Infohabitar, Ano VIII, n.º 417
Muito provavelmente a edição da semana que vem do Infohabitar será reservada a novidades relativas à evolução da preparação do 2.º CIHEL, cujas comunicações têm chegado a bom ritmo, e a novos e importantes apoios a este Congresso. Já há dias que ultrapassámos as 100 comunicações completas entregues e está na altura de se pensar nos convites para as palestras, que irão marcar o final da tarde do Congresso.
A Comissão Organizadora do 2.º CIHEL
RUAS VIVAS: ELEMENTOS QUE FAZEM A CIDADE
Artigo XXVI da Série habitar e viver melhor
António Baptista Coelho
Disse Jaime Lerner, arquitecto que foi prefeito de Curitiba, uma grande cidade do sul do Brasil onde dinamizou um leque amplo de medidas de re-humanização e de sustentabilidade urbana e ambiental (1), que “até agora não se inventou nada melhor do que uma rua tradicional, que é a síntese de uma cidade onde todas as funções estão juntas: moradia, trabalho, lazer...”
Jaime Lerner fala-nos da cidade habitada, da cidade física que acumula, numa simples rua tradicional, aspectos tão valiosos como a síntese de funções e actividades que se aponta em seguida: a habitação diversificada; um leque de postos de trabalho; uma grande variedade de possibilidades de lazer, desde por exemplo o passear nos passeios (flanar), ao estar numa esplanada a cavaquear, ao jantar num restaurante, ali, mesmo sobre o passeio, ao ir ver um filme num cinema/estúdio; o ensino e a formação numa escola ou colégio integrados na continuidade da rua, como costumava ser; o comércio diário e ocasional, desenvolvido, também, numa verdadeira perspectiva convivial; a cultura ali, logo, seja numa pequena galeria de arte, seja na banca de uma livraria “de bairro”; a facilidade de uma consulta médica também num andar da mesma rua; e poderemos continuar a desfiar estas contas de uma rua citadina bem habitada e verdadeiramente convivial, pois é nestas ruas que passa o principal fluxo de sangue arterial de uma cidade viva e que vale a pena.
Nada desta mistura rica de actividades, ambientes e pessoas, perdeu alguma viabilidade ou algum sentido nesta nossa nova época de megacidades e de economia globalizada e pontuada por grandes áreas de serviços automobilizadas. E quem tenha alguma dúvida sobre esta realidade bastará viver um pouco uma daquelas ruas bem vivas de um daqueles bairros bem vivos, que, felizmente, ainda marcam as nossas cidades, para interiorizar a importância que tem e que terá este fazer cidade com ruas vivas.
E só desta forma, com ruas assim, vivas e estimulantes, a cidade se poderá cumprir como “refúgio da solidariedade, nossa garantia e salvaguarda”, novamente palavras de Jaime Lerner na mesma entrevista, afinal um papel que assume uma importância renovada e muito especial em tempos de crise.
Fig. 1
Mas fazer cidade humanizada, porque marcada por ruas vivas e solidárias, não é, hoje em dia, um objectivo simples. Todos sabemos disso, porque todos conhecemos muitas ruas, que de ruas quase só têm o nome na placa toponímica, quando a têm. São ruas sem continuidade urbana, sem habitação vitalizadora, sem actividades diversificadas, sem ligações activa à cidade viva e sem uma escala formal e funcional que esteja, verdadeiramente, ao serviço do homem a pé, e de uma comunidade humana local, pelo menos, minimamente solidária e naturalmente convivial.
E é tão grave e, realmente, tão estranho este facto, desta ausência de ruas que sejam amigas do homem e sítios de cidadania, que, começa a haver um número crescente de estudiosos, técnicos e organizações técnicas e científicas (2) que se dedicam à redescoberta da cidade e da rua citadina como sítio que, antes de circuito para automóveis, foi e tem de voltar a ser sítio de homens a pé, sítio de convívio e local de vida urbana positiva. E, desde já se esclarece, que aqui não se está a voltar a seguir a perspectiva, que teve alguns amargos frutos, de uma pedonalização solta da vida urbana, mas sim um privilegiar consistente e vitalizado do uso da cidade pelo homem, servindo-se, funcionalmente, do automóvel e de todos os outros meios, com destaque para os transportes públicos amigos do ambiente, que sejam factores aliados para uma fundamental (re)vitalização urbana.
