sexta-feira, novembro 09, 2012

415 - Da rua à casa e da casa à rua: caminhos da surpresa e do pormenor - Infohabitar 415

Infohabitar, Ano VIII, n.º 415

Da rua à casa e da casa à rua: caminhos da surpresa e do pormenor

Artigo XXV da Série habitar e viver melhor
António Baptista Coelho

Habitar é viver a cidade, seja como sítio de habitar, seja como espaço próprio de actividades urbanas específicas e desejavelmente estimulantes, e o lugar comum, mais fulcral e estratégico, deste quadro do habitar é o percurso da rua à casa e da casa à rua, um percurso que deve proporcionar agradabilidade, um certo sentido de surpresa estimulante e interessantes e adequadas condições de pormenorização; características estas que devem definir a identidade e a positiva singularidade de cada sítio urbano e habitacional.

Será em boa parte deste jogo de positivas e mutuamente conjugadas singularidades urbanas e vicinais, associado a um outro jogo de acessos, de visibilidades e de delimitações de espaços mais privados ou mais públicos, que poderá resultar um estimulante e diversificado leque de tipologias habitacionais e urbanas; portanto de um jogo de jogos de uma série de elementos urbanos onde, incrivelmente, quase ainda não se falou aqui de edifícios.


Lembremos, segundo esta perspectiva, que Louis Kahn definiu a rua como “ a mais vital instituição humana numa cidade” e escreveu que as fachadas dos edifícios ao longo da rua pertencem à rua, “são as paredes da rua, espaço sem tecto" (1).


Há assim aqui como que um natural apagamento da presença do edifício como elemento mais isolado, e um simultâneo protagonismo urbano e vivencial dos conjuntos coesos de edifícios, mas numa perspectiva que os assume muito como as tais sequências de fachadas que pertencem à rua, as tais “paredes da rua”.


E assim se constroem as sequências nas vizinhanças, sequências afirmadamente públicas com toda a certeza, pois de outro modo nega-se a cidade, mas onde sentimos a vizinhança um pouco também como espaço nosso, espaço de vida directa, mitigadamente apropriável e desejavelmente protector e identificável como único, como aquele sítio de que gostamos, que sentimos como nosso e de que nos orgulhamos.


Paolo Portoghesi, citando o mesmo Louis Kahn, escreveu, até: (2)




Fig. 1

"A rua é um quarto que exprime um pacto. A rua é, por cada proprietário, dedicada à cidade em troca de serviços públicos. Nas cidades de hoje, as ruas sem saída conservam ainda o carácter de quarto. As ruas e cruzamentos, depois da invenção do automóvel, perderam toda a sua qualidade de quarto... a urbanística pode começar a tomar consciência desta perda e a impulsionar a reintegração da via, onde as pessoas vivem, aprendem, compram e trabalham, na sua qualidade de quarto comunitário."

Teremos, assim, uma rua que pode até ser "um quarto"; já há muitos casos de citadinos que usam partes das ruas como extensões directas das suas casas, por exemplo, como espaço de trabalho e de restauração à mesa de cafés e de pequenos restaurantes conviviais e bem colocados, bem dentro de um espectáculo urbano já mais num movimento mais lento e mais íntimo.

E naturalmente teremos de ter casas e compartimentos de casas que sejam sítios estimulantes e também bem integrados nas paisagens urbanas mais animadas ou mais repousantes, que as tem de haver com essas duas qualidades; e esta referência liga-se a dever tratar-se o espaço edificado habitável com toda a atenção, com todo o cuidado e com todo o potencial se satisfação que ele tem.


As ruas são, assim, elementos fundamentais do habitar citadino, as ruas são para se "estar" nelas, e não só para serem percorridas com pressa; e, tal como sublinha Christopher Alexander, devem ser como que compartimentos exteriores públicos, com um certo sentido de interioridade, dado por formas subtilmente convexas e côncavas, pelo alargamento pontual dos seus perfis, pela sua cobertura parcial e por estreitamentos nas suas extremidades. (3)


Dizer que se fala da rua como elemento aglutinador de um amplo leque de figuras urbanas é dizer pouco, pois a rua é a “mãe” de muitos dos aspectos que fazem de certas partes da cidade sítios únicos de vida …plenos de surpresa e de pormenor, mas também pacificados por aspectos bem conhecidos, que nos marcam a memória.


