Infohabitar, Ano X, n.º 490
ARQUITECTURA COM TERRA
Experiências do fazer - I
por
ARESTA, Marco; GIULIA, Scialpi
Na presente edição da Infohabitar apresentamos a primeira parte de um artigo de Marco Aresta e Scialpi Giulia, que aborda uma interessante experiência de "Arquitectura com terra: Experiências do fazer", sob uma perspetiva prática, mas também participativa.
Salienta-se que um dos
autores do artigo, o colega Marco Aresta, editou há muito pouco tempo, um livro
sobre estas temáticas, intitulado "Arquitectura Biológica - La vivienda
como organismo vivo", de que se dá notícia, já de seguida, seja através de
uma pequena síntese editorial, seja através de uma imagem da respetiva capa.
"Arquitectura
Biológica - La vivienda como organismo vivo"
Editorial: Diseño
Editorial
(síntese editorial, retirada da divulgação do livro)
"Dentro del complejo saber de la naturaleza y del
intricado universo del ser humano, este libro deja como reto la búsqueda de un
equilibrio entre nuestras acciones y el entorno que habitamos para garantizar
la armonía en el planeta que compartimos. Pero principalmente este libro lanza
el desafío para la búsqueda de un espacio perdido, el espacio que nos pertenece
como seres vivos, esos espacios biológicos de los cuales carecemos, huérfanos
del espacio que nos es propio como organismos vivos."
Deixamos, então, aqui as boas-vindas a mais estes dois novos autores da Infohabitar, os colegas Marco Aresta e Scialpi Giulia, e sublinhamos que a segunda e última parte do respetivo artigo - "Arquitectura com terra: Experiências do fazer" - será editada na próxima edição da Infohabitar, já na próxima semana.
O Editor da Infohabitar, António Baptista Coelho
ARQUITECTURA COM TERRAExperiências do fazer - I
ARESTA, Marco; GIULIA, Scialpi
ÍNDICE
PRIMERA SEMANA
1. INTRODUÇÃO
“Cada um
por si!”
2.
ARQUITECTURA COM TERRA
2.1.
Contexto e características
2.2.
Modos de fazer
SEGUNDA SEMANA
2.3. Técnicas de paredes de terra
3. CONCLUSAO
1. INTRODUÇÃO
“Cada um
por si!”
Cada um
de nós poderá pensar que a frase “cada um por si” é negativa, mas desde o ponto
de vista da atualidade eu vejo-a mais como uma característica a ter que
aceitar, se já não diretamente aceite.
Cada um
por si não invalida que não sejamos pelos outros desde uma perspectiva na qual
o bem colectivo vai obviamente ser o nosso próprio bem. Também não invalida que
o meu bem-estar passe pelo conhecimento de como as minhas ações impactam no
bem-estar da totalidade e como tal, sobre mim mesmo. Por outro lado é
importante que cada um possa ter o seu conforto e condições de saúde para poder
pensar, atuar e sentir com total capacidade sobre o colectivo que integra. E
neste sentido é importante pensar a vivenda como refúgio são.
Figura 1. Trabalho colectivo. Curso “Eco-Arquiteturas”, Modulo “Construção Natural e Arquitectura Biológica”, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, 2014
Cada um,
hoje em dia, participa numa grande rede
de comunicação que permitiu o desenvolvimento da tecnologia. Mas é importante
reconhecer que no exato momento em que vivemos, o desenvolvimento, assim como
progresso humano tem a ver com a capacidade de inovar o tecido económico,
tecnológico, científico para praticas que reduzam o impacto ambiental, até a à
minimização da “pegada ecológica”.
Cada um
de nós, cada vez mais, é chamado a ”pensar sobre a “sustentabilidade”, com
tendência ao aumento da investigação pela praxis académica independente, mas
também pela investigação apoiada pela comunidade empresarial, de modo a
garantir que a produção humana tenha o mínimo impacto sobre o contexto natural
e consecutivamente sobre ela mesma. Obviamente que estamos no inicio de um
largo longo processo que reclama urgência, cujo grande desafio é como antecipar
tempos que naturalmente são os que necessitamos como grupo consciente e
racional para poder atuar em e no colectivo.
