Em memória bem viva de José Paulo Goulart de Bettencourt
Infohabitar, Ano XVI, n.º 732
Sobre uma habitação mais adaptável – Infohabitar
# 732
Por António Baptista Coelho (texto e imagens)
Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar, estimados
amigos,
Esperando que estejam todos de saúde e, novamente,
com um muito especial abraço de força e de confiança no futuro aos muitos amigos
e leitores desse grande País Irmão, que estão agora a atravessar uma fase
complicada da epidemia.
Continuamos um “retorno” a uma abordagem relativamente
sistematizada dos espaços domésticos, feito tendo por base alguns artigos já
aqui editados e que foram e serão, naturalmente, extensamente revistos, desenvolvidos
e “recomentados”, para esta ocasião editorial.
Este relativo “retorno” – relativo, porque o
tema dos mundos domésticos esteve, está e estará sempre presente na Infohabitar
– justifica-se, entre outras razões, pelo evidente e novo protagonismo que
esses nossos espaços de vida assumiram nas longas semanas do nosso
confinamento; um relevo que importa sentir em profundidade e aproveitar em tudo
aquilo que possa contribuir para uma adequada e bem ponderada revisão
programática, quantitativa, qualitativa e objetivada dos nossos mundos
domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos agradem aos
nossos estimados leitores e lembrando-se, sempre, que serão muito bem-vindas
eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e mesmo propostas de
novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com ao meu
cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações
calorosas e desejos de muita força e de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 1 de junho de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar
Sobre uma habitação mais adaptável – Infohabitar
# 732
António Baptista Coelho
Continuando a apresentar e comentar reflexões
de projectistas e estudiosos sobre aspetos considerados estruturantes nas
opções de organização dos espaços domésticos, ficamos em seguida com Amos
Rapoport e, depois, com Christopher Alexander, entre opiniões de outros
autores, privilegiando-se uma perspetiva que tenta aprofundar a grande
diversidade de soluções potencialmente disponibilizadas, que integram uma
verdadeira dimensão de adaptabilidade habitacional, e que, assim, propiciam uma
vida doméstica mais adequada, agradável e estimulante.
Habitação e modos de vida
Amos Rapoport evidencia
três factores a ter em conta naquela que ele considera dever ser uma
aproximação muito cuidadosa e funcionalmente “aberta” a uma solução doméstica
que sirva, o melhor possível, determinados modos de vida familiares: (1)
A negrito/bold
evidenciam-se as indicações de Rapoport e de outros autores.
·
o afastamento cultural existente e a "capacidade
de comunicação" que possa ser criada entre habitante e projectista
[capacidade esta que parece ser potenciada através da acção de certos
promotores como é evidentemente o caso das cooperativas de habitação, que desde
sempre consideraram a participação dos, e a boa informação aos, futuros habitantes
como um processo essencial no acesso à habitação];
·
a significativa variedade de subculturas que estão,
actualmente, em mutação rápida (designadamente, por desenraizamento cultural e
imigração para as grandes cidades) [e aqui poderemos acrescentar que
actualmente vivemos um período em que essa grande diversidade de modos e desejos
de habitar ficou e ficará extremamente evidenciada];
·
e a existência, em cada grupo sociocultural, de muitos
níveis de aculturação e mesmo de mutação sociocultural.
Diversidade no habitar – diversas soluções domésticas e de vizinhança
É ainda Rapoport que
evidencia o que considera ser a principal medida de adequação entre habitação e
família, ou entre habitação e características socioculturais, que é, para
aquele estudioso, a oferta de uma ampla capacidade de escolha ao futuro
morador, seja do tipo específico de habitação, seja do tipo geral de solução
habitacional.
E se a escolha do tipo
geral de habitação, designadamente, entre soluções uni e multifamiliares é
bastante difícil, essencialmente por razões financeiras e de localização, então
o “universo” das soluções multifamiliares poderia e deveria obviar a esta falta
de diversidade de oferta, disponibilizando um amplo leque de formas de habitar
com variedade de caraterísticas específicas e de relacionamento com o exterior;
o que infelizmente não acontece.
Trata-se, portanto, de
uma espécie de capacidade de adaptação prévia, por possibilidade de escolha e
aqui importa comentar que o mercado, infelizmente, nem disponibiliza,
habitualmente, variedade de soluções habitacionais de vizinhança e de formas de
associação em edifícios, nem mesmo variedade de soluções domésticas, o que
seria muito mais simples.
