O bom-habitar I : uma introdução ao bom-habitar do bairro, da vizinhança e do edifício
Artigo de António Baptista Coelho
A ideia que aqui se esboça, neste pequeno texto, é a do grande interesse e da real possibilidade prática de se poder viver um espaço de habitar altamente qualificado e profundamente satisfatório, sem que um tal nível qualitativo possa ser considerado como uma condição excepcional e, portanto, não obrigando a investimentos acima dos considerados correntes.
Com este objectivo faz-se uma síntese introdutória à questão do querer-se e poder-se viver, todos os dias, em espaços que contribuam, claramente, para nos sentirmos bem connosco e com os outros, apontam-se, depois, brevemente, os diversos aspectos qualitativos que têm de existir quando queremos concretizar um tal objectivo e, por fim, conclui-se este conjunto de ideias com uma, também breve, tentativa de aproximação a uma explicação da razão de parecer ser tão difícil, habitualmente, a concretização deste objectivo.
Sublinha-se, ainda, que assim se inicia mais uma nova série de artigos, sobre estas matérias que se podem unificar na temática dos caminhos a seguir para a obtenção de soluções de habitar que possam ajudar a gerar a nossa felicidade, artigos estes cujos títulos específicos irão variar e para os quais se convidam os leitores, quer para uma activa contribuição com comentários, quer mesmo através da elaboração de artigos de opinião, que serão, certamente, muito bem aceites por todos os leitores, desenvolvendo-se, assim um importante caminho de abertura da discussão sobre uma temática muito ligada, exactamente, a uma perspectiva de procura, caracterização e consensualização daquilo que mais nos satisfaz, mais nos motiva e mais nos alegra em termos de espaços de habitar: afinal daquilo que pode ajudar a configurar habitações verdadeiramente geradoras de felicidade.
Fig. 01: “recanto” público e preexistência em Olivais Norte – Encarnação, Lisboa, cerca de 1960.
Neste novelo de matérias, que tantos têm designado de subjectivas – concluindo, depois, quer com a ideia de que por tal facto não devem ser desenvolvidas e discutidas, quer com a opção que então há que discriminar e fixar, tantas vezes maquinalmente, tudo aquilo que é objectivo, funcional e mensurável – falemos primeiro de algumas certezas:
- Uma destas certezas é que muitos de nós emigramos, nas férias, e nas possíveis escapadas de final de semana, para sítios mais ou menos paradisíacos – são os nomes desses sítios que tantas vezes chamam para uma tal associação de ideias – e quando aí estamos temos, frequentemente, a vontade de aí ficar, ou de encontrar, provavelmente, mais perto do nosso mundo diário, um sítio para viver que tenha muito mais a ver com as condições proporcionadas nesse “paraíso” do que com aquelas que caracterizam o sítio que habitamos na nossa cidade, e mais à frente, nesta sequência de artigos, voltaremos a um tal desejo e tentaremos, muito sumariamente, analisá-lo.
- Outra destas certezas, que podemos designar como comuns a muitos de nós, é que todos conhecemos sítios nas nossas cidades onde gostaríamos de viver, seja por razões de localização, de vizinhança, de aspecto, de funcionalidade, de carácter, etc., etc., e, no entanto, talvez um pouco como no caso das viagens em férias, parece que uma realidade é aquela que é a nossa, e outra é aquela onde outras pessoas habitam, ainda que na mesma cidade e por vezes no mesmo bairro; e, atenção, é necessário sublinhar que uma tal “selecção” de sítios de habitar não se faz apenas numa perspectiva de níveis financeiros diferenciados, havendo nas nossas cidades muitos sítios que, pela sua constelação de excelentes características urbanas e habitacionais são locais de eleição para muitos e numa opção que pouco tem a ver com esses aspectos financeiros.
