Artigo de António Baptista Coelho
Cidades da viagem e do estar: o caso de Barcelona I
Quando viajamos procuramos, sempre, um certo sentido da mudança embora temperado com aspectos de calma e de bem-estar, muitas vezes associados a sentimentos associados a espaços e ambientes com os quais temos afinidade, seja porque já os conhecemos, seja porque conhecemos e apreciamos espaços com aquele tipo de características.
Viajar pode e deve ser uma espécie de saborear novidades, novidades disseminadas por muitos sítios da uma cidade, por muitos novos tons, ou melhor, misturas de tons, por cheiros novos, por uma nova luz do céu e por novas palavras; mas talvez para que tais novidades possam ter a melhor oportunidade de serem por nós entendidas, talvez que o viajar por essas novidades possa ser agradavelmente equilibrado por um estar em sítios que nos sejam razoavelmente “familiares”, por determinadas configurações e ambientes, e onde possamos gozar com calma e amigabilidade seja estes mesmos remansos de calma, seja as novidades que ali estão tão perto.
E aqui é fundamental sublinhar, desde já, que Barcelona é daquelas cidades extensamente equipada com tais espaços-armadilha, que nos fazem parar, primeiro para olhar, depois para olhar melhor, e, finalmente, para arranjar mais uma nova e boa desculpa de ficarmos ali, naquele sítio específico, mais um pouco, não só pelos espaços que naquele sítio se cruzam e se ligam, mas também pela vida e pelas vidas cujos cruzamentos e ligações ali também se sentem.
Fig. 01: perto da Ribeira, Barcelona
A vida de nós todos é em boa parte feita de um acumular, gradual, de memórias e a memória dos sítios é uma qualidade que nos vais marcando, gradualmente, a nossa forma de viver, pois ao viajarmos dessa maneira, com um sentido duplo de descoberta e de habitar pontualmente os novos sítios, vamos enriquecendo a nossa experiência de vida, e vamos dando forma ao nosso catálogo de soluções de viver a cidade e as suas vizinhanças. E neste acumular de experiências conseguimos, além de viver mais intensamente o tempo da viagem, construir um juízo mais adequado da própria realidade que habitamos no dia-a-dia.
Mas para tal é necessário viajar, habitando, ainda que viajando muito mais do que habitando, pois dificilmente conseguimos ir até uma nova cidade e aí estar o tempo suficiente e de seguida para nos sentirmos verdadeiramente seus habitantes.
Nestas matérias há cidades que são “muito de viajar”, são, realmente, mais do lado do viajar, do novo, da mudança, e da surpresa; enquanto outras cidades são, parece, mais do lado do ficar, do dia-a-dia, das rotinas a que nos ligamos com gosto.
Esta parece ser uma realidade e não criticando, excessivamente, as cidades que são muito do lado da viagem, da passagem, e dos turismos do constante movimento, não tenho dúvida de que sempre gostei mais e que cada vez mais gosto daquelas cidades que têm o condão de casar o viajar com o ficar, seja porque parece serem habitadas por habitantes que parecem ser fanáticos do estar e do viver intensamente a sua cidade, seja porque os seus espaços os espaços urbanos que as configuram parecem ter sido formados com o objectivo de fazerem as pessoas que neles passam, parar, olhar, ficar um pouco, andar um pouco, voltar e, enfim: ir ficando, e ir ficando até com o risco real de, sendo até turista, assumidamente, “de passagem”, não chegar a ver nem metade do que tinha pensado ver, e então haverá que se pensar em se voltar, em voltar para ficar mais um pouco.
Fig. 02: ruas de passear e “ficar”, em Barcelona.
O nosso tempo tem sido, cada vez mais, o tempo da viagem, mas a ideia que parece começar a sedimentar-se é que há cada vez mais dois grupos de viajantes: os que viajam como quem vai coleccionando vistas e aliás as vai registando em imagens, mais até do que no próprio sentimento, numa espécie de ver através da objectiva; e os que tentam ir viajando como quem habita os sítios dessas viagens.
Barcelona tem espaço para os dois tipos de viajantes, embora se sinta um frenesim urbano em determinadas zonas que torna difícil um estar com um mínimo de calma; e aqui é interessante lembrarmos, por exemplo, a nossa Lisboa e o nosso Porto e entendermos como é tão possível viajar habitando estas excelentes cidades, uma perspectiva que parece ter sido ainda pouco explorada entre nós, mas que é de grande oportunidade, num caminho de turismo de qualidade, e se estende a outras nossas grandes cidades.
