Infohabitar, Ano X, n.º 489
Artigo LIII da Série habitar e viver melhor
Bons espaços e ambientes domésticos II
António Baptista Coelho
Na semana passada iniciámos uma reflexão sobre
os aspetos que caraterizam "bons espaços e ambientes domésticos",
abordando as matérias da relação com a natureza e da previsão de boas condições
de conforto ambiental, e de como uma habitação pode ser verdadeiramente
agradável e estimulante, baseando-se em como as crianças a sentem e vivem.
Reflectimos, assim, um pouco, sobre a
importância do conforto ambiental e da força imaginativa dos nossos mundos
domésticos, numa dupla perspectiva que nos garantiria uma habitação agradável e
imaginativa. Passemos, agora, a outros aspectos, mas ainda não aos que podem
ser considerados como específica e "exclusivamente" funcionais.
Fig. 01: é sempre essencial considerar a importância que tem a relação com o "exterior habitacional", ou de vizinhança próxima, ou exterior mais diretamente "habitável"; nunca é excessivo chamar a atenção para este condicionalismo, que pode constituir um dos aspetos "chave" na qualificação positiva de uma da intervenção de construção nova ou de reabilitação urbana e habitacional.
Relação com os espaços exteriores envolventes
Uma outra reflexão sobre o que pode ajudar a
caracterizar um bom espaço doméstico é a sua relação com os espaços exteriores
envolventes. De certa forma trata-se aqui de um aspecto duplo, pois tem a ver,
quer com o aproveitamento arquitectónico doméstico das relações entre espaços
interiores e exteriores, e a este tema voltaremos pois a sua importância é tal
que pode fundamentar boa parte da qualidade de uma dada solução residencial
(ex., espaços de transição, pátios, varandas, janelas estratégicas, etc., etc.),
quer com o aspecto, associado, de aproveitamento doméstico da variedade e do
interesse visual e funcional das vistas sobre o exterior (ex., poder acompanhar
com a vista uma criança a brincar na rua, assistir ao movimento urbano junto a
uma paragem de autocarro, ver o automóvel estacionado, desfrutar, ao máximo, as
vistas urbanas e paisagísticas disponíveis no local etc.).
Fig. 02: sobre as questões associadas à espaciosidade doméstica muito se escreveu, mas talvez falte ainda pensar bastante, designadamente, sobre os aspetos de verdadeira adequação dos diversos sub-espaços da habitação às suas diversas sub-funções e sobre como isto tudo tem a ver com um projeto de arquitetura verdadeiramente qualificado e sensível aos modos como habitualmente se habitam, ocupam e apropriam os espaços domésticos; e talvez em tudo isto a questão mais "objetiva" das áreas perca, eventualmente, um pouco da sua importância, em favor das questões ligadas aos dimensionamentos, à flexibilidade de uso das diversas zonas e à adaptabilidade geral da habitação.
Espaciosidade doméstica e desafogo espacial
Depois do conforto ambiental, da imaginação na
organização doméstica e da relação entre interior e exterior passemos a um
primeiro aspecto mais objectivo: a espaciosidade, aqui considerada na sua
perspectiva de desafogo espacial, um aspecto que, como sabemos, está sempre
presente na apreciação que toda a gente faz de uma habitação: a casa é
espaçosa, a sala é espaçosa, etc.
A esta matéria voltaremos nesta série
editorial, mais à frente, quando pensarmos mais um pouco sobre como fazer
quartos, salas e outros espaços domésticos mais agradáveis, para já importa ter
a noção de que:
·
há limiares de espaciosidade que são
fundamentais na própria apreciação que se faz dessa espaciosidade – quando há
compartimentos com áreas iguais ou superiores a cerca de 25m² a respectiva
habitação é considerada espaçosa; (7)
·
há dimensões e configurações interiores cuja
incoerência funcional e de imagem anulam até as suas eventuais boas condições
de espaciosidade (ex., salas alongadas e estreitas, quartos pequenos e altos,
etc.);
·
que a existência de desníveis (de pavimento e
diferenças de alturas nos tectos dos compartimentos) contribui para uma leitura
atraente do espaço interior, produzindo uma impressão de espaço
alargado/dilatado e apoiando a sua diversificação funcional e ambiental (8)
(embora possa ser, por vezes, pouco funcional);
·
e que, pelo contrário, a distribuição de uma
habitação em vários níveis distintos (ex., duplex) pode reduzir o sentimento de
desafogo espacial.