Mas, logo ali, em pleno, na rua e fazendo-a, conformando-a, recheando-a de carácter e de características, temos as entradas dos edifícios, que podem ser, logo, entradas domésticas ou entradas de lojas e cafés, portanto, logo, sítios que marcam mundos domésticos privados, e que deles nos mostram aquilo apenas que nos querem mostrar, ou que nos cativam para os tais terceiros espaços desejavelmente conviviais, que fazem expandir, agradavelmente, a “esfera" da nossa melhor vivência diária.


Ou então temos as entradas dos edifícios multifamiliares. E estas se forem boas entradas, "boas" no sentido de participarem na construção de edifícios tendencialmente facilitadores de bem-estar e alegria de viver, e indirectamente de ruas também facilitadoras das mesmas qualidades ao nível urbano, então há todo um enorme conjunto de possibilidades relacionais, cenariais e, basicamente, arquitectónicas, com que é possível e desejável jogar, desde a “caverna” orgânica que vai dando acesso a tantos pequenos mundos mais ou menos revelados, ao amplo espaço/átrio que de certa forma quase duplica a rua, ou quem sabe até a multiplica, proporcionando, por exemplo, aquele sentido de uma incrível e estimulante grande "gruta de Aladino", logo ali, bem junto à "nossa" rua.


Lembremos, porque devemos lembrar, que estamos aqui a falar/tratar de "Arquitectura urbana e habitacional" e não de "produção habitacional", ideias bem diferentes.



Fig. 2

E lembremos que nada disto se inventou agora, mas sim já ao longo de milhares de anos, com certeza, tantas vezes, de forma, pode dizer-se, intuitiva, natural, longa no tempo, associada a necessidades e meios disponíveis, e decorrente de situações específicas, como, por exemplo, no caso das grandes grutas habitacionais iranianas e chinesas e de tantas fabulosas casas-pátio, "quase fechadas" à rua, mas enriquecendo-a de muitos sentidos, ou níveis de leitura e de fruição em termos de ambientes e cenários urbanos e residenciais mutuamente conjugados e dando, de certa forma, até sequência natural à própria sequência dos percursos mais urbanos.

E não tenhamos dúvidas que todas estas soluções podem ser directa ou indirectamente replicadas, adaptadas, reinterpretadas e experimentadas hoje, nas nossas cidades, e só o não são essencialmente por alguma ignorância, pois o custo, o custo será idêntico e a satisfação, a satisfação urbana e residencial, de quem lá vive realmente e também de quem lá passa e afinal também habita, será, potencialmente muito grande e diversificada.


Há que voltar a este assunto das entradas habitacionais ligadas às ruas e do enorme leque de situações, apropriações e soluções formais que são possíveis, e que produzem boa parte do excelente potencial de riqueza e de diversidade de uma cidade bem habitada atraente e com valia cultural, mas fiquemos, para já, com a lembrança, que todos temos, de alguns exemplos que se podem encontrar, ao virar de uma qualquer esquina de uma qualquer boa cidade agradável e habitada; e fixemos que estes tipos de soluções de habitar que foram casos correntes podem ser hoje em dia replicadas, actualizadas em aspectos funcionais, naturalmente, mas sempre com evidentes ganhos de apropriação e de diversificação das formas de habitar e de preencher a cidade.


Notas:


(1) Louis Kahn, "O que é a Arquitectura? (Harmony Between Man ans Architecture)", p. 125.


(2) Paolo Portoghesi, "Depois da Arquitectura Moderna", p. 88.


(3) Christopher Alexander, S. Ishikawa, M. Silverstein, et al, "A Pattern Language/Un Lenguaje de Patrones", p.526 e 527.


Notas editoriais:

(i) A edição dos artigos no âmbito do blogger exige um conjunto de procedimentos que tornam difícil a revisão final editorial designadamente em termos de marcações a bold/negrito e em itálico; pelo que eventuais imperfeições editoriais deste tipo são, por regra, da responsabilidade da edição do Infohabitar, pois, designadamente, no caso de artigos longos uma edição mais perfeita exigiria um esforço editorial difícil de garantir considerando o ritmo semanal de edição do Infohabitar.
(ii) Por razões idênticas às que acabaram de ser referidas certas simbologias e certos pormenores editoriais têm de ser simplificados e/ou passados a texto corrido para edição no blogger.
(iii) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.


Infohabitar a Revista do Grupo Habitar

Infohabitar, Ano VIII, n.º 415

Da rua à casa e da casa à rua: caminhos da surpresa e do pormenor


Artigo XXV da Série habitar e viver melhor

Editor: António Baptista Coelho

Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte

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