domingo, junho 22, 2014

488 - Bons espaços e ambientes domésticos I - Infohabitar 488

Infohabitar, Ano X, n.º 488

Artigo LII da Série Habitar e Viver Melhor 


Bons espaços e ambientes domésticos I

António Baptista Coelho

Em primeiro lugar: respeitar a relação com a natureza

Para oferecer bons espaços e ambientes domésticos há, em primeiro lugar, que respeitar a relação com a natureza e, designadamente, com o movimento aparente do Sol.
Escreveu Ken Kern que: "as relações com as horas do dia, as estações e a orientação solar formam uma parte inconsciente da experiência do homem, do mesmo modo que a necessidade de isolamento e de sociabilidade.... Uma casa de vidro, por exemplo, com a sua acessibilidade e transparência, conduziria à satisfação do aspecto social e extrovertido da natureza humana e da sua ânsia de expansão. A natureza introvertida do homem, por outro lado, pode procurar os confins das suas origens cavernículas... em espaços obscuros e misteriosos. De qualquer modo, o encerramento de um espaço não deve entrar em conflito com a expansividade de outro. Ambos são igualmente necessários e essenciais....O espaço não tem de ser necessariamente restringido pelos seis planos de um compartimento desenhado e construído de maneira convencional. O espaço pode ser ilimitado ou pode estar apenas parcialmente confinado". (1)
A importância da insolação na satisfação e mesmo na alegria de se habitar uma dada casa é algo de fundamental e nesta matéria Rodríguez Villasante refere (2) que num extenso conjunto de empreendimentos de habitação social à volta de Madrid, não se detectaram manifestações de insatisfação para com os espaços/fogo, nem transferência para eles da culpa por condições de existência menos boas; como única excepção destacam-se queixas de habitantes que reclamavam por falta de luz e sol nas suas habitações, que estavam orientadas a Norte. (3)

Fig. 01: um espaço habitacional (i) que tem de ser concebido em aliança com o espaço naturalizado envolvente e devidamente intervencionado em termos paisagísticos e (ii) tendo em conta os diversos aspetos de conforto ambiental que esse espaço envolvente proporciona diretamente e nas habitações contíguas e próximas.


Importância determinante do conforto ambiental

A ideia que se quer aqui sublinhar é a importância determinante do conforto ambiental, com destaques específicos para a insolação, a luz natural, a ventilação (4), o isolamento de ruídos e o isolamento térmico, para uma verdadeira satisfação com o espaço doméstico. De certa maneira podemos dizer que tudo o resto se constrói sobre esta base de adequado conforto ambiental de que se conhecem já, bem, os respectivos aspectos técnicos.
São os seguintes os aspectos fundamentais para um adequado conforto ambiental doméstico:


Máxima insolação e iluminação natural abundante e geral.

Chama-se a atenção para a influência que têm estas condições no bem-estar físico e psicológico e na alegria de viver, e basta lembrar os dias cinzentos que a muitos deprimem para imaginar a influência que tem uma casa em que mal se veja o Sol e onde se tenha de estar, quase sempre, de luz acesa.
Naturalmente que a luz e a radiação solar não poderão ser em excesso e para isso importa trabalhar, seja em aspetos básicos de orientação e dimensionamento dos vãos exteriores, seja na sua adequada configuração e eventual proteção (ex., palas de sombreamento).


Diversas zonas e compartimentos bem orientados.

Esta orientação deve ser desenvolvida relativamente ao movimento aparente do Sol, respeitando, sempre que possível, a velha e boa estratégia do acordar com o Sol nascente, das cozinhas mais frescas e protegidas e da protecção do Sol poente; e há muito escrito sobre a importância que tem poder-se viver um dia-a-dia marcado pelos ritmos naturais.


Ventilação cruzada eficiente e "positiva".

Esta ventilação deve ser assegurada, nomeadamente, pela localização da cozinha e instalações sanitárias "exteriores" a sotavento (proporcionando que os gases e cheiros nocivos ou desagradáveis sejam estratégica e rapidamente evacuados pelos vãos exteriores, não invadindo a casa); e nesta ventilação é fundamental que ela seja estrategicamente considerada “varrendo” o máximo do volume interno da habitação; uma condição que, por exemplo, no Verão é fundamental para um bem-estar que muito ultrapassa os aspectos apenas físicos.
E naturalmente que esta estratégia de ventilação terá de ser devidamente suportada por vãos exteriores e interiores bem configurados e equipados (ex., "bandeiras" específicas de ventilação, dispositivos de ventilação integrados nos vãos, etc.).


