Escala humana e bom-habitar – O bom-habitar IV, sobre uma matéria das mais importantes; a fundamental e ampla questão da escala
Artigo de António Baptista Coelho
Ainda na continuidade de alguns acontecimentos, muito negativos, que marcaram a vivência de bairros de realojamento, ou “sociais” da periferia lisboeta, voltamos a este tema do bom-habitar, numa perspectiva que é, provavelmente, uma das mais estruturantes das matérias associadas ao bom-habitar e à satisfação residencial: a escala humana.
Ainda não há muito tempo, numa prova pública no LNEC, não houve oportunidade de se responder, devidamente, a uma questão sobre o que se pode considerar como sendo a natureza da escala humana residencial e urbana e, naturalmente, sobre a importância que se atribui à mesma matéria, designadamente, no que se refere a aspectos de satisfação residencial. Não será neste artigo que tal se fará, de forma sistemática, mas serão aqui apontadas algumas reflexões práticas e parciais sobre o assunto; que é, talvez, um dos principais assuntos do bem-fazer Arquitectura, e daí a presença, quase sistemática, do tema em tantas “memórias descritivas” associadas, designadamente, a edifícios de habitação.
Não é, portanto, nossa ideia abordar, profundamente, o tema da importância da escala humana residencial no que se refere a uma satisfação que seja alavanca de uma vida mais profícua e feliz, mas apenas desenvolver o tema de uma forma genérica e informal, aproveitando, aqui, já em seguida, uma simples ideia de sequência de espaços urbanos: uma espécie de “jogo da glória”, que neste caso vai da cidade ao interior doméstico (e que, depois, voltará, sempre, um pouco da casa à cidade, através das vistas que se têm das janelas).
Fig. 01: o sítio, entre as adequadas situações de apoio à identidade e às boas-vindas e o frequente sentido de ausência de relações de identidade ou mesmo de agressividade ambiental e funcional – uma rua do Porto.
Quando chegamos ao sítio onde moramos podemos ter a ideia de estar próximos de um objectivo específico e caracterizado, ao qual nos ligamos por laços de identidade e de aspectos ambientais, formais e funcionais, que são, desejavelmente, positivos, ou então, consideramos o sítio onde moramos como “mais uma rua”, “mais uma zona”, igual a tantas outras e, como tantas outras, com inúmeros problemas e defeitos formais e funcionais.
Não será um cuidado específico de escala, de pormenorização em aspectos funcionais e formais, que fará a diferença entre um sítio caracterizado e outro descaracterizado; não é apenas devido a esses aspectos que nos ligamos ou desligamos de um dado sítio urbano e residencial; mas uma adequada escala de tratamento bem referenciada à escala humana caracterizando um bairro ou um pequeno bairro terá sempre a ver com um cuidadoso projecto geral, muito sensível à sua respectiva e ampla integração e a tudo aquilo que existia, antes, na zona, e, igualmente, muito sensível a uma variação pormenorizada com os diversos sítios específicos que, conjuntamente, constituem a identidade da zona e que, particularmente, se diferenciam nos mais diversos sub-espaços, seja por razões funcionais, seja por razões formais, seja por coerentes e consistentes misturas diversificadas de diversas formas e diversas funções.
Se há um aspecto que caracterize a escala humana a este nível amplo do “sítio” e do “pequeno bairro”, talvez que a coerente e consistente diversidade de características formais e funcionais, seja esse aspecto; enquanto, no reverso da medalha, teremos sítios marcados pela monotonia formal e funcional, como tratando-se de “soldados” urbanos gémeos, impessoais, não-humanos, uns ao lado dos outros, criando uma confusão geral sem referências de orientação, e uma confusão que é frequentemente agudizada por verdadeiras falhas funcionais e pela ausência de qualquer tipo significativo de cuidados formais.
Talvez que a imagem que possamos usar para ilustrar esta desagradável realidade que marca tantas das nossas periferias urbanas seja a de uma situação marcada por um espaço edificado sem verdadeira presença, porque sem qualquer identidade e onde as referências amplas – formais e funcionais – aos utentes humanos não são sérias, resultando, apenas e exclusivamente, de acasos extremamente pontuais, quando poderiam e deveriam estar disseminadas estrategicamente por todos os locais que marcam, ou que deveriam marcar, em cada sítio, as suas relações com a continuidade urbana.