Convençamo-nos que é excelente viajar, “ficando” um pouco, ficando porque se viaja com calma, com sentido de ver e de estar, realmente, nos sítios visitados, ficando porque se escolhe uma determinada cidade porque antecipamos nela poder viver espaços que nos agradam, que têm a ver com aspectos que marcam aquilo que sentimos e o que nos caracteriza.
Nesta opção por viajar ficando voltámos a Barcelona, ou fomos a sério a Barcelona, pois a primeira vez tinha sido de passagem, descer as Ramblas e pouco mais.
Fig. 03: nas Ramblas
E já nessa altura descer as Ramblas, na única tarde que então tivemos disponível, foi também uma opção de viajar ficando, pois tivemos como cicerone várias descrições de Montálban, através do seu detective Pepe Carvalho, e duas especialmente marcantes: uma delas do rematar das Ramblas na margem do mar e outra do atravessar do mercado da Boqueria; afinal, uma opção que tudo tem a ver com o tentar sentir como batia o coração daquela cidade, e ouvimo-lo um pouco, baixo, baixo, mas forte.
Desta vez habitámos Barcelona alguns – infelizmente muito poucos – dias e nela sentimo-nos a viajar e a ficar, e a seguir darei alguns exemplos desta nossa assumida duplicidade.
Viajar um pouco, mas “fugindo” das Ramblas e do seu furor citadino, mas habitando um poucochinho a Praça Real, um espaço fantástico de escala.
Fig. 04: a Praça Real
Viajar um pouco na por vezes absurda confusão das pontes e centros comerciais ribeirinhos – absurda mas tão cheia de vida – , mas deslumbrados depois com a incrível escala humana e a amigabilidade da Barceloneta, uma pequena e vivíssima cidade junto à praia e junto à grande cidade.
Fig. 05: uma rua de Barceloneta
Viajar nos extensos núcleos urbanos e comerciais da Cidade Velha, mas onde fomos descobrindo, um pouco por todo o lado, partes marcadas pela cor, pela forma e pela vida das cidades de província, mas sem nunca se deixar de ouvir, mas agradavelmente abafada, a torrente das avenidas, uma outra forma de viajar, ficando por trás dessas avenidas, descobrindo bairros que podem ser os escolhidos para voltar, outras vezes, como é o caso da Ribeira e de Santa Catarina, se quisermos sentir, ainda assim, a cidade velha, como uma cidade-formigueiro, perfurada por ruas estreitíssimas e pequenas praças muito humanas, e no meio de tanta velha construção, de repente, uma árvore.
Fig. 06: na zona de Santa Catarina
E, ainda, a viagem e o estar na simbiose que só os bairros da arte conseguem proporcionar, como é o caso do Raval, onde é evidente o pulsar da cidade e a força e juventude das dimensões artísticas ou culturais num sentido mais verdadeiro.
A ideia que ficou foi a de uma verdadeira cidade feita de camadas concêntricas, diversificadas e ligadas pelos mais diversos caminhos e meios, e há o sentido de se ter feito uma pequena descoberta, como se tivéssemos encontrado uma porta secreta, e uma passagem que ali estará para um conjunto, apenas parcialmente revelado, de caminhos, pois ainda há os jardins, e ainda há as praias e a montanha, ali ao lado, e ainda há as Barcelonas mais novas – da arte nova às novas arquitecturas –, e tudo parece estar bem vivo e não só devido às pessoas da viagem – pois embora haja muitas pessoas da viagem também se continua a sentir a força das pessoas que habitam a cidade e, interessantemente, parece já haver, claramente, muitos “convertidos”, que terão chegado como viajantes e que se tornaram habitantes.
Fig. 07: uma praça de Barceloneta
Barcelona “vê-se”, tem muito para ver, mais de passagem ou mais longamente, mas tem, claramente, muito para viver e saborear, e talvez esse seja um dos segredos desta cidade, ela poder ser um pouco uma “cidade da viagem”, mas nunca deixando de ser uma cidade do estar e do habitar, e talvez possa ser mais verdadeiramente uma “cidade da viagem” por ser uma cidade com uma cultura tão viva e caracterizada e tão embebida num ambiente urbano profundamente atraente e valioso.
Nota do autor: este texto deve muito – inclusive algumas frases completas – a um outro texto, mais curto, realizado sobre o mesmo tema, intitulado “Viajar e ficar, em Barcelona” e assinado em pareceria com a Isabel Romana.
Casais de Baixo, Azambuja, 3 de Setembro de 2008-09-02
Editado no Infohabitar por José Baptista Coelho, 7 de Setembro de 2008.
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