Sobre o que faz o bom-habitar III: algumas sínteses e ainda, e sempre, as perplexidades
artigo de António Baptista Coelho
Na continuidade de alguns acontecimentos muito negativos e mesmo dramáticos que marcaram a vivência de bairros de realojamento, ou “sociais” da periferia lisboeta vale a pena pensar mais um pouco sobre as matérias implicadas no sucedido, sobre as quais, aliás, vários cronistas, fazedores de opinião e editorialistas se pronunciaram – o que, na prática, é, sem dúvida, uma importante conquista em termos de uma fundamental visibilidade pública; e referir periferia lisboeta é uma forma de identificação mais justa do que uma referência específica ao concelho marcado por esses acontecimentos, porque aqueles bairros ali existem, essencialmente, por causa da vizinhança da grande cidade e, assim, terá de ser a grande cidade – a área metropolitana – a proporcionar saídas para os respectivos problemas.
Faz-se, então, aqui, neste artigo, uma reflexão sobre o que justificará – se há quaisquer razões capazes de assegurar e justificar a ideia de se continuar a pensar no habitar – um conceito que sintetiza o espaço onde cada um de nós habita diariamente, sem exclusão de partes, embora com uma especial dedicação ao nosso espaço residencial e (con)vivencial – como algo:
(i) que está, essencialmente, da porta de entrada para dentro da casa de cada um;
(ii) que pouco ou nada tem a ver com a cooperação na criação e na vitalização de uma cidade dinamizada e estimulante;
e (iii) que se liga a um conjunto de matérias que, na melhor das hipóteses, terá a ver com o cumprimento, tantas vezes mínimo e por vezes quase fictício, de um leque alargado de regras e de aspectos quantitativos, seja ao nível “supostamente” urbanístico – talvez a melhor forma de referir esta matéria seria a indicação de normas de natureza urbanística, e isto para não usar uma referência a aspectos de burocracia urbanística –, seja ao nível das exigências regulamentares dos mais diversos tipos e naturezas, que pouco têm a ver com verdadeiros aspectos de Arquitectura e de qualidade arquitectónica, aliás tal como também acontece com as referidas normas urbanísticas.
Sublinha-se, para se evitarem mal-entendidos, que nestas últimas considerações não se deve encontrar qualquer negação da pertinência e da necessidade da existência de tais normas e regulamentos; só que é fundamental clarificar, de uma vez por todas, e divulgar o mais possível, que tais cumprimentos pouco têm a ver, ou só por acaso terão a ver, com a oferta ao nosso habitar de verdadeira qualidade urbanística e de Arquitectura; este é outro assunto e, tal como se tem vindo a referir em últimos artigos desta série, este é um assunto determinante na disponibilização de conjuntos urbanos e habitacionais verdadeiramente satisfatórios, seja através de múltiplas formas de habitar e de querer habitar, seja através da oferta de uma qualidade cultural do espaço urbano e habitacional, que contribua, verdadeiramente, para a valorização das nossas cidades e paisagens – uma valorização que é, como bem sabemos, hoje em dia extremamente urgente.
Fiquemos, então, assim esclarecidos, que do que aqui se trata é de qualidade arquitectónica numa perspectiva dupla de verdadeira valorização do património edificado e urbano e de verdadeira adequação a um amplo leque de modos de habitar; e, como se tem aqui afirmado, uma tal qualidade é condição essencial para um habitar mais feliz, e logo para uma vida mais feliz, mais positiva e, consequentemente, menos afectada por problemas de variadas naturezas.
Este esclarecimento foi julgado oportuno pois, à medida que se vão estudando estas matérias, e provavelmente tal como noutras áreas acontece, vão-se materializando dúvidas fundamentais sobre estarmos, por vezes, a falar das mesmas matérias ou de matérias distintas, quando falamos, neste caso, de qualidade arquitectónica residencial, nestas linhas ligadas ao bom desenho de Arquitectura, mas também e simultaneamente, á satisfação de quem habita – e não haja dúvidas que é esse o objectivo fundamental de uma “boa habitação”, aquela que satisfaz e motiva quem a habita e aquela que enriquece a sua cidade.