Mas, não! O mercado,
por regra, oferece o mesmo “produto” do 1º ao 7º andar. Há excepções, começa a
haver excepções, mas por ora elas pouco ultrapassam a barreira da produção dita
de luxo, ou então da promoção de interesse social, quando bem qualificada e
informada.
Habitação adaptável
Há que evidenciar aqui
que as matérias da adaptabilidade doméstica são de extrema importância no
sentido de uma maior apropriação da casa pelos seus habitantes e de
favorecimento de soluções domésticas mais duráveis e adequáveis em termos de
natural conversão funcional e de ambiente doméstico geral – por exemplo, uma
casa que se transforme com facilidade de uma solução com um assinalável peso de
áreas de quartos, para uma outra marcada por uma expressiva sequência de áreas
de estar.
A adaptabilidade
doméstica foi aprofundada, ainda não há muitos anos, num livro editado pela
Livraria do LNEC, intitulado “Habitação evolutiva e adaptável” (ITA 9), e
importa aqui referir que ela é fundamental:
- quer no sentido de se proporcionar aos moradores uma
expressiva capacidade de apropriação do seu espaço doméstico;
- quer no sentido de se compatibilizar a organização da
habitação e dos seus aspectos específicos de ordem construtiva, funcional
(relações entre espaços), dimensional, ocupacional (capacidade de
acolhimento de mobiliário) e ambiental (localização, dimensão e
características de abertura de vãos exteriores).
Fig. 01: livro editado pela Livraria do LNEC, intitulado
“Habitação evolutiva e adaptável” (ITA 9).
Habitação apropriável e habitação natural e agradavelmente mutante
A primeira perspectiva,
acima referida, evidencia a importância que tem o potencial de capacidade de
apropriação de uma habitação por parte de quem a habita. Trata-se,
naturalmente, de um aspecto de enorme importância para o desenvolvimento da
adequação habitacional e de um sentimento de verdadeira satisfação com o
habitar, e tem expressão directa na possibilidade que a casa deve oferecer para
o desenrolar de uma importante dinâmica de mudança periódica nos arranjos
domésticos:
- seja por conversões funcionais e de mobiliário, mais
frequentes, simples e passivas (simples mudanças nas disposições de
conjuntos de mobiliário e outros elementos de composição e decoração);
- seja por conversões funcionais e de mobiliário associadas a
eventuais junções e subdivisões de compartimentos.
Um exemplo extremo deste tipo de solução é dado
por Sven Thiberg (Sven Thiberg, Ed., "Housing Research and Design in
Sweden", p. 139), quando se refere ao compartimento tradicional da casa
japonesa, que muda, funcionalmente, através de mudanças de peças de mobiliário
muito simples; e, mesmo na nossa cultura, bastará recuarmos à Idade Média
para encontrarmos soluções semelhantes.
E há que sublinhar que a referida dinâmica de mudança periódica nos arranjos domésticos obriga a uma organização e a um dimensionamento muito cuidados dos espaços domésticos e a uma espaciosidade razoável porque seja ou claramente acima dos mínimos regulamentares, ou próxima de tais mínimos mas compensada por uma excelente solução de organização e configuração domésticas – um excelente projecto de Arquitectura, portanto.
Fig. 02: o atual espaço
de trabalho do autor destas linhas, que resultou do aproveitamento de uma velha
mesa de jogo, arrumada num canto de um compartimento razoavelmente espaçoso e
bem localizado na contiguidade de uma varanda; a relativa exiguidade do espaço
é em boa parte compensada pela sua excelente localização em termos de conforto
ambiental (luz natural, ventilação natural, boa orientação solar a Sul,
contiguidade com o exterior privado.
Neste “recanto” doméstico
é possível conciliar um razoável leque de atividades de trabalho e de lazer
(ex., leitura e audição de música), criando-se condições adequadas para a privacidade
e um membro da família e para as suas necessidades de relativo isolamento
(trabalho, lazer); condições estas que podem ser replicadas em outros
compartimentos da habitação para outros membros do agregado, com excelentes resultados
em termos de adequação ao trabalho individual e a gostos específicos de
vivência doméstica e, reservando-se, assim, naturalmente, os espaços domésticos
mais sociabilizantes para o convívio doméstico.
E tudo isto mediante pequenos,
mas muito judiciosos, incrementos às áreas e, muito especialmente, às dimensões
domésticas consideradas mínimas, excelentes previsões em termos das diversas
dimensões do conforto ambiental doméstico e, naturalmente, um excelente
projecto de Arquitectura, que estrutura e organiza a habitação de um modo
claramente e “passivamente” adaptável a essas diversas apropriações e atividades.