Fig. 03: as "velhas" questões da(s) funcionalidade(s) doméstica pode ter (i) uma consideração básica associada a entender-se serem ainda raras as situações em que há uma previsão verdadeiramente eficaz de tais funcionalidades e não numa perspetiva de uma funcionalidade "parada no tempo" e muitas vezes ligada aos estudos funcionais rígidos e incompletos do passado século, e (ii) deve ter uma "nova" consideração, flexível e "aberta", devidamente harmonizada com novos modos de vida e de relação entre casa e trabalho; isto para lá dos aspetos associados à exigência de um excelente projeto de arquitetura como único elemento que poderá verdadeiramente validar uma organização doméstica muito marcada pela funcionalidade.
Funcionalidades domésticas
E chegamos, finalmente, à área das
funcionalidades domésticas, mas, mesmo aqui não iremos fazer uma abordagem corrente
dos diversos espaços pois concorda-se com Julienne Loic, quando esta afirma que
"a organização da habitação pouco se modificou, enquanto a intrusão do
telefone, do computador pessoal (ou doméstico) e, essencialmente, da televisão
provocam a justaposição do espaço denso das comunicações directas no espaço de
estar familiar.
Esta situação, não sendo traduzida na
estrutura e na composição do fogo, pode contribuir para o enfraquecimento da
coesão do grupo familiar". (9)
Segundo o referido autor, o novo factor na
harmonização entre casa e modo de vida é o tempo-livre, que pode ser gozado em
casa, actualmente, de variadíssimos modos; e assim lá ficamos nós com a ideia
que, talvez, para servir a criação de espaços domésticos mais indutores de
felicidade devamos organizar habitações estruturadas no sentido do lazer
doméstico e, assim, podemos ultrapassar boa parte da estrutura doméstica
funcional que se pode considerar “clássica”e que tem sido tão escalpelizada em
muitos estudos.
E se juntarmos a esta perspectiva de uma
habitação desenvolvida como centro de lazer doméstico, a ideia, igualmente
coerente e exigente de uma habitação sede de vários tipos de trabalho não
doméstico, teremos as tradicionais funções da habitação a retirarem-se para uma
expressão minimizada, isto desde que estejamos numa lógica espacial
equilibrada, em que devamos harmonizar e distribuir com parcimónia uma
totalidade de metros quadrados.
Novas funcionalidades habitacionais
Naturalmente que novas funções residentes no
espaço doméstico obrigarão a um acréscimo de compartimentos, ou, em alguns
casos, a um acréscimo de zonas e recantos específicos no leque corrente dos
espaços domésticos, gerando-se soluções habitacionais que se poderão
caracterizar, objectivamente, por tipologias intermédias (ex., sala que se
prolonga por um espaçoso recanto, relativamente autónomo, com cerca de 6m²);
estaríamos, assim, em presença, por exemplo, de um T3+.
E sublinha-se que esta possibilidade teria
grande interesse na diversificação da oferta de soluções domésticas, pois este
tipo de incremento poderia recair na sala, na cozinha, em um dos quartos, numa
varanda que assim se transformaria em terraço e, até, numa casa de banho que
assim seria promovida ao estatuto de uma verdadeira “sala de banhos”; e nada
disto é criticável pois poderemos assim aproximarmo-nos muito mais fielmente do
modo de querer habitar de muitas pessoas.
Funcionalidade doméstica básica e facilidade de manutenção
E nesta pequena viagem pelo modo de fazer
melhores habitações, mais diversificadas e adequadas a mais pessoas, deixámos
para o fim algumas referências à funcionalidade e à segurança nos espaços
domésticos; e deixámos estas notas para o final, porque consideramos que há já
muitos estudos sobre estas matérias e porque, existindo tais estudos, e sendo
os seus aspectos fácil e, por vezes, obrigatoriamente implementados não faria
sentido estar aqui a fazer qualquer síntese de tais assuntos.