Mas vale a pena falarmos de algumas dessas dúvidas, que depois acabam por ajudar a gerar as tais perplexidades, que têm presença no título deste artigo, pois uma tal qualidade é bem diferente da suposta qualidade de uma solução residencial que pode estar, até, quantitativamente adequada a determinadas carências, assim como é bem diferente da suposta qualidade de uma habitação que cumpre um necessário e exigido leque de normas e de regulamentos aplicáveis. Estamos, aqui, realmente, falar de outra matéria; e uma matéria que pode constituir uma influência positiva, estratégica e extremamente oportuna na vida de uma família – afinal é sempre “começar de novo” e pode ser começar de novo num sítio excelente, ou pode ser “começar de novo” num sítio contaminado por aspectos físicos, ambientais, conviviais e formais que só podem ter influências negativas na vida privada, comum e pública.
Fig. 01: uma excelente Arquitectura e uma “nova” e excelente forma de habitar em Malmö, com a intervenção de Charles Moore.
Pode-se dizer que tudo isto é verdade, mas que, por vezes, é necessário acudir rapidamente a determinadas carências graves; sem dúvida que sim, mas mesmo em casos destes será desejável e possível conceber, com reduzido acréscimo temporal, uma solução que seja arquitectónica e humanamente melhor e mais adequada, ou então será possível chegar à conclusão que realizar uma dada operação, num dado local, numa dada concentração e com determinados meios de gestão urbana, acabará por ser verdadeiramente mais negativo, a médio e a longo prazos, do que optar por soluções provisórias de forma a conseguir tempo para resolver a situação, de forma potencialmente mais “definitiva”, em condições verdadeiramente sustentáveis e dignas, condições estas que serão muito menos susceptíveis a problemas sociais e cívicos. E diga-se que esta não é uma opção inventada pelo autor destas linhas pois há, alguns poucos municípios portugueses, entre outros que abordaram de forma predominantemente positivamente o problema e o desígnio social e cívico da erradicação de barracas e abarracados, que seguiram essa perspectiva de só fazer habitação de realojamento com excelente qualidade de Arquitectura, ainda que assim houvesse necessidade de mais tempo, e aqui há que fazer a devida e merecida referência à experiência do PER em Matosinhos, pela quantidade, qualidade, diversidade e adequação Arquitectónica das soluções escolhidas.
Já agora, quanto aos casos urbanos e residenciais que foram negativamente desenvolvidos, designadamente, em termos de quantidade excessiva de edifícios, isolamento urbano e falta de qualidade de desenho de Arquitectura, o que se propõe – nesta perspectiva “radical” de tentar ir acabando, sistematicamente, pelos menos, com aqueles problemas sobre os quais temos algum controlo – é a aplicação de um plano, a médio e longo prazos, que contemple a erradicação de todos esses casos ou, no mínimo, a sua redução a dimensões pouco problemáticas; e assim se pensa pois sendo estas matérias de tão elevada complexidade, considera-se que continuar a apostar num relativo adiar e suavizar dos problemas, pode ser uma opção que, em muitos casos, pode levar “a morte do doente”, pois, tal como acontece, infelizmente, por vezes, na medicina em casos de grande gravidade, não se reconhece, com o devido carácter de emergência, a gravidade da doença, e assim não se consegue intervir com os devidos meios e com a devida rapidez e não serão depois outros múltiplos e diversificados cuidados que irão ter êxito, constituindo estes essencialmente acções paliativas.