Ausência de continuidades e contiguidades perturbadoras em termos acústicos

Nesta matéria Dreyfuss e Tribel consideram que o isolamento razoável entre duas partes da mesma habitação só é possível mediante a separação por duas portas, ou por uma parede suficientemente espessa e pesada, por exemplo, entre a sala e um quarto contíguo e que certas contiguidades não devem ser permitidas (5); e há que sublinhar que a ausência de ruído é uma condição básica da satisfação residencial, provada em muitos estudos.
Mas a estratégia de proteção acústica tem de ser muito ampla, associada seja: (i) aos ruídos produzidos no interior da habitação; (ii) aos ruídos produzidos em habitações vizinhas e em espaços e equipamentos comuns do edifício; (iii) e aos ruídos exteriores mais diversos. 


Conforto higro-térmico

O conforto higro-térmico tem relações diretas e indiretas com quase todos os aspetos que acabaram de ser apontados e depende de matérias específicas construtivas e de pormenor, com natural destaque para os aspetos de isolamento; sendo importante referir que este conforto tem quadros específicos e bem distintos no inverno e no verão, que muitas vezes não são globalmente considerados, e constitui matéria crítica no bem-estar e na saúde dos habitantes, mas com especial incidência naqueles mais sensíveis - crianças, idosos e doentes.


Nota breve sobre a grande importância específica e da integração dos diversos aspetos do conforto ambiental doméstico

Muito brevemente aqui se registam dois aspetos:
O primeiro refere-se à vital importância específica que têm os diversos aspetos do conforto ambiental doméstico, que foram aqui apenas muito sinteticamente apontados, com o objetivo de se disponibilizar uma reflexão de síntese e relacionada com as outras matérias em seguida abordadas.
O segundo tem a ver com a importância destes aspetos de conforto ambiental doméstico serem considerados de forma integrada, nas suas diversas matérias (insolação, higro-térmica, iluminação natural, ventilação, acústica), seja no que se refere ao interior doméstico, seja no que tem a ver com a relação entre este interior e o exterior envolvente, e ainda com a própria vivência estimulante deste exterior; esta matéria parece óbvia, mas não o é, infelizmente, e o projeto de arquitetura tem tudo a ver com tal integração.


Fig. 02: um espaço habitacional (i) que tem de ser concebido em aliança com os diversos aspetos do conforto ambiental e que (ii) é (tem de ser) muito mais do que um espaço de estritas funcionalidades e de "frios" dimensionamentos físicos.
  

Uma habitação verdadeiramente agradável e estimulante - a partir de como as crianças a sentem e vivem (segundo Gilles Barbey)

Vamos, então, em frente neste pequeno mundo doméstico e pensemos, um pouco, globalmente, sobre o que poderá ser o caminho de uma verdadeira satisfação, que ultrapasse os referidos aspectos ambientais. E nesta perspectiva podemos recorrer e generalizar, algumas conclusões de um estudo de Gilles Barbey sobre como as crianças imaginam e lêem as casas: (6)


Uso dinâmico do espaço

Barbey salienta o que refere ser um uso dinâmico do espaço, expresso em dimensões de habitações, que embora muito grandes não são monumentais: os quartos individuais têm aspecto agradável e estão ligados e atravessados por túneis e corredores, sugerindo itinerários e direcções, capazes de proporcionarem condições exploratórias e aventurosas nas habitações; e a casa é considerada como um labirinto reconfortante, embora não perdendo alguns aspectos que produzem receios.

Desenvolve-se, assim, uma integração ponderada entre espaços de circulação e outros compartimentos e favorece-se, assim, uma estruturação que joga na surpresa e nas alternativas de ligações entre espaços, assim como na forte caracterização de alguns desses espaços.


