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Infohabitar, Ano XVI, n.º 735
Viver ao nível térreo - II
Espaço urbano vitalizado pelas relações entre exterior e interior – Infohabitar # 735
Por António Baptista Coelho (texto e imagens)
Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar, estimados amigos,
Esperando que estejam todos de saúde,
continuamos um “retorno” a uma abordagem relativamente sistematizada dos espaços domésticos, feito tendo por base alguns artigos já aqui editados e que foram e serão, naturalmente, extensamente revistos, desenvolvidos e “recomentados”, para esta ocasião editorial.
Este relativo “retorno” – relativo, porque o tema dos mundos domésticos esteve, está e estará sempre presente na Infohabitar – justifica-se, entre outras razões, pelo evidente e novo protagonismo que esses nossos espaços de vida assumiram nas longas semanas do nosso confinamento; um relevo que importa sentir em profundidade e aproveitar em tudo aquilo que possa contribuir para uma adequada e bem ponderada revisão programática, quantitativa, qualitativa e objetivada dos nossos mundos domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos agradem aos nossos estimados leitores e lembrando-se, sempre, que serão muito bem-vindas eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e mesmo propostas de novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com ao meu cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações calorosas e desejos de muita força e de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 22 de junho de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar
Viver ao nível térreo - II
Espaço urbano vitalizado pelas relações entre exterior e interior – Infohabitar # 735
António Baptista Coelho
Ainda sobre a grande e insuspeitada importância da opção de se viver em afirma relação com o exterior
A opção de se “viver ao nível térreo” ou próximo dele, ou ainda em relação privilegiada com o exterior (privado, comum, público ou de uso público) é um passo importante, como já foi aqui referido, para se habitar privilegiando o exterior e, consequentemente, marcando-se bem a existência, sempre bem próxima, de um “interior” que poderá e deverá ser expressivamente acolhedor e identificador.
É, assim, interessante considerar que uma tal possibilidade de habitar de modos afirmadamente ligados ao “exterior”, ao “ar-livre”, “à rua” e, portanto, à natureza, e/ou à cidade e/ou mesmo à paisagem de proximidade, é uma possibilidade que, um pouco ao contrário do que poderia parecer, acaba por proporcionar, para além de toda essa potencial diversidade de usos e sentimentos ligados ao “exterior” (bastante apontados no artigo anterior) e, consequentemente, aos tais ricos espaços de relação exterior/interior/exterior, um verdadeiro sentido de interioridade e de verdadeira opção por essa interioridade.
E mais podemos, ainda, avançar quando consideramos que um tal verdadeiro sentido de interioridade, mais ou menos matizada em termos ambientais e de privacidade/convívio, será muito mais efetiva, porque verdadeiramente opcional e “desejada”, do que aquela interioridade quase “obrigatória” que sentimos e “sofremos”, quando estamos “alojados” em condições nas quais a única opção é entrarmos nos “nossos” edifícios e, em seguida, passarmos de imediato (pois não existem outras opções e mesmo estes espaços ditos comuns acabam por ser meros espaços mínimos de circulação) aos “nossos” espaços domésticos, que, muitas vezes, eles próprios são, também, tristemente unívocos (suscetíveis de interpretações únicas, quando não mesmo única) e “obrigatórios” nas suas formas de uso e de (muito reduzida ou mesmo ausente) capacidade e apropriação.
E realmente toda esta reflexão pode e deve corresponder a um verdadeiro “filão” em termos de reflexão projetual (sobre o “viver ao nível térreo” ou em grande relação com o exterior), numa perspetiva que deverá ser conjugada e que, por sua vez, ganhará importantes influências, designadamente dos seguintes aspetos:
· diversificação e adequação tipológica habitacional, numa opção cada vez mais afastada das velhas e “únicas” soluções ditas funcionalistas e que corresponda a uma verdadeira aproximação a diversos modos e desejos de habitar a casa, a vizinhança e a cidade e a diversos gostos de contacto diário com o exterior;
· consideração estratégica e igualmente diversificada, dos importantes aspetos de harmonização a necessidades específicas de acessibilidade e à sua natural mistura e conjugação em soluções urbanas;
· compatibilização com as “novas” ou renovadas preocupações de densificação urbana, pois não tenhamos quaisquer dúvidas que será, em boa parte, da natural organicidade de misturas de soluções de habitar diversificadas no seu relacionamento com o exterior que decorrerá boa parte da respetiva capacidade de combinação mútua e, consequentemente, de agregação e densificação;
· incorporação na arquitetura urbana assim relativamente reinventada de múltiplos aspetos de sustentabilidade ambiental e social urbanas, designadamente, através da multiplicidade de relacionamento com e de usos dos espaços exteriores, seja em aspetos ligados com a sua componente natural, seja na sua potencialidade social;
· opção evidenciada por um urbanismo renovado e mais humano, tendo-se em conta aspetos de relação mais direta, diversificada e múltipla com a escala e os usos humanos; e uma opção que, consequentemente, irá pedir sempre mais “humanidade” e mais relacionamentos nos outros níveis físicos da cidade e sua envolvente;
· compatibilização com soluções de arquitectura urbana potencialmente muito sensíveis a situações de baixa e muito baixa densidades, numa opção em que, finalmente, se dará a tais situações a sua importância real e urgente;
· e conjugação com uma oferta habitacional potencial e expressivamente caraterizada como claramente apropriável pelos seus habitantes (fisicamente e em termos de identidade); isto porque não se trata só de intervir diretamente na potencialmente enorme presença física de múltiplos pequenos jardins, pequenos pátios, caminhos ajardinados, balcões e varandas todos marcados por elementos naturais e de mobiliário exterior, mas trata-se, também, de suscitar uma arquitetura urbana global e intensamente marcada pelas contiguidades com espaços domésticos e também com os tais pequenos espaços de equipamento coletivo (ex., pequenos cafés e esplanadas), que acabem por também se caracterizarem por um forte sentido doméstico e apropriado/apropriável .