E nesta matéria parece oportuno citar Nuno Portas (3), quando referiu que: “nem uma cidade de comunidades, hoje, substitui a metrópole, nem a metrópole,... pode passar sem os outros níveis de relação que não são os bairros transformados em equivalentes a aldeias tradicionais... a cidade não é mais igual, não pode ser igual. ... A procura é diversa. A procura cultural é diversificada, não há consenso no modelo para fazer isso. Por isso é que me parece estratégico falar no espaço comum. Tentar encontrar mais depressa o consenso sobre o espaço comum, em vez de ter uma grande preocupação sobre o consenso quanto ao edificado".
Um consenso sobre o espaço comum, que pode ser um consenso sobre os aspectos fundamentais de uma rua viva e solidária, e, já agora, uma rua bem desenhada e estruturada, pois, tal como disse, há muitos anos, Etienne de Gröer: "Avenidas que não conduzem a nada e cuja grande largura não corresponde a nenhuma função são sempre desertos cheios de poeira" (4).
E o mesmo Gröer considerava uma rua enfadonha se durante uma extensão maior do que 500m não houver nenhuma mutação (largura, direcção, altura dos edifícios); e sobretudo se a rua não estiver guarnecida por árvores ou jardins frontais (5); e repare-se na riqueza da paisagem urbana que assim se pode atingir.
Fig. 2
Numa fundamental redescoberta do fazer um espaço público e uma rua com vida, atractividade e qualidade cultural, que é o mínimo que há que fazer, importa ter o máximo cuidado para não laborar em erros, que podem ser críticos, sendo fundamental que, num primeiro nível de exigência, se assegurem as melhores condições de continuidade e vitalidade nos percursos pedonais estruturadores; condições estas que se ligam à dinamização de rirmos de percurso, sugeridos nos pavimentos e nas próprias fachadas urbanas que acompanham esses percursos (6).
Os percursos pedonais têm exigências funcionais bastante rigorosas, quando se deseja obter a sua máxima vitalização (7), e importa favorecer a sua estratégica articulação com os fluxos de veículos, considerando-se fundamental que nas vizinhanças residenciais seja instituída uma predominância do peão, embora tirando-se o máximo partido das funcionalidades ligadas aos veículos, por exemplo através de ruas e pracetas com tráfego "banalizado", portanto, misto (peões e veículos), caracterizadas por uma forte variação das características funcionais dos perfis transversais, nomeadamente, no caso das faixas de circulação de veículos, obrigando-os a frequentes manobras a baixa velocidade, para além de serem desenvolvidas apenas pequenas bolsas de estacionamento, e tudo isto num quadro de prioridade pedonal.
Todas estas condições são verdadeiramente estruturantes na criação de espaços de vizinhança residencial marcados pela agradabilidade nos seus mais diversos aspectos – desde a reduzida presença visual dos veículos ao sossego e naturalmente à segurança pedonal e rodoviária; considerando-se que estas condições serão, consequentemente, geradoras de mais satisfação com o sítio que se habita.
Há, no entanto, que referir que ao subirmos no jogo da cidade para espaços e sítios específicos onde a habitação se caldeia e se agrega, com benefícios mútuos, com outras actividades do habitar a cidade, como lojas e serviços, há que ter muito cuidado com a prioridade ao peão, julgando-se ser preferível que aqui ela se “refugie”, quer em passeios largos, quer numa estrutura “clássica” ortogonal de vias frequentemente marcadas por passadeiras, quer numa relação intensa com um leque o mais possível amplo de transportes públicos. Desta forma se garantirá, simultaneamente, segurança e vitalização pedonal e, consequentemente, teremos os principais ingredientes para as desejadas ruas vivas.