Haverá, assim, de certa forma, a percepção de um mundo que é o nosso, onde se situam as pessoas com quem mais convivemos, e outros mundos que são dos outros, de todos os outros, ainda que tais mundos estejam ali bem ao lado; e há um mundo que é aquele onde vivemos o dia-a-dia e um outro onde vivemos os nossos dias de lazer. E provavelmente a razão de um tão grande corte entre estes mundos, encontramo-la nós nos aspectos económicos, que, como veremos têm duas facetas a dos espaços de habitar que estão disponíveis a um dado custo e a do custo real que é necessário para oferecer um dado nível de qualidade habitacional, que, como veremos são duas realidades bem distintas; e, além disto, há toda uma matéria qualitativa que não se reduz a uma estrita dimensão de custos.
Fig. 02: uma parte dos “Alvalades”, Lisboa: pormenor das células sociais, coord. Arq. Miguel Jacobetty, cerca de 1950.
Sinteticamente ficaria, assim, desde já o repto de podermos visar um mundo habitado em que viveríamos com a mesma qualidade – elevada e adequada – quer nos nossos dias ditos correntes, quer nos nossos períodos de lazer, uma qualidade que assim influenciaria positivamente o nosso bem-estar e a nossa alegria de viver e uma qualidade que, naturalmente, variaria na sua caracterização, em cada sítio, de forma a proporcionar-nos um essencial espectáculo urbano e natural mutante e diversificado, mas as “regras” de uma boa qualidade de habitar, essas seriam sempre respeitadas, porque assim é que devemos proceder, em termos éticos, porque estamos, hoje em dia, a passar da fase da quantidade habitacional com estrita qualidade funcional, para a fase de uma verdadeira, ampla, diversificada e caracterizada qualidade habitacional, e porque fazer assim, uma qualidade residencial deste tipo, não é mais dispendioso do que fazer mal ou continuar a fazer uma qualidade incompleta e defeituosa, bem provavelmente e antes pelo contrário, será, até economicamente, muito mais adequado pois quando há tendencialmente boas condições para uma vida mais feliz, provavelmente, o clima económico será, tendencialmente, mais favorecido.
O que precisamos de ter se quisermos construir um espaço habitacional plenamente satisfatório e mesmo verdadeiramente estimulante? Não se irá aqui fazer nem apenas um princípio de desenvolvimento, mas somente um apontar de diversos aspectos qualitativos que têm de existir quando queremos concretizar um tal objectivo e, já agora iremos acrescentando alguns comentários que vão confrontando as ideias expostas coma realidade que todos vivemos, quando procuramos uma nova habitação, ou quando simplesmente vivemos a cidade no nosso dia-a-dia e vamos, espontaneamente, imaginando viver neste ou naquele bairro.
Fig. 03: uma outra parte dos “Alvalades”, Av. Rio de Janeiro, Lisboa, cerca de 1950.
Começando do mais geral, e passando depois e gradualmente para aspectos mais pormenorizados, precisamos de um sítio de habitar que seja vivo em termos dos mais diversos serviços urbanos (lojas, restauração, escolas, consultórios, oficinas, etc., etc.) e a partir do qual possamos chegar, com facilidade e comodidade, ao mais amplo leque de outros sítios urbanos e de lazer (seja em transporte privado seja, comodamente, em transporte público).
Esta faceta qualitativa não parece ser estranha a um adequado viver na cidade, antes pelo contrário, é ela própria uma das mais importantes razões de ser da própria cidade e foi, em boa parte, para se poderem gozar estes tipos de vantagens que a cidade surgiu; no entanto, quantos bairros “dormitório” há por aí, e quantos outros que tendo um ou outro “café”, ou um ou outro “mini-mercado” daí não passam, e que haja a certeza que a cidade que acima se apontou é muito mais do que dormitórios com serviços urbanos mínimos, ou mesmo com serviços urbanos considerados como funcionalmente mínimos ou funcionalmente adequados (os bons bairros citadinos nunca foram nem nunca serão marcados por mínimos funcionais).