Figura 2.
Construção de um módulo de vivenda social. Curso de Construção Natural,
Astigarraga, Euskal Herria, 2013
Tudo
isto é o reflexo de uma consciência colectiva que formula uma opinião pública e
que cada vez mais nos faz repetir a mensagem.
Mas isto
só não chega!
Cada um
terá que ter a responsabilidade, guiada por uma ideologia do sentir e do
pensar, para atuar de forma coerente. Esta coerência é dada pela informação que
necessitamos e que devemos compartilhar , fazendo-a chegar até aos outros e,
por conseguinte, até nós mesmos.
A
informação que cada vez mais se difunde de maneira vertiginosa pelos meios
virtuais leva-nos a poder aceder a conceitos que nutrem o nosso próprio
exercício do “fazer”. Mas fazer o quê?
Cada ser
humano realiza ações no seu dia que decorrem da necessidade de fazer coisas.
Alguns justificam que é por dinheiro; outros para não ouvir o marido ou a
mulher, ou a sogra, ou os filhos; outros por ambição, por poder, por reconhecimento
(diria que todos); outros por paixão, por compromisso, por palavra, etecetera…O
que interessa é que agimos e realizamos coisas. Ora esse agir é que deve ser
questionado desde a perspectiva das consequências que ele poderá ter nas
presentes e futuras ações do ser humano.
Como é
sabido, umas das ações que mais consome recursos é o ato de construir o nosso
habitar. Os edifícios consomem entre 20
a 50% dos recursos físicos do planeta segundo o seu contexto edificatório e
sendo a obra pública a que mais consome. Sabendo que, dentro das atividades
industriais, a construção é a mais consumidora de recursos naturais, juntamente
com a industria associada, e a principal responsável pela contaminação
ambiental, a aplicação de critérios de construção sustentável aos edifícios
torna-se imprescindível para o desenvolvimento das sociedades futuras.
Mas que
critérios? Obviamente critérios ao nível da eficiência e poupança energética,
noções de conforto e saúde para os ocupantes, processos humanizados de
trabalho, tratamento de águas, etecetera; mas principalmente é importante
incidir no processo de seleção dos materiais.
Ë na
seleção dos materiais que maior impacto podemos ter na urgente redução do
impacto das construções no meio ambiente. Selecionar materiais naturais, locais
e com processos de extração não invasivos é como se pode contribuir, económica
e tecnicamente, na urgente redução da “pegada ecológica”.
E não
falamos de reciclagem! Também os materiais reciclados implicam processos
contaminantes de alto consumo energético proveniente de sistemas
industrializados.
Falamos
de materiais recuperados não contaminantes e de materiais naturais.
Figura 3.
Vivenda V&E, Villa La Angostura, Argentina, 2012. Construção em terra palha
encofrada
Como
exemplo temos a industria de reciclagem do betão. Quando um edifício chega ao
final da sua vida útil, uma media de 25% do betão da estrutura é reciclado: as
paredes e lajes são esmagadas e separadas para o seu uso em estradas, viadutos
e outros edifícios. Claro está que este ato de reciclar na Análise do Ciclo de
Vida (ACV) é bom mas nada tem que ver com o possível 100% de reutilização com
baixo consumo energético que é possível obter com as paredes construídas com
terra. A mais valia reutilização é que não origina um consumo de energia e
recursos que é obrigatório na reciclagem.
Contudo,
não estamos aqui para comparar, mas sim para introduzir o tema da construção
natural e especificamente da arquitetura com terra.
2. ARQUITECTURA COM TERRA
2.1. Contexto e características
A
Arquitectura com terra alude a “todas as manifestações construtivas,
arquitectónicas e urbanísticas que foram projetadas e construídas com terra
como material predominante” (Neves,
2004).
