 17-06-2005, http://abrupto.blogspot.com/
1045bqi e 269c
(4) 4ª Sessão Técnica do Grupo Habitar, em 22 de
Janeiro de 2006 no Auditório da sede do INH em Lisboa.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
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Infohabitar, Ano XIV, n.º 635
Pequenos grandes mundos do pormenor doméstico
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
abc.infohabitar@gmail.com
abc@lnec.pt
Infohabitar, Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
Editado nas instalações do Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do Departamento de Edifícios (DED) do LNEC.
Apoio à Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.
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