O projecto de
Arquitectura deste edifício multifamiliar é dos anos de 1960, com autoria dos arquitectos
Artur Pires Martins e Cândido Palma de Melo.
Junção e subdividão de compartimentos
A segunda perspectiva,
acima referida, as conversões funcionais e de mobiliário associadas a
eventuais junções e subdivisões de compartimentos, tem tem idênticas
influências na capacidade de apropriação e de identidade que a habitação deve
oferecer e liga-se:
·
Quer à evolução da família que aí resida (crescimento e
decrescimento);
·
Quer à mudança nas necessidades e nos gostos domésticos;
por exemplo, à medida que a família original envelhece e cresce haverá mais
necessidade de mais espaço de circulação e de desafogo funcional e,
eventualmente, um maior gosto numa especialização de zonas de estar.
·
E esta perspectiva de junção e subdividão de compartimentos
é servida:
·
quer por simples aspetos de pormenorização, extremamente fáceis de
prever, como é o caso da distribuição estratégica de tomadas de telecomunicações
ao longo da casa, proporcionando variadas utilizações e versáteis mudanças de
usos dos mesmos compartimentos;
·
quer por aspectos estruturantes na organização da habitação, mas que
podem proporcionar uma sua riquíssima versatilidade de uso, como é caso de uma
parte do espaço doméstico poder ser usado como espaço total ou relativamente
autónomo, desde que disponha, ou possa vir a dispor, sem obras significativas,
de acesso próprio e de instalações mínimas de cozinha e sanitárias.(2)
Adaptabilidade doméstica e adequação a modos de vida
A adaptabilidade da
habitação a diversos modos de vida, caracterizando diversos tipos de agregados
familiares e, até, diversas apropriações funcionais específicas, é, cada vez
mais, um aspecto fundamental a considerar na concepção dos espaços domésticos,
pois assim se podem servir melhor um leque crescente de modos de vida e de usos
da habitação, que decorre, tal como sintetizei num anterior livro editado pela
livraria do LNEC (“Do bairro e da vizinhança à habitação” – ITA 2):
- de uma diversidade de horários de trabalho;
- da ausência, frequente, dos habitantes no seu domicílio, durante os
dias úteis;
- de um nível gradualmente mais elevado de acesso à cultura e à
informação;
- da mobilidade dos agregados implicada por uma tendência, provavelmente crescente,
de mobilidade nos postos de trabalho;
- da recuperação do uso da casa, também, como sítio de trabalho(s);
- do crescente uso da casa como sítio privilegiado de exercício de
actividades de lazer e de “segundas actividades”, tendencialmente cada vez
mais numerosas, temporalmente cada vez mais prolongadas e frequentemente
bastantes exigentes em termos de condições específicas de concretização;
- e da tendência fortemente crescente de existência de modos de vida
e de tipos de agregados familiares socioculturalmente diferenciados, e aos
quais é essencial proporcionar respostas domésticas expressivamente adequadas,
seja diretamente, seja através de fáceis condições de conversão –
construtivamente simples e baratas e bem adequadas nos respetivos aspetos
de manutenção.
Naturalmente que todo
este tipo de previsões, quando associado a habitações destinadas a grupos
sociais com reduzidas e médias condições económicas não pode implicar uma
inflação de espaços específicos e uma exagerada previsão dimensional, sendo,
portanto, vital que a habitação incorpore excelentes condições de
adaptabilidade passiva e de convertibilidade; condições estas que devem
merecer uma especial atenção em termos de segurança estrutural do edifício
sempre que estejam associadas à ligação entre compartimentos, sendo muito
recomendável uma evidenciada marcação e informação dos elementos construtivos
que não podem ser intervencionados.
Notas:
(1) Amos
Rapoport, "Housing Ecology", p. 149.
(2)
Christopher Alexander; Sara Ishikawa; Murray Silverstein; et al, "A
Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", p. 637.
Uma primeira versão, menos
desenvolvida, deste artigo foi publicada no número 472 da Infohabitar, em 17 de
Fevereiro de 2014.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada,
caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha
de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões
expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições
individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto
da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos
artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos
artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é,
igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão
referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e
científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito
significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver
com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo
GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à
respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas
e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do
teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou
negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido
na edição.
Infohabitar, Ano XVI, n.º 732
Sobre a importância da diversidade na organização habitacional – Infohabitar # 732
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola
Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação
em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil
(LNEC), em Lisboa.
Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para
a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na
Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
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