Fig. 04: uma das vizinhanças de um recente conjunto em Alcântara, coord. do Arq. Frederico Valsassina.
No nível imediatamente consecutivo e de maior pormenor – e repare-se que estamos aqui a considerar que nesta “nossa” cidade há um centro ou centros vitalizados (condição que não é infelizmente um dado adquirido em muitas das nossas “cidades”) – deveríamos ou deveremos ter vizinhanças de proximidade; e o que são estas vizinhanças de proximidade?
Não são mais uma invenção de técnicos especialistas, mas apenas a identificação de uma entidade urbana existente nos conjuntos urbanos com maior sucesso em termos de vitalidade citadina e de intimidade residencial, uma entidade com a importância protagonista do bairro e do edifício habitacional, embora, naturalmente, com uma identidade e um carácter específicos, e uma entidade urbana com uma dupla caracterização, em que é possível sentirmo-nos quase em casa, não estando ainda em casa, e quase na cidade mais pública, não estando ainda, plenamente, nessa cidade.
Ao escrever estas linhas esta faceta qualitativa parece óbvia, pois visamos, simplesmente, que a “nossa” rua, o “nosso” quarteirão, a “nossa” praceta ou o “nosso” conjunto residencial constituam unidades que além de jogarem com o resto da cidade joguem, também, com a nossa identidade, com o nosso sentido de bem-estar e, por que não o dizer, com um certo sentido de orgulho por habitar ali, naquele sítio a que chamamos nosso, ainda que todos, mesmo todos, o possam percorrer, uma possibilidade que é essencial ao bom viver desse sítio.
E dá vontade de comentar que esta ampla faceta qualitativa é daquelas que também não se entende que não existam, pois afinal estamos a tratar do bem-viver a cidade das vizinhanças – provavelmente aquela cidade que mantém a humanidade e a afectividade mesmo em grande aglomerações – e não estamos a falar de quaisquer tipos de suplementos de equipamentos ou de luxos. E assim vamos descendo no pormenor, continuando a crer que na macro-escala teremos um centro urbano que nos dê a outra dimensão da cidade que tão bem joga com estas dimensões de vizinhança mais íntimas – e este é um desejo que quando não cumprido ainda evidencia mais a necessidade de uma adequada e vitalizada vizinhança de proximidade.
Fig. 05: edifício da cooperativa Nova Ramalde, Aldoar, Porto, coord. Arq. Manuel Correia Fernandes, cerca de 1990.
Depois, a um nível urbano de maior pormenor, encontramos o edifício e aqui, praticamente na soleira do nosso espaço de intimidade, a faceta de um habitar verdadeiramente estimulante encontra no riquíssimo leque dos mais diversos tipos de associações de habitações um fundamental motivo de adequação às mais diversas formas de viver o dia-a-dia doméstico e aos mais diversos desejos de viver este mesmo dia-a-dia.
E aqui é fundamental chamar a atenção, por um lado, para a verdade dessa tal riqueza tipológica, bem patente em tantas soluções que aí estão nas nossas cidades, vilas e aldeias – trata-se, realmente, de um filão de soluções praticamente inesgotável –, mas também é fundamental sublinhar que há já muitos dados sobre a capacidade de adequação disponibilizada por muitas dessas soluções e sobre a capacidade que algumas dessas soluções oferecem em termos de harmonização entre o individual e o colectivo, e, finalmente, há que destacar que, embora tenhamos uma tão grande riqueza tipológica em termos de edifícios habitacionais, o que o mercado habitacional, frequentemente, nos oferece é “mais do mesmo”, em edifícios com “esquerdos e direitos” feitos, muito frequentemente, sem talento, numa fábrica de projecto que é quase exclusivamente estruturada pelas exigências dos regulamentos; e assim, esquece-se o resto e no resto está em grande parte a Arquitectura e a capacidade de contribuir para que os respectivos habitantes possam ser, verdadeiramente, mais felizes.