Julga-se que esta forma de desenvolver uma habitação é um excelente caminho de positiva subjugação dos aspectos funcionais a valores de caracterização doméstica fundamentais e que têm também a ver com um certo sentido lúdico, estimulante do próprio prazer de usar uma casa que seja um cenário de vida estimulante e curioso, mesmo depois de muitos anos de vivência. Uma condição que, tal como tem sido apontado, também há que favorecer ao nível do micro-urbanismo de vizinhança e que, naturalmente, deverá transparecer, de forma atraente nas relações entre esses mundos mais domésticos  e estes mundos mais públicos, mas ainda muito íntimos.


Habitações caracterizadas por uma ambivalência básica

Gilles Barbey aponta, também, que as crianças imaginam casas caracterizadas por uma ambivalência básica, como elemento vertical que se ergue do solo, ou corpo concentrado, que é lugar de lançamento da pessoa na sociedade e concha de abrigo, independência e protecção. Portanto, uma casa que é simultaneamente concha protectora e elemento de relacionamento urbano. E cá temos, novamente, matéria fundamental para uma reflexão prática que sublinha o interesse de uma conjugação maximizada entre um sentido de integração de cada casa na continuidade urbana protectora e sinais sóbrios, mas claros, de identidade e de apropriação de cada sítio que se habita em casa, no café, no jardim de vizinhança, etc.


Habitações que suscitam sentimentos de permanência e relações de afetividade

E, finalmente, o referido Gilles Barbey evidencia, na imaginação doméstica infantil, as ideias de permanência e de afectividade relacionadas com a de eficácia, porque as casas vernáculas proporcionam um sentimento agradável e seguro de permanência, relacionado tanto com os valores socioculturais, como com as características locais, topográficas, geológicas e climáticas; e aqui os desenhos referem-se a imagens tradicionais confirmando que as crianças procuram, naturalmente, a permanência e a duração encontradas na natureza e nas casas vernáculas. E aqui pergunta-se, não será que todos nós não nos sentimos melhor em habitações e espaços residenciais marcados por tais aspectos de agradabilidade e de permanência?

Algumas notas pré-conclusivas
Pensou-se, assim, um pouco, sobre a importância do conforto ambiental e da força imaginativa dos nossos mundos domésticos, numa dupla perspectiva que nos poderá garantir uma habitação agradável e imaginativa. Na próxima semana continuaremos a desenvolver os aspetos que caraterizam "bons espaços e ambientes domésticos", não nos limitando aos que se podem caraterizar como "simples", específica e quase "exclusivamente" funcionais.

Notas:
(1) Ken Kern, "La Casa Autoconstruida", p. 113.
(2) Tomáz Rodríguez Villasante, et al, "Retrato de Chabolista con Piso", p. 135.
(3) Em Portugal recomenda-se que os fogos tenham dupla exposição, sendo uma das fachadas orientada entre E-SE e SW (quartos orientados entre E-SE e S-SE, sala entre S-SE e SW); aceitam-se fogos com exposição simples, desde que a fachada não esteja orientada entre NE e SW (Ministério do Equipamento Social, "Recomendações Técnicas para Habitação Social", Artº 4.2.1.5); no entanto continuam a acontecer situações de não cumprimento desta condição.
(4) "Deverá ficar assegurada a ventilação transversal do conjunto de cada habitação, em regra por meio de janelas dispostas em duas fachadas opostas"; assim se regista no Artº 72, "Regulamento Geral das Edificações Urbanas", e no entanto continuamos a visitar casos de mono-orientação.
(5)  Dreyfuss e Tribel consideram que certas contiguidades não devem ser permitidas: canalizações de água ao longo de paredes de quartos e salas; equipamentos hidráulicos encostados a paredes de quartos; cozinhas sobrepostas a quartos; quartos contíguos a salas de fogos vizinhos e a escadas e galerias comuns. (D. Dreyfuss; J. Tribel, "La Cellule-Logement", p. 25).
(6) Gilles F. Barbey, "Man-Environment Interactions, Evaluations and Applications-Part3, Anthropological Analysis of the Home Concept: Some Considerations Based on the Intrepretations of  Childrens' Drawings", pp. 146 a 149.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


INFOHABITAR Ano X, nº 488
BONS ESPAÇOS E AMBIENTES DOMÉSTICOS I
Artigo LII da Série habitar e viver melhor
Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt

Universidade da Beira Interior (UBI), Secção Autónoma de Arquitetura (SAA), Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura (DECA) 

GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional

Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT)

Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

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