Mais e melhor habitação, mais e melhor cidade
E atente-se que nesta qualificação não surgem, por exemplo, aspectos funcionais aos quais ninguém nega a importância, só que talvez agora a principal batalha seja outra.
Para além de mais qualidade precisamos de mais habitação devido: à desagregação da família tradicional; ao aumento da esperança de vida; ao crescimento do trabalho e do lazer em casa; à “necessidade” de cada vez mais espaço doméstico; à existência de muitas habitações eventuais e outras degradadas e longe dos centros urbanos; ao constante crescimento das grandes zonas urbanas do século das cidades; à substituição de um parque habitacional sem viabilidade de reabilitação e sem valia cultural; e devido às graves carências habitacionais que ainda persistem – das habitações precárias à sobre-ocupação.
Uma necessidade recentrada numa habitação tipologicamente diversificada e amplamente qualificada, a tal com um “carácter particular num sítio inesquecível”, a tal que falta na cidade humanizada que também hoje nos falta, regenerada por vizinhanças vivas, e que harmonize satisfação residencial com qualidade arquitectónica.
E nestas matérias de uma fundamentada adequação qualitativa e diversificação tipológica de soluções residenciais completas – que vão da casa á vizinhança urbana – salienta-se, na prática, o interesse da promoção cooperativa habitacional, estruturada por objectivos de participação dos habitantes, integração e gestão urbana; afinal objectivos de grande actualidade pois conduzem ao desenvolvimento de soluções habitacionais e citadinas marcadas pela identidade, pelo potencial de apropriação e pela adaptabilidade, num caminho de substituição da produção repetitiva e massificada por uma produção habitacional e urbana personalizada e caracterizada, uma perspectiva de desenvolvimento que se integra totalmente na perspectiva de desmassificação, que foi recentemente defendida, em Lisboa (2008), por Alvin e Heidi Toffler, como sendo de grande actualidade.
Sinteticamente, é possível afirmar que há que pensar muito menos em tipos de edifícios e muito mais em tipos de habitações, acessibilidades, agregações de habitações personalizadas, serviços residenciais diversificados e vizinhanças “únicas”, criadoras de orgânicas partes de cidade, atraentes, conviviais, afectuosas e culturalmente fundamentadas, pois está a fazer-se a cidade de todos. E esta é uma temática que exigirá aprofundamento numa série específica do Infohabitar.
É assim chegada a altura de não mais maltratar o habitar como um produto de consumo e deficientemente concebido, porque esquecido de boa parte das suas valências, de não mais repetir cegamente projectos-tipo sem desenho e de não mais fazer dormitórios tristes, pois soltos da cidade; é tempo de fazer cidade viva com habitação bem desenhada e que ajude as pessoas a serem felizes, e, em tudo isto, é urgente aplicar uma ampla política habitacional.
Uma ampla política habitacional que tenha em conta a necessidade de harmonizar a evidente necessidade de reabilitação urbana, numa perspectiva de revitalização citadina, com a também muito evidente necessidade de construir ainda muita habitação de interesse social em que há que equilibrar os fundamentais objectivos de integração social e física (integração positiva e em pequenas intervenções) com os ainda necessários objectivos ligados ao grande número; pois afinal debatemo-nos, ainda, com uma carência estimada em cerca de 200.000 novas habitações, às quais há que adicionar aquelas que são necessárias a um muito elevado número de famílias que vivem em sobre-ocupação (cerca de 250.000), e é também necessário ter, ainda, em conta um número também muito elevado de habitações que precisam de obras urgentes (mais de 300.000), indicações estas que consideram notícias recentes (finais de 2007 e início de 2008) que têm sido divulgadas na comunicação social.
Aprofundando, agora, a referida perspectiva de não mais maltratar o habitar, tratando-o como um produto de consumo e deficientemente concebido, uma preocupação que é sempre fundamental quando se apontam estes elevados níveis de carências habitacionais, que ainda persistem, é necessário sublinhar, desde já, que uma urgente e aprofundada preocupação com o habitar, seja o habitar a habitação, propriamente dita, ou a habitação das vizinhanças habitadas e amigáveis, seja o habitar (d)a cidade dos homens, é uma preocupação que tem de ser assumida como fundamental na megasociedade e na megacidade de hoje, se não perdemo-nos, perdendo-nos em identidade, perdendo-nos em cultura, perdendo-nos em humanidade e perdendo-nos na nossa fundamental dimensão cívica, tolerante e convivial.
E não tenhamos quaisquer dúvidas que para (con)viver (n)a cidade precisamos de nos sentir bem com a nossa casa, entenda-se casa a casa entre paredes e em privacidade individual e familiar e a casa/bairro ou mesmo a casa/cidade, e que para viver à vontade a megacidade e para estar em rede com vontade e espírito aberto, é muito bom que nos possamos ligar a alguns aspectos fortes de enraizamento e de identidade:
. seja em mundos pessoais e familiares;
. seja em cenários afectivos e efectivos de vizinhança de proximidade;
. seja nos mundos citadinos intermédios e bem conhecidos de bairros bem caracterizados e funcionalmente bem estruturados.
Só assim, habitando, com gosto e satisfação, uma cidade bem habitada, e habitando-a (marcando-a e sendo por ela marcado) desde os recantos domésticos aos recantos urbanos, uns e outros envolventes e apropriados, só assim poderemos estar verdadeiramente disponíveis para o outro sentido mais global e sempre um pouco abstracto do habitar o mundo, que passa por realidades relativamente virtuais e “em rede”, que terão de encontrar uma excelente base real, capaz de incentivar a manutenção das relações sociais efectivas, num convívio feito em presença real do outro e entre outros.
Há assim, portanto, muito a fazer num combate sem tréguas a um habitar desenraizado, descaracterizado, impessoal e sem natureza cívica e convivial, um combate onde há que harmonizar, sem hesitações e sem recuos, mais e melhor habitação e cidade, pois, tal como muito bem afirmou Luís Fernández-Galiano, “o problema da habitação tornou-se o problema da cidade”, e pode acrescentar-se que o problema da cidade se tornou o problema deste mundo que é afinal, hoje em dia, o mundo das grandes cidades, que devemos resgatar e reganhar para os homens.
E citando um belíssimo texto de Rafael Toriz (1) podemos dizer que “foi erro nosso pensar a cidade como abstracções, conjugando um plural aberto com o qual se apontam imensidades: fizemos das megacidades labirintos e totalidades abissais – sem harmonia – para o objectivo/finalidade que as habita: o nosso corpo e a sua tão delimitada visão.” Uma frase que nos remete para a importância que tem o aprofundar de uma ampla humanização do habitar e da cidade habitada, uma humanização com reflexos directos numa qualidade arquitectónica que seja qualidade cultural e qualidade sentida pelos seus habitantes.
Notas:. A ilustração é indicativa das matérias abordadas no texto, desenvolvendo a via dos bons exemplos e dos casos de referência, apontando essencialmente a prova de ser possível (e urgente) aliar: “habitação social”; qualidade arquitectónica; habitação com qualidade; e revitalização urbana.
(1) “Cartografias: Las ciudades – el lenguaje – y la voz que las habita”, um artigo editado no excelente site “Antroposmoderno” ( http://www.antroposmoderno.com )
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