Teremos, assim, um sítio que poderá variar entre uma extrema amigabilidade e uma atraente identidade e situações de total anonimato e, tantas vezes, de clara agressividade ambiental e funcional; e é, realmente, grave a possibilidade, tantas vezes real, de se viver, de se habitar – “marcar” o sítio onde se vive –, sem qualquer possibilidade de se exercer uma tal marcação afectiva e com muito reduzidas condições de funcionalidade urbana e residencial. Porque não tenhamos ilusões: quem não quer e quem não sabe prover os sítios com uma adequada caracterização de escala formal e funcional, referenciada às dimensões, aos usos e à própria natureza humana, também não quererá nem saberá projectar os sítios residenciais e urbanos com uma adequada e ampla funcionalidade e com um adequada e ampla caracterização arquitectónica; trata-se, afinal e sempre, no princípio e no fim destas questões, de uma matéria ligada à cultura e nunca serão muitos os projectistas capazes de fazer verdadeira cidade com verdadeiras vizinhanças residenciais e urbanas.
E é ainda importante sublinhar que a estrita funcionalidade urbana, aquela “simples” funcionalidade ligada, por exemplo, ao comprar pão fresco e um jornal diário, e ao poder sair daquele sítio com relativa facilidade e um máximo de autonomia (ex., em transportes públicos adequados), é, muito provavelmente, muito mais sensível e complexa de assegurar do que parece em primeiras “leituras”; e, infelizmente, ainda se entende esta matéria de uma forma muito parcial e culturalmente muito pouco fundamentada.
Fig. 02: a vizinhança, a vizinhança que é “nossa”, a vizinhança onde nos sentimos, já, em casa, mas onde ainda nos sentimos, estrategicamente, um pouco, na cidade – uma vizinhança de Alvalade, Lisboa (proj. Arq. Faria da Costa).
A seguir entramos na vizinhança de proximidade, e aqui então teremos, talvez, o sítio que deveria ser o local ideal para a marcação de uma “escala humana” que, mais do que uma referência à dimensão e aos usos humanos, fosse uma expressão da presença e da identidade de um determinado grupo de humanos, grupo este que se prolongasse, depois, naturalmente, por grupos mais delimitados e reduzidos até se chegar quase à contiguidade da presença de cada pessoa, na sua forma física e na natureza dos seus gostos e desejos mais íntimos –isto já praticamente ao nível dos recantos domésticos e dos seus eventuais e parcelares reflexos públicos.
Voltaremos, aqui, a esta matéria, que é a matéria da qual se fizeram alguns dos melhores espaços de habitar casas e cidades, mas importa sublinhar que é em pedaços de ruas, travessas, pequenas praças e pracetas, quarteirões e outros afirmados conjuntos de edifícios agregadores de fogos, que se faz, por um lado, a síntese de proximidade de uma cidade mais humana, mais sensível, mais fisicamente próxima do homem e mais ambientalmente próxima dos seus usos, enquanto, por outro lado, se faz a síntese mais urbana dos aglomerados de habitações e espaços domésticos, atribuindo-se um importância estratégica à relação entre habitação e cidade, e construindo-se, assim, “passo a passo”, “pedaço a pedaço”, uma cidade que no âmago é assim feita de uma habitação com uma dupla identidade, ligada ao seu habitante e à sua cidade.
E assim se entende a natureza e a importância dessa escala humana a este nível da vizinhança de proximidade, pois é na capacidade que a cidade pode e deve ter de se “reduzir”, sem se apagar, até quase à porta da habitação de cada um, e, igualmente, na capacidade que a habitação pode e deve ter de se “ampliar”, sem se exceder, até quase à “porta”da cidade, é nesta dualidade “entre cidade e casa”, que tem de estar uma forte, agradável, envolvente e equilibradamente caracterizada vizinhança, e é aqui que a escala humana, física e sensível, tem e deve ter a sua mais forte presença.