E depois, depois de mal-fazer e de pouco ou nada fazer para acabar com esses erros, depois, e no caso urbano, muito mais tarde, depois de muitos problemas, opta-se então, finalmente, pela acção mais radical, que teria sido a mais certa, provavelmente, há muitos anos atrás, e que, há muitos anos atrás, poderia ter tido resultados muito mais multiplicáveis e definitivos na melhoria da vida de muitas pessoas e de muitas famílias; uma opção que se tivesse sido desenvolvida na altura certa, ou mais certa, obrigaria, sem dúvida, a muitos sacrifícios e teria muitos problemas de aplicação, mas seriam sempre sacrifícios e problemas que, desde logo, estariam a contribuir para um processo novo, positivo e decisivo de fazer boa habitação em cidade consolidada, não se tratando de outros sacrifícios, eventualmente menores, mas com pouco sentido porque ligados a medidas paliativas, transitórias e sem futuro – e não é de esquecer que as más medidas, além de serem economicamente ruinosas, são estratégica e socialmente muito negativas pois muito dificultam a adopção futura de outras medidas (as pessoas cansam-se de não verem resultados palpáveis e positivos).
Esta reflexão tenta apontar e divulgar caminhos gerais de saída para os círculos viciosos do fazer má habitação e má cidade, círculos estes geradores de fundamentais perplexidades, ligadas a não ser verdadeiramente credível que, em Portugal, após mais de 80 anos de se fazer habitação de interesse social, não haja um repositório de conhecimentos práticos sobre como fazer bem cidade habitada, ou pelo menos fazer cidade habitada com um máximo de potencialidades de êxito; e diga-se que, mesmo não havendo materialmente um tal repositório, há ainda, e felizmente vivos, técnicos que têm esse conhecimento e há ainda, e felizmente, muitos e muitos casos, disseminados por todo o País, que são excelentes exemplos vivos, de onde é possível retirar esses ensinamentos: e, portanto, não há desculpa, não pode, realmente, haver desculpa!
E, assim, dá vontade de afirmar que nem mais um conjunto residencial, nem mais um pequeno bairro deve ser feito sem um nível adequado e amplo de qualidade arquitectónica e vivencial; e, com igual veemência dá vontade de salientar a importância e a oportunidade de se fazer um rol dos casos urbanos e habitacionais a requalificar e que as respectivas acções de melhoria e reciclagem, mais ou menos radicais, fossem programadas num horizonte necessariamente dilatado, mas ficando claro, de uma vez por todas, que esse é o único futuro e a única via possível desses conjuntos urbanos e de quem por eles decide; e diga-se que aqui há alguma radicalidade e terá de haver grande exigência, na escolha que terá de ser feita de quem irá redesenhar tais conjuntos, mas esta é e será a única opção possível para quem os habita e para a real viabilidade das suas zonas urbanas, e em tudo aquilo em que possamos facilitar nestas matérias de uma verdadeira qualidade arquitectónica e residencial, não tenhamos dúvida que sobre os nosso filhos recairá com juros bem fortes.
E porque importa ir fazendo sínteses sequenciais das matérias práticas que estamos a sublinhar e, tal como foi apontado no primeiro artigo desta série, avançando do mais geral para o particular, fazer um “bom habitar” será, sempre:
assegurar um sítio de habitar que seja vivo e positivamente caracterizado em termos dos mais diversas actividades urbanas, que se integre, em continuidade, numa cidade que seja viva e solidária;
. assegurar a constituição e a boa-vida diária da cidade das vizinhanças, aquela que é, provavelmente, a cidade que mantém a humanidade e a afectividade mesmo em grande aglomerações, através de uma constelação de vizinhanças próximas mais conviviais e estimulantes;
. assegurar a riqueza tipológica, urbana e residencial, uma condição que está bem patente em tantas soluções de edifícios que aí estão nas nossas cidades, vilas e aldeias, caracterizando um amplo leque de edifícios humanizados, atraentes e que constituem uma fundamental mais-valia cultural para a cidade em que se integram;
. assegurar uma habitação, um espaço doméstico privado de cada família e de cada pessoa, que seja muito adequado e apropriável, considerando, quer o muito amplo leque de condições que vão da entrada do edifício ao pormenor “daquele vão”, que enche de luz matinal “aquele recanto”, quer o enorme leque de desejos, formas de habitar e mesmo sonhos residenciais (é o “lugar” da adaptabilidade);
. e em todas estas matérias não faz, hoje em dia, ainda neste início de um novo século, depois de um outro século bem preenchido de tantas experiências que tentaram, de tantas formas, atingir um bem-viver; não faz, realmente, qualquer sentido centrarmo-nos em opções habituais, “funcionais” e “medianas”, pois o leque de opções é enorme e o leque de procura é e será, felizmente, cada vez mais, muito diversificado.