Espaço urbano vitalizado pelas habitações térreas
A existência de residências térreas, dispondo de espaços exteriores privativos, liga-se a uma oferta, directa, de condições de vida diária potencialmente muito semelhantes ao viver em edifícios unifamiliares e pode, até, ser conveniente para potenciar a continuidade da presença humana e a animação urbana, acima referidas, e por outro lado para as garantir, de modo mais generalizado, "a toda a volta dos edifícios" e, até, de um modo mais alargado, a toda a volta de zonas exteriores privadas dos fogos do rés-do-chão, enquanto também se potencia a qualificação basicamente residencial da zona em causa (caracterizando-a como uma verdadeira "área residencial").
E nunca é excessivo valorizar este sentido de “residencialidade”, que acaba por ser a “urbanidade” mais ligada à proximidade/contiguidade da habitação.
Fig. 01: o exterior considerado e tratado como efetivo espaço de habitar.
Adequação da habitação a modos de vida e gostos habitacionais
Por outro lado, sabendo-se , ainda, que os fogos térreos podem ter problemas de segurança (relativamente a intrusões) e de reduzido desafogo de vistas (de modo a proteger-se a intimidade doméstica), para não falar já das suas potencialmente mais fracas/sensíveis condições de conforto ambiental (mais sombra, mais ruído), também parece justo que lhes sejam atribuídas, de certa forma em compensação, algumas (muitas) vantagens quanto à autonomia no contacto com o solo e respetiva diversidade de usos correlacionados.
Com uma tal opção projetual e para além desta compensação com múltiplos usos “térreos” a habitações próximas do nível térreo, conseguem-se, ainda:
· substanciais poupanças na manutenção pública do exterior residencial, que acaba por ser garantido, em boa parte, pelos seus próprios habitantes;
· enquanto se proporciona a um significativo grupo social, o das famílias com filhos pequenos e de tantas outras pessoas com hábitos e gostos de relacionamento com o exterior, um meio residencial que é o ideal para o crescimento saudável destas crianças (jogos no exterior em segurança, contacto directo com a terra, etc.) e para a saudável e gratificante continuidade de usos e desejos de habitar e de usar o exterior; usos e desejos estes que poderão e deverão marcar uma renovada oferta de tipologias habitacionais adequadas, seja a uma ampla diversidade de modos de vida (ex., mais ligados a prática rurais), seja a uma ampla variedade de gostos/desejos de habitar (ex., ligação mais forte ao exterior e ao solo, contato com animais domésticos, etc.).
Cuidados com as habitações térreas
Convém, no entanto, considerar alguns cuidados básicos no desenvolvimento de fogos e equipamentos térreos, tal como, em seguida, se refere (de modo não exaustivo):
· Cotas de soleira e de peitoril a alturas adequadas, relativamente aos espaços exteriores públicos, comuns e privados contíguos.
· Vistas a partir dos espaços pedonais envolventes do edifício, por um lado não devassando os espaços térreos privados e por outro aproveitando, pelo menos em parte, visual e ambientalmente, os "verdes" privados.
· Relações estimulantes com os espaços exteriores privados e bem aproveitadas em todas as suas potencialidades, com relevo para a forte caracterização da imagem urbana do local (área ou conjunto residencial).
· Adequadas (máximas) condições de segurança, tanto por recurso a muros, gradeamentos e vedações previamente projectados e uniformizados, "cobrindo"/protegendo todos os vãos exteriores térreos e quintais privados, como pelo desenvolvimento cuidadoso (não ferindo privacidades domésticas) de uma estratégia generalizada de visibilidades de segurança e de contiguidades de observações naturais e contínuas (ex., contiguidade ou grande proximidade entre as traseiras de certos edifícios e as entradas de outros).