Segundo Claude Lamure, a facilidade de
manutenção deveria estruturar, tanto a disposição relativa entre paredes e
equipamentos, deixando livres espaços mínimos para que a limpeza se faça com
facilidade, como a escolha dos tipos específicos de pavimentos e revestimentos,
de acordo com critérios de facilidade de limpeza e de não evidenciação da
sujidade (ex., uma má solução é a escolha de um revestimento de piso com
acabamento "branco brilhante" para "zonas húmidas" e/ou
muito usadas, porque têm sempre uma aparência suja e, mais tarde, “riscada”
devido à frequência das limpezas e tipo de acabamento superficial). (10)
Já escrevi este último parágrafo há alguns
anos (“Do bairro e da vizinhança à habitação”, LNEC, ITA 2) e ele continua a
encerrar todo um conjunto de ideias fundamentais para podermos ter habitações
que verdadeiramente nos satisfazem, porque são simples de usar. Mas devo fazer
aqui uma referência para a necessidade imperiosa de, nos dias de hoje, conceber
habitações em que as funções domésticas “obrigatórias” (cozinhar, tratar a
roupa, limpar e arrumar a casa) possam ser realizadas com um mínimo de esforço
e com uma eficácia máxima durante uma vida útil da habitação que seja muito
extensa; isto é, hoje em dia, fundamental e não pode haver quaisquer transigências
nesta matéria, pois não há desculpas para um técnico não conhecer todo o
completo compêndio de soluções e de alternativas de soluções que descrevem,
pormenorizadamente, como cumprir este pacote de exigências funcionais; quando
muito, entre o corpo regulamentar e recomendativo e o mundo de informação
editado em papel e disponível na www, a relativa dificuldade estará na escolha
da melhor informação.
Acessibilidade doméstica
Outras duas matérias obrigarão a uma atitude
técnica em boa parte idêntica à que acabou de ser referida para os aspectos
funcionais, mas são merecedoras, já de seguida, de uma atenção específica:
trata-se dos aspectos de acessibilidade e uso doméstico por pessoas
condicionadas na sua mobilidade e dos aspectos de segurança.
No que se refere à previsão das condições
domésticas específicas para pessoas condicionadas na sua mobilidade elas estão
regulamentadas, mas poderão ser desenvolvidas de uma forma mais elaborada:
Seja em todos os aspectos que facilitem as
condições de melhor funcionalidade doméstica, para todos nós e especificamente
para idosos com eventuais deficiências na respectiva autonomia, tal como foram
acima apontadas (super-eficácia no conjunto de funções “obrigatórias”) …
Seja em habitações e intervenções habitacionais
concebidas objectivamente para pessoas com problemas de mobilidade, ou outros
problemas (ex., mentais), e onde será possível levar a concepção a um apuro de
pormenor capaz de poder fazer um pouco mais felizes as pessoas que têm a
infelicidade de serem portadoras dessas deficiências; dimensões, tipos de
mobiliário e de equipamentos, texturas, capacidade de limpeza rápida, cores,
vistas interiores e exteriores estratégicas, nível de “inteligência” e de
automatismo na gestão do interior doméstico e nas tecnologias de comunicação,
são todas áreas onde é possível intervir para fazer melhores habitações para
muitas pessoas.
Segurança doméstica
Finalmente, no que se refere aos aspectos de
segurança doméstica e utilizando, em boa parte, um conjunto de notas elaboradas
para um trabalho do LNEC, há que contemplar as seguintes áreas de trabalho:
·
Segurança contra riscos de incêndio no
interior da habitação; por previsão da sua evacuação (segundo a regulamentação
existente).
·
Segurança relativamente aos riscos de queda
através dos vãos exteriores e em espaços exteriores privados e elevados;
utilizando bases de referência existentes na documentação e no corpo
regulamentar de diversos países europeus.
·
Segurança contra intrusões, sem que se
converta a imagem da habitação na de uma fortaleza, fechada e gradeada; o que
seria uma situação muito pouco congruente com a índole acolhedora e firmemente
selectiva, mas aberta, que deve caracterizar o aspecto exterior de uma
habitação. É de considerar, ainda, que os pisos térreos, sendo aqueles que têm
de ser mais protegidos, são os mais directamente observados por grande número
de habitantes; e logo, uma sua imagem gradeada ou entaipada afectará muita
gente.