Jane Jacobs abordou várias matérias essenciais para esta desejada harmonização de tráfegos, numa perspectiva de cidade vitalizada (8), destacando-se aqui, apenas, algumas suas afirmações, que não precisam de comentários:. “a separação entre peões e veículos só é possível contando-se com a redução estrondosa do número de veículos nas cidades, de contrário os estacionamentos, as garagens e as vias de acesso à volta das zonas pedonais … seriam medidas de desintegração e não de recuperação urbana” (p.383);
. “a vida atrai a vida, a separação dos pedestres não pode ser capricho (p.388);
. “ocorre pressão (positiva) sobre os automóveis quando se criam condições (de acalmia de tráfego) menos favoráveis para eles... a redução de automóveis tem de ser medida de base, mas ligada ao estímulo do uso do transporte público, e a pressão da cidade sobre o automóvel não pode ser arbitrária nem negativa e tem de ser uma medida gradual e com um amplo tempo de aplicação” (p.404);
. e, finalmente, “(mais do que zonas pedonais) calçadas largas são imprescindíveis… filas duplas de árvores… (p.405).
Notas:
(1) Rui Barreiros Duarte (entrevistador), “Acupunctura urbana – entrevista com Jaime Lerner”, Arquitectura e Vida, n.º 39, 2003, pp. 38 e 43.
(2) Por O Project for Public Spaces é uma organização não lucrativa de apoio técnico que já ultrapassou 30 anos de actividade, que apoia espaços públicos indutores de convívio sustentado e de espírito comunitário. A forma de actuação do PPS implica os moradores e utentes na (re)criação de uma dada visão dos sítios de vida comunitária, numa perspectiva de melhorias faseadas. A actuação do PPS baseia-se nas metodologias desenvolvidas por William White e designadamente numa cuidada e sistemática documentação da vida local, procurando envolver o mais possível os protagonistas locais.
(3) Nuno Portas, in "Colóquio Viver (n)a Cidade", LNEC, ISCTE, Comunicações, p. 9.
(4) Etienne de Groer, "Introdução ao Urbanismo", p. 61.
(5) Etienne de Groer, "Introdução ao Urbanismo", p. 65.
(6) Christian Norberg-Schulz, "Habiter", p. 25.
(7) As exigências fundamentais de caminhos pedonais são as seguintes (M. A. Boyer, in "Espaces Extérieurs Urbains, Rencontres du Centre de Recherche d'Urbanisme", J. P. Muret (Coord.), pp. 171 e 172): distância mais curta entre dois pontos, do que usando veículo particular; tempo de percurso inferior a 10 minutos em zona de actividades densa; continuidade urbana máxima; piso confortável e bem iluminado à noite; marcação de "unidades de percurso", dividindo o caminho em unidades mais curtas, que podem variar entre 50 e 150m, conforme a inclinação seja, respectivamente, forte ou praticamente nula.
(8) Jane Jacobs, “Morte e vida das grandes cidades” , trad. Carlos Mendes Rosa, 2001 (1961).
Notas editoriais:
(i) A edição dos artigos no âmbito do blogger exige um conjunto de procedimentos que tornam difícil a revisão final editorial designadamente em termos de marcações a bold/negrito e em itálico; pelo que eventuais imperfeições editoriais deste tipo são, por regra, da responsabilidade da edição do Infohabitar, pois, designadamente, no caso de artigos longos uma edição mais perfeita exigiria um esforço editorial difícil de garantir considerando o ritmo semanal de edição do Infohabitar.
(ii) Por razões idênticas às que acabaram de ser referidas certas simbologias e certos pormenores editoriais têm de ser simplificados e/ou passados a texto corrido para edição no blogger.
(iii) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Infohabitar, Ano VIII, n.º 417
Artigo XXVI da Série habitar e viver melhor
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
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sábado, novembro 24, 2012
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