Fig. 06: habitação projectada com a participação do Arq. Charles Moore, em Malmö, cerca de 2000.
Naturalmente e para terminar esta espiral descendente, no sentido de uma cada vez maior pormenorização, temos, por fim, a habitação, o espaço doméstico, o mundo privado de cada família e de cada pessoa, e de certo modo para abreviar esta primeira incursão na temática podemos referir que aqui se passa, em boa parte, o que se apontou para o edifício, isto é, uma inconsequente, “gratuita” e estéril repetição de soluções-tipo extremamente pobres na sua capacidade de suporte e de motivação de diversos modos de viver a casa e, ainda, de diversos modos de poder apropriar e sonhar a casa – afinal uma das supostamente mais simples e “garantidas” formas de poder viver alguma liberdade e alguma capacidade de apropriação e de identidade.
Realmente o que nos é, frequentemente, servido a este nível do habitar é a solução cordata, funcional e “mediana” (no sentido de ser supostamente adequada a muitos) de um vestíbulo, a partir do qual se acede a uma zona mais social – com cozinha e sala – e a uma designada zona íntima, a dos quartos, e onde, por vezes, a melhor casa de banho é privativa de um dos quartos; e esta solução é considerada como praticamente “única”, numa opção que torna a escolha do habitar, no mínimo, com pouco sentido, pois afinal é quase tudo assim, e depois os edifícios são também, quase todos, “assim”, isto é “esquerdo-direito” e descaracterizados ou “apagados” na sua identidade de “edifício”.
Vamos, agora, rematar esta primeira incursão no querer-se e poder-se viver, todos os dias, em espaços que contribuam, claramente, para nos sentirmos bem connosco e com os outros, e que, portanto, sejam espaços que contribuam, claramente, para a nossa felicidade. Apontaram-se, assim, brevemente, as diversas facetas qualitativas que têm de existir quando queremos concretizar um tal objectivo, facetas às quais voltaremos, mais compassadamente, em próximos artigos e conclui-se, agora, este conjunto de ideias com uma, também breve, tentativa de aproximação a uma explicação da razão de parecer ser tão difícil a concretização deste objectivo e deste leque de facetas: uma cidade mais viva e solidária; uma vizinhança mais convivial e estimulante; um edifício mais humanizado e atraente; e, finalmente, uma habitação mais adequada e apropriável.
A razão ou o novelo de razões para a dificuldade de podermos dispor de tais condições de “boa-vida” urbana e residencial – Iñaki Abalos escreveu um excelente livro sobre o tema e “inventou” o conceito –, são, sumariamente: um mercado que tende a não oferecer essas condições porque se habituou a disponibilizar a “casa média” para a “família média” (a que não existe nem nunca existiu) e porque tem conseguido ganhar dinheiro com uma tal opção; uma procura que continua a não estar suficientemente esclarecida sobre a real existência de um tal leque de opções e sobre a viabilidade económica das mesmas; e, finalmente, uma ainda incipiente consideração da importância da qualidade arquitectónica em toda esta matéria, consideração esta que tem de partir, essencialmente, dos principais responsáveis pela qualidade da promoção urbana e habitacional, desde o nível autárquico ao estatal.
Em outros artigos desta série comentaremos e aprofundaremos as facetas do bom-habitar que foram aqui apenas apontadas, assim como outras que as cruzam e que em boa parte contribuem para a sua fundamental caracterização, como é o caso da vital presença da natureza, mas não se conclui este texto sem uma última referência a ser este tipo de preocupações a prova cabal de que muito daquilo que integra a qualidade arquitectónica residencial está bem para lá das “simples” preocupações funcionais: já passámos, felizmente, esse “cabo” há alguns anos, hoje outros novelos qualitativos estão aí para serem desenvolvidos, aplicados e depois avaliados.
Casais de Baixo, Azambuja, 8 de Agosto de 2008.
Editado por José Baptista Coelho, em 9 de Agosto de 2008.
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