·
Segurança doméstica por boa adequação
funcional aos vários tipos de utentes. É importante considerar que os cuidados
de espaciosidade suplementar, de clarificação e facilitação funcional e de
segurança suplementar com as crianças têm também utilidade para os adultos com
deficiências físicas e psicológicas e para os idosos; que também têm
dificuldade em alcançar e levantar objectos, tendência para escorregar em
escadas, etc. Por outro lado os idosos também exigem, em princípio, espaço
suplementar e zonas amplas e desimpedidas, de certo modo para substituir as
faculdades de reacção mais rápidas e o vigor que foram perdendo. E nesta
matérias é importante ter em conta que tais cuidados devem ir até um elevado
nível de pormenor (ex., a simples mudança de cor de um pavimento pode
constituir uma barreira traiçoeira para uma pessoa com deficiência na visão,
que pode julgar que se trata de uma diferença de nível).
Mas, repete-se, que estes tipos de matérias
estão devidamente apresentados em estudos e em regulamentos específicos, cuja
consulta e cumprimento são, naturalmente, essenciais para quem projecta
habitação.
Aqui, a ideia é apenas registar a sua
existência, pois aqui estamos concentrados nas muitas matérias que se têm
deixado, essencialmente, ao livre arbítrio e á maior ou menor capacidade de
projectar Arquitectura de quem tem a responsabilidade de conceber uma dada
habitação.
E afinal não se trata apenas de tratar um
pouco daquilo que poucos têm tratado, mas também, tal como aponta Gilles
Barbey, "de prestar mais atenção aos aspectos menos evidentes e mais
afectivos da habitação, porque eles podem incluir os significados mais
profundos e as influências mais fortes sobre o nosso comportamento". (11)
Algumas notas pré-conclusivas
Pensou-se, assim, um pouco, sobre a
importância do conforto ambiental e da força imaginativa dos nossos mundos
domésticos, numa dupla perspectiva que nos poderá garantir uma habitação
agradável e imaginativa. Na próxima semana continuaremos a desenvolver os
aspetos que caraterizam "bons espaços e ambientes domésticos", não nos
limitando aos que se podem caraterizar como específica e
"exclusivamente" funcionais, que serão, sempre, afinal, aqueles mais
fáceis de considerar - pois podemos já imaginar ferramentas informáticas de
apoio ao projeto de arquitetura em que estas matérias estritamente
funcionais/dimensionais, eventualmente associadas a matérias regulamentares
ligadas, por exemplo, a aspetos de acessibilidade e segurança, possam ser já
contempladas de forma relativamente "automatizada".
O que será sempre difícil e estimulante é
associar tais aspetos de "funcionalidade" e "espaciosidade"
aos outros múltiplos aspetos de conceção arquitectónica, visando-se a
satisfação ampla de quem habita e usa os espaços projetados.
Notas:
(7)
Jacqueline Palmade; Manuel Perianez, "Des HLM à la Conquete de
l'Espace", pp. 46 e 47.
(8)
Claire e Michel Duplay, "Methode Ilustrée de Création
Architecturale", pp. 141 e 142.
(9) Julienne
Loic, "Du Logement Consolidé à d'autres Habitats", p. 43.
(10) Claude
Lamure, "Adaptation du Logement à la Vie Familiale", pp. 194 e 195.
(11) Gilles
F. Barbey, "Man-Environment Interactions, Evaluations and
Applications-Part3, Anthropological Analysis of the Home Concept: Some
Considerations Based on the Intrepretations of
Childrens' Drawings", p. 149.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o
referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta
a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários
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conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição
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editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à
verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da
revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de
eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.
INFOHABITAR Ano X, nº 489
Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
Universidade da Beira Interior (UBI), Secção Autónoma de
Arquitetura (SAA), Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura (DECA)
GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da
Qualidade Habitacional
Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), NUT
BONS ESPAÇOS E AMBIENTES DOMÉSTICOS II
Artigo LIII da Série habitar e viver melhor
Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais
Norte.
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