segue-se um texto da arquitecta paisagista Celeste d'Oliveira Ramos
Da minha janela vejo o mundo e reconheço o meu olhar
A RUA é a rainha do espaço urbanizado e é património do peão
Calcorrear a rua atravessando o espaço definido pela sucessão das fachadas que se exibem contando a sua arte, o tempo que trabalhou as pedras de que são feitas, o tipo de homem que as desenhou, permite desenrolar perante o olhar uma espécie de filme com uma história e um enredo de formas, de materiais, de funções, de objectos singulares sinalando posições específicas, de esquinas revelando outros caminhos, como uma carta geográfica enriquecida pela presença dos “habitantes” de pedra por vezes rendilhada, de azulejo, de ferro forjado, de vidros e de vitrais, de cores, trabalhando e desdobrando a luz, entretendo o nosso olhar obrigando-nos a ser espectadores activos, críticos, contentes ou descontentes, ao percorrer o museu dinâmico que é qualquer espaço habitacional onde se aprende geografia e história, ecologia e sociologia, e artes, e vida, estampada nos rostos que por nós se cruzam
Caminhar ou deambular por um espaço histórico e cultural a contar a história do tempo e da arte dos homens
Rua, fachadas, esquinas, formas, volumes, luz e escuridão, envolvendo o todo e as partes, nos passeios, nos largos e jardins, e na árvore de sombra benfazeja, de copa volumosa com folhas e pássaros, inserindo a natureza viva dentro do habitar, ou sem folhas, escultura desnudada ainda dando a beleza, a escala da rua e do próprio homem e, ainda, o ritmo das estações do ano
Que bonita e fresca é a minha rua com árvores que dão flores e frutos, cores e perfumes, e me acordam para me obrigar a olhá-las mesmo que de relance porque vou com pressa a um qualquer lugar
Vou à minha vida atravessando este espaço de vida que a rua me obriga a compreender com todos os sentidos despertos, pelo que me deixa ver e consolar o meu próprio espírito, refrescando-me o corpo com a brisa que provoca, o ouvir dos pássaros que nela poisam, o excitar do olfacto com o perfume de suas flores, mesmo olhando para o chão que vou pisando desenhado e construído com as mãos inteligentes de carinho para embelezar o meu caminhar diminuindo a percepção do meu cansaço
A CASA, a habitação, isolada ou integrada num conjunto, é o abrigo do sol e da chuva, do frio e do calor, do olhar dos outros, do nosso cansaço e desespero, é ABRIGO e refúgio do que somos, do corpo e da alma
É a nossa caverna, o nosso buraco onde não queremos partilhar-nos com mais ninguém, a não ser com aqueles que pertencem ao nosso não querer viver connosco sós
Sendo um espaço fechado é no entanto o primeiro espaço de aprendizagem de vida colectiva com a família (e/ou amigos), o primeiro espaço cultural porque casa é mais do que o lugar de habitar porque é espaço onde acontece cultura
É a segunda pele que nos separa e distingue dos outros grupos-família, dos outros moradores de cada casa e de cada rua
Opostamente, os “homeless” são os que ou nunca encontraram esse abrigo, ou os que rejeitaram o que tiveram, ou até nunca tenham tido ou ainda, tendo tido, tudo lhes foi tirado e restou-lhes a rua da cidade
Da janela da minha casa vejo a RUA e as outras habitações e delas poderei pressupor parte do que se passa dentro
Vejo a chuva, vejo o céu e o sol que logo aparece, vejo a lua e as estrelas e os aviões a cruzarem os ares, e vejo as outras casas e também quem passa e se afadiga como se as janelas fossem os OLHOS da Casa
Da janela vejo o MUNDO, e à forma e dimensão desse espaço "vazio" de olhar o mundo, poderá ser acrescentada a qualidade que cada habitante, pessoalizando-a com as cortinas feitas por amor, ou vasos de flores, para que a natureza viva não se afaste do viver, e a minha janela poderá ser mais bonita do que a do vizinho