. e, já agora, permitam-me uma, natural, “cedência” à Arquitectura, e, assim, aqui afirmar que é também fundamental assegurar o “bom-desenho” da “boa-habitação”, e aproveitar para dizer: por um lado, que já se vai sabendo o que se pode considerar como sendo um “bom-desenho”, e não é preciso entrar em matérias ainda consideradas subjectivas, pois está a pensar-se, designadamente, na boa integração, na boa escala, na boa relação com a natureza e da presença do verde urbano, na boa integração e diversificação funcional, etc., etc.; e dizer, ainda, que nesta matéria do dever fazer um bom-desenho, e da crítica ao mau desenho residencial e urbano que se tem feito, há culpas que chegam também aos arquitectos e que eles têm necessariamente de assumir, e deve haver processos que a sociedade aplique para assegurar que de agora em frente se faça o mais possível, apenas e fundamentalmente, esses “bons desenhos” urbanos e residenciais.
Fig. 03: uma excelente Arquitectura e uma “nova” e excelente forma de habitar de interesse social na Figueira da Foz, Gala, com desenho de Duarte Nuno Simões e Nuno Simões.
Escreveu, não há muitos anos, Christian Norberg-Schulz, arquitecto e filósofo, que “o homem precisa de um ambiente urbano que lhe facilite referências de imagens”, e assim se destaca a importância da imagem urbana, “precisa de recintos ou zonas que tenham um carácter particular”, o que evidencia a importância de uma verdadeira e positiva caracterização dos espaços habitados, “e precisa de percursos que levem a sítios específicos e de pólos urbanos que sejam lugares distintos e inesquecíveis", o que revela a importância do ordenamento, da coesão urbana e do tal bom desenho; e nesta magistral qualificação de Norberg-Schulz não surgem, por exemplo, aspectos funcionais aos quais ninguém nega a importância, só que talvez agora, ainda neste início de um novo século, e depois de um tão longo século de funcionalidades, a principal batalha seja outra, talvez uma batalha por novelos qualitativos mais completos e mais humanos.
Novelos qualitativos estrategicamente recentrados numa habitação tipologicamente diversificada e amplamente qualificada, a tal com um “carácter particular … num sítio inesquecível”, a tal que falta na cidade humanizada que também hoje nos falta, regenerada por vizinhanças vivas, e que harmonize, o mais possível, satisfação residencial com qualidade arquitectónica.
É assim chegada a altura de não mais maltratar o habitar como um produto de consumo e, tantas vezes, um produto de consumo mal concebido, porque esquecido de boa parte das suas valências; é, assim, chegada a altura de não mais repetir cegamente qualisquer “tipos de projectos-tipo”, por melhores que possam ser; é, assim, chegada a altura de não mais fazer cidade com habitação mal desenhada e de fazer simulacros de cidade através de dormitórios tristes, sem coesão urbana, sem identidade e sem dignidade; é tempo de fazer cidade viva com habitação bem desenhada e que ajude as pessoas a serem felizes, e, em tudo isto, naturalmente, mais do que urgente aplicar uma ampla e sensível política habitacional.
Ficamos, hoje, por aqui, e, mais uma vez, se desafia o leitor a enviar – à redacção do Infohabitar (abc@lnec.pt ou abc.infohabitar@gmail.com ) de textos onde exponha algumas ideias sobre como configurar soluções de bom-habitar, daquelas que, verdadeiramente, contribuam para uma vida mais feliz.
Casais de Baixo, Azambuja, 23 e 24 de Agosto de 2008.
Editado por José Baptista Coelho, em 25 de Agosto de 2008.
Sem comentários :
Enviar um comentário