À parte
de aproximadamente 60% do património histórico de Portugal ser de terra e de um
terço da população mundial habitar casas de terra, o uso consciente e
responsável da terra como material de construção origina que cada vez mais se
utilize a terra para satisfazer as nossas necessidades contemporâneas de
habitar. Mas principalmente como forma de resolver o défice de habitação
no mundo.
As
vantagens da utilização da terra na construção transcendem o âmbito económico,
somando vantagens de índole técnica (facilidade construtiva, disponibilidade e
abundância do material, bom isolamento térmico e acústico, material ignífugo,
etc.); de índole sociocultural (valorização de recursos locais, recuperação de
tradições populares, trabalho cooperativo e associativo, etc.); e de índole
ambiental (baixo consumo energético e pequena “pegada ecológica” no ciclo de
vida das construções).
Figura 4.
Vivenda Fede, Tigre-Buenos Aires, Argentina, 2013. Construção em terra tabique
Atualmente
a Arquitectura com terra dá a possibilidade de construir, recuperar, melhorar e
ampliar vivendas, além da aplicação em equipamentos públicos um pouco por todo
o mundo.
Contudo,
o cenário em Portugal ainda é deficiente na busca de soluções para a habitação,
não só pela prática no que respeita a equipas profissionalizadas, mas também
pela parte legislativa. Uma das soluções que procura dar resposta a isto é a
formação em pequenos cursos que servem de divulgação, mas que também servem
para dar ferramentas a autoconstructores e a profissionais que procuram
introduzir-se na área temática.
Estas
tímidas iniciativas tendem a crescer se os grupos locais se juntarem e
divulgarem de forma altruísta o seu conhecimento, juntando esforços no caminho
a uma arquitetura de terra profissionalizada que permite resolver problemas
arquitectónicos e urbanísticos na contemporaneidade e não só como recuperação e
conservação do património ou pelo simples folclore da tradição.
Figura 5. Teto
com estrutura reciproca em madeira. Vivenda T&E, Foyel, Argentina, 2014
Por trás
da prática e do fazer técnico, apoiado pelo desenvolvimento tecnológico da
arquitetura com terra, deve existir também um comprometido saber filosófico e
ideológico que leva a uma justificação de base teórica. A Arquitectura com
terra já não é só o resolver de problemas e necessidades da população a um
nível pragmático, mas sim também a ferramenta propicia e alternativa a
resolução de problemas de índole ambiental, económica, social e de saúde
publica.
2.2. Modos de fazer
Neste
momento a nossa prática assenta em experiências no âmbito da formação popular e
académica, da investigação, da atividade profissional de projeto e construção e
do apoio a autoconstructores.
Recentemente
fui convidado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa a
participar de um curso com o nome “Eco-Arquiteturas”. O mesmo era composto por
vários módulos, um dos quais me competia leccionar. Dessa forma, dei um
seminário sobre “Construção Natural e Arquitectura Biológica” com 6 dias de
prática em obra e 2 dias de teoria na Faculdade. Na componente prática
construímos uma pequena sala de um equipamento público que será futuramente
utilizada pela Câmara Municipal de Lisboa. Partimos do zero, com o local de
implantação totalmente virgem e terminámos com as paredes, tecto, pavimentos,
pintura, etecetera; ou seja, a construção terminada em todas as suas etapas de
obra. Este é mais um dos exemplos de
cursos que nos últimos anos tenho feito para poder divulgar e formar, mas
principalmente e, em muitos casos, para ajudar a fazer uma habitação.
Figura 6.
Construção de uma parede e um arco em adobe. Curso “Eco-Arquiteturas”, Modulo
“Construção Natural e Arquitectura Biológica”, Faculdade de Arquitetura da
Universidade de Lisboa, 2014
Muitos
foram os cursos nos quais se fizeram habitações ou se ajudaram a fazer com
processos de cursos. O intercâmbio estabelece-se da seguinte maneira: os
materiais e ferramentas são disponibilizados pelos proprietários e a
mão-de-obra são os próprios participantes do curso que, em troca da
aprendizagem, ajudam a construir. Desta maneira temos uma possibilidade de
construir, formando simultaneamente profissionais e autoconstructores através
da prática direta de obra.