· Total controlo do desenvolvimento de anexos nos quintais privados, segundo projectos-tipo e apenas para usos, previamente, bem definidos.
· Articulação de todos estes aspetos numa adequada solução de gestão local dos espaços públicos, de uso público, comuns visíveis e privados visíveis; solução esta também direcionada para a manutenção de adequadas condições ordenamento e qualidade visual e de segurança pública nestes espaços.
Semelhança entre habitações térreas e moradias
John Noble e Barbara Adams consideram que algumas características das moradias podem ser conseguidas nos pisos térreos de edifícios multifamiliares, tais como acessibilidade a diversos tipos de espaços exteriores, terraços e jardins privados económicos, zonas de serviço exteriores e vistas agradáveis de espaços verdes ou de zonas animadas; no entanto, há que cuidar, atentamente, das relações visuais e acústicas que determinam a privacidade doméstica (essencialmente interior, mas também em parte do exterior privado). (1)
É ainda de considerar a extensão parcial deste tipo de solução às habitações em 1º andar, através de terraços e escadas exteriores funcionais e, por vezes, aproveitando a topografia do terreno.
E é, ainda, interessante considerar que tais qualidades evidenciadas de bom relacionamento com o exterior podem também ser reforçadas pelo desenvolvimento, mais em altura, de soluções habitacionais marcadas por adequados terraços, balcões, varandas e mesmo vãos de janela expressivamente ligados ao exterior.
Uma previsão de pátios ou pequenos quintais privados é um aspecto fundamental neste nível físico da Vizinhança Próxima, que parece não ter sido, ainda, convenientemente considerado na arquitectura urbana residencial mais recente.
Afinal os espaços exteriores privativos e térreos constituem zonas de transição interior doméstico/exterior público ou semi-público com enorme capacidade de apropriação, são elementos de forte compensação face a uma situação habitacional térrea ou pouco elevada (menos privatizada, segura e visualmente desafogada), asseguram boa capacidade de adequação a determinados modos de vida, desejos habitacionais e composições familiares (famílias com crianças) e podem também assegurar um verde privado com forte fruição pública mas sem gastos públicos de manutenção (ao longo de caminhos e passeios pedonais) contíguas, mas assegurando forte demarcação e relativa ou total privacidade.
E não tenhamos dúvidas de que mesmo pequenos pátios e/ou quintais privados, ou mesmo varandas fundas/profunda, desde que bem projetados e equipados, proporcionam às suas habitações uma extraordinária dimensão natural e de relacionamento com o exterior, verdadeiramente enriquecedora em si própria (pelos usos e ambientes proporcionados) e de enriquecimento diversificado dos respetivos espaços interiores contíguos.
Variedade de espaços exteriores privativos
De certo modo a integração de quintais/pátios e de balcões/varandas com expressiva profundidade tem grande versatilidade de aplicação, podendo variar, por exemplo, entre um grande pátio/terraço comum envolvendo uma torre habitacional e um interior de quarteirão associando zonas de recreio semi-públicas centralizadas e uma margem quase contínua de quintais/pátios contíguos a fogos térreos, ligados a fogos em 1º andar (com acesso por escadas), dispondo de balcões ajardinados e profundos e, eventualmente, contíguos a salas de condomínio.
Relativamente a todas estas matérias lembra-se um interessante livro de Dieter Prinz, com uma já “antiga” edição portuguesa (1994) designado Urbanismo II ( e julgo que “Configuração Urbana”, pelos menos assim é na edição no Brasil) e em que se abordam estes assuntos de forma muito estimulante.
Outras vantagens dos exteriores privativos e bem relacionados com o nível térreo
Ainda outras importantes vantagens do desenvolvimento de quintais/pátios e de varandas profundas ao nível térreo e na sua proximidade, referem-se à sua muito provável influência decisiva na obtenção de condições de intensa utilização e apropriação de grande parte do exterior de proximidade e os consequentes ganhos em boas condições de vigilância natural, bastante contínua e bem disseminada, de todo o território da Vizinhança Próxima.
Não é excessivo reafirmar que estas condições só terão viabilidade se o sistema de quintais/pátios e de janelas e varandas baixas estiver perfeitamente conjugado com o sistema de acessibilidade local e de respetivas visibilidades mútuas (ex., percursos de uso frequente ao logo de bandas de quintais), caso contrário, tratando-se de uma má solução de projeto de Arquitetura, o resultado final até poderá, eventualmente, agravar situações de insegurança e de incomodidade na vivência local.
Notas:
(1) John Noble; Barbara Adams, "Housing. Home in its Setting", p. 525.
Uma primeira versão, muito menos desenvolvida, deste artigo foi publicada no número 476 da Infohabitar, em 17 de março de 2014.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.
Infohabitar, Ano XVI, n.º 735
Viver ao nível térreo - II
Espaço urbano vitalizado pelas relações entre exterior e interior – Infohabitar # 735
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa.
Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
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