Não será a janela de uma Catedral, mas se o arquitecto que a desenhou tiver deixado espaço e forma, algo de pessoal se poderá acrescentar que diferencia e humaniza a rua que não será apenas uma sucessão de fachadas sem calor humano, algo que o arquitecto nunca poderá fazer, mas apenas sugerir, e permitir que aconteça, desenhando como quem desenha o sagrado, porque se trata de desenhar para a “vida” de cada um
Se a rua nas suas fachadas fala do tempo e do artífice que a desenhou e construiu prédio a prédio, a janela fala de quem lá vive, da sua alegria manifestada ou mesmo grau de pobreza
A janela que permite ver de dentro para fora tem igualmente essa dimensão de deixar ver o que ela reflecte
E até uma andorinha poderá ali poisar no parapeito na primavera e dar mais uma dimensão de vida do habitar
A janela separa do exterior mas não o elimina completamente – mostra vida de ambos os lados, comunica com a VIDA, dialoga com quem vive nele e por ela passa, e a olha
Abro a minha janela e deixo entrar o Sol e o vento, os perfumes da rua e os ruídos da vida dos homens acordados, quando a cidade se levanta
Esse diálogo da janela é também perceptido pela casa ou conjunto, relativamente ao local e forma como foi implantada, na natureza bruta, fazendo com ela um diálogo também de amor e inteligência ou, pelo contrário, desprezá-lo, ficando o local desmantelado sem ética ambiental, sem estética, desumanizado e destruído e a habitação desqualificada e o habitar penoso
A minha janela como o meu olhar
A minha RUA como a Vida do mundo dos Homens
Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Lisboa 12 março 2005
Lisboa 12 março 2005
14 fevereito 2005
Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Engªsilvicultora
Arquitecta-Paisagista
Universidade Técnica de Lisboa
Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Engªsilvicultora
Arquitecta-Paisagista
Universidade Técnica de Lisboa
2 comentários :
O texto da arquitecta Celeste Ramos tem grande interesse, entre outras razões, pela pista directa que nos dá para uma leitura emocional e mesmo estética do espaço público, leitura esta que tem diracta aplicabilidade na concepção e análise do mesmo espaço público. Nem só de "números" vive o urbanismo, também vive e vive em primeira linha daquilo que nos comunica no dia-a-dia.
Lisboa e LNEC, 22 de Março de 2005
António Baptista Coelho
Não resisto a enaltecer a sensibilidade ambiental e estética que caracteriza o excelente artigo da Arqª Celeste Ramos, resultante de um conhecimento do que se exige para uma ‘qualificação do ambiente urbano’.
Permito-me acrescentar este breve comentário à frase ‘A casa (…) é espaço onde acontece cultura’: a dialéctica a que estamos sujeitos pelo fenómeno da experiência da transversalidade da cultura versus o seu amadurecimento, faz-nos reconhecer que todos os tipos de cultura nos atravessam em instantes de que nem nos chegamos a aperceber e que se fundem no sono, no repouso, na meditação e numa exegese que o espaço da casa pode (e deve) proporcionar.
Sobre outro passo do inspirado texto onde se fala da andorinha poisando num parapeito, direi que moro num 17º andar onde poisam pombos diariamente – e sei quanto isso nos aproxima da Natureza, tão distante numa cidade como Lisboa.
Sobre a alusão que se faz no texto aos homeless … aqui vai a súplica de um, que habita uma cidade com milhões de gente e de indi gentes:
‘Eu queria morar numa favela (...) O meu sonho é morar numa favela Eu me chamo de chêroso como alguém me chamou Mas pode me chamar do que quiser seu dotô Eu num tenho nome Eu num tenho identidade Eu num tenho nem certeza se eu sou gente de verdade (...)
Eu sou o resto O resto do mundo Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo Eu sou... Eu num sou ninguém (...)’ *
* Excertos do texto da faixa 10 - O resto do mundo, da autoria de Gabriel o Pensador - CD, Chaos, 1993
MJ Eloy
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