Esta
prática é apoiada pela experiencia profissional e também pela investigação
académica. No caso da investigação
académica fazemos ensaios de prova e erro e obtemos por métodos de
experimentação e observação resultados que nos permitem melhorar aspectos
técnicos de carácter mecânico, físico e/ou químico. Uma das grandes inovações
dos últimos anos no que se refere á Arquitectura com terra é o tema dos rebocos
e das pinturas. É importante que a terminação da construção seja resistente
para dar a garantia de salubridade ao edifício.
Figura 7. Reboco
fino a base de argila numa vivenda de terra.
Por
outro lado as técnicas de construção com terra são desenvolvidas e melhoradas
para a sua correta aplicação em climas e
orientações distintas. Não é o mesmo construir no Sul da Argentina ou no Sul de
Portugal, pelas suas diferenças climáticas que determinam distintas exigências
na construção. Muitas vezes, estas pautas ao nível das diferentes técnicas de
paredes, morfologia e rebocos são dadas pela própria Arquitectura popular e
pelo saber-fazer acumulado de gerações que é importante conhecer e resgatar
pelo grupo de investigação.
A
investigação transita da atividade académica para o projeto e principalmente a
obra, estabelecendo-se um intercâmbio de dados e informação.
Ao nível
profissional a atividade também muda dado que os clientes e a própria equipa de
trabalho buscam uma relação humanizada que passa pela confiança e o desafio de
ultrapassar juntos barreiras colocadas pelo acesso ao novo e diferente. Esta
questão é essencial dado que atualmente a Arquitectura de terra sofre de
preconceitos fruto da ignorância. Há muito menos tempo que se constrói com materiais
industrializados que com materiais naturais. Também os materiais naturais
demonstram resultados de durabilidade, salubridade, resistência e conforto, mas
a atualidade reclama que ainda se tenha que ultrapassar determinados mitos
neste caminho para resgatar práticas ancestrais. Por isso mesmo a prática
profissional encontra uma enorme responsabilidade no momento de concretizar o
objeto arquitectónico.
Figura 8.
Interior da Vivenda V&E, Villa La Angostura, Argentina, 2012. Construção em
terra palha encofrada
Neste
momento temos já habitações construídas que se confrontam com o tempo e os
usuários. Dentro da prática profissional há vários desafios com que nos
confrontamos diariamente: a falta de legislação para a construção com terra, o
preconceito em relação ás condições de salubridade e resistência de uma
habitação de barro e a falta de equipas de profissionais. Mesmo assim o
universo de clientes é variado e aumenta cada vez mais com a consciência global
sobre o ambiente.
Á
materialidade das construções em terra, soma-se no projeto: a morfologia
determinada por geometrias da natureza biológica; os sistemas solares passivos
para aquecer e refrigerar a vivenda; as tecnologias apropriadas ao lugar; as
estratégias de desenho bioclimático; e por último os processos de trabalho
associativo e cooperativo.
BIBLIOGRAFIA
ARESTA, Marco; “Arquitectura Biológica – la vivienda como
organismo vivo”; 2014: Diseño editorial; Buenos Aires; ISBN:
978-987-3607-26-4
Nota:
este artigo será concluído, com a respetiva segunda e última parte, na edição
da próxima semana da Infohabitar,
Notas
editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De
acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível
técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma
quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou
que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na
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dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se
circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é
pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser
de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado
tal e qual foi recebido na edição.
INFOHABITAR Ano X, nº 490
Editor: António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
Universidade da Beira Interior (UBI), Secção Autónoma de
Arquitetura (SAA), Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura (DECA)
GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da
Qualidade Habitacional
Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), Núcleo de
Estudos Urbanos e Territoriais (NUT)
ARQUITECTURA COM TERRA
Experiências do fazer - II
Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.
Infohabitar, Ano X, n.º 490
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