Como? A resposta em termos de casos concretos comentados ficará para outros textos e outros artigos; mas é essencial ter a noção de que, no reverso da medalha, teremos, frequentemente, o anonimato e a massificação a irem até quase à porta das habitações; teremos e temos, infelizmente, tantas vezes, a tal “mancha de óleo” urbana, poluidora e tão desgraçadamente negativa, que marca tantos sítios como iguais a tantos outros sítios e como tão sem qualquer interesse, e sem qualquer interesse para qualquer um de nós e sem qualquer interesse para qualquer sítio, numa crítica negação dos fundamentais aspectos da identidade e do simples e natural estímulo sensorial.
Fig. 03: o edifício, o edifício que, mais do que uma realidade efectiva, poderá ser uma condição de marcação de identidades, de expressão de integrações particulares e paisagísticas – um pormenor de edifício em Telheiras, Lisboa (proj. coord. Arq. Duarte Nuno Simões).
Em seguida entramos no edifício e, ao entrar, a escala humana marca a nossa passagem e os espaços de limiar de uma forma determinante.
Mas se considerarmos uma desejável sequência de espaços e de ambientes é importante que uma tal marcação não faça esquecer a presença da vizinhança e, mais em fundo, mesmo, a própria presença (matizada) da tal idade feita de proximidades e de alguns eixos estruturantes.
E é numa tal sequência de espaços e de ambientes que sobressai, novamente, um importante elemento comum, o homem e a sua escala humana, física e ambiental, física e sensorial, física e, mesmo, simbólica; e é, provavelmente esta continuidade que irá ser, ainda, fundamental motivo de expressão na relação da vizinhança com cada habitação.
Voltaremos, noutros textos, ao edifício na sua interessante e possível expressão de uma escala humana que não pode negar ainda uma certa escala urbana de vizinhanças constituintes de partes coesas de cidade, mas, desde já se aponta que no arquitectar de edifícios com identidade e boa expressão formal e funcional o marcar da escala humana sempre foi e sempre será algo de fundamental; só que muitas vezes ou não se sabe desta necessidade ou, sabendo-o, não se sabe concretizar tal necessidade em aspectos edificados.
E uma outra realidade é fundamental nesta abordagem da escala humana ao nível do edifício, é que é possível e é, por vezes, extremamente interessante, proporcionar relações quase directas entre uma vizinhança urbana e a presença das habitações, quase “saltando a presença do edifício”, e esta possibilidade tem também muito a ver com a importância da escala humana, que está tão evidente em escadas, portas de habitações, conjuntos de janelas e mesmo “alas” domésticas.
Fig. 04: e a habitação; o mundo da escala humana – um vão doméstico caracterizado.
E neste “jogo da glória” do habitar, marcado pela escala humana, chegamos, assim, à própria habitação e aqui pouco avançamos, para já, pois iremos tratar o mundo doméstico e a escala humana num outro próximo texto, mas ideia é que, aqui, podemos e devemos ter acesso a um outro mundo pessoal e familiar, muito amplo, em termos de potencialidades de uso e de apropriação, mas que um tal mundo tem de ter, em si próprio, uma constante solução “de reverso”, de reflexo activo das escalas comuns do edifício e essencialmente das escalas públicas da vizinhança, protectora e caracterizadora, e da fundamental continuidade urbana; isto para que o mundo privado de cada um possa ser vivido numa rica relação de contiguidades e de proximidades, abertas à vizinhança/cidade e todas elas positivamente trespassadas pela escala humana.
Ficamos por aqui, e, mais uma vez, se desafiam os leitores a enviar - à redacção do Infohabitar (abc@lnec.pt ou abc.infohabitar@gmail.com ) - textos sobre estas matérias; neste caso sobre a escala humana nos espaços residenciais e urbanos, onde exponham algumas ideias sobre como configurar soluções de bom-habitar à escala humana.
Casais de Baixo, Azambuja, 30 de Agosto de 2008.
Editado por José Baptista Coelho, em 1 de Setembro de 2008.
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