Infohabitar Ano VIII, N.º 411
ARTIGO XXI DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR
Sobre o jogo das relações urbanas: limiares, transições e relação interior/exterior - I
(com imagens de Coimbra)
António Baptista Coelho
Para além do “jogo de entradas” e do próprio “jogo urbano”, para além da crucial integração de elementos naturais e dos papéis relacionais e de apropriação de tais elementos, para além do que se consegue atingir em termos de capacidade de vivência e de atractividade do exterior público, há, antes de tudo e talvez no fim de tudo, sempre um pouco, daquilo que dá coesão a tudo isso e que podemos definir como “o jogo das relações” em Arquitectura residencial e urbana.
E complementarmente a esta questão coloca-se outra: como tal jogo parece poder ser determinante na construção de soluções habitacionais e urbanas verdadeiramente estimulantes e porque não dizê-lo, verdadeiramente eficazes?
Fig. 01
Há autores que constroem toda uma teoria do habitar sobre este jogo, como é o caso de Christopher Alexander, de Chermayeff, de Jean-Charles Depaule e mesmo, em boa parte, de Hertzberger, transformando a concepção residencial num verdadeiro jogo de limiares de privacidade e convivialidade, e, muito provavelmente terão razão. No entanto, julgo que é adequado associar a uma tal rede de relações muito centrada na presença do espaço privado, uma outra rede de relações que (se) baseia a estruturação do espaço público, e aqui é sempre útil todo o excelente processo de leitura da imagem urbana desenvolvido por Gordon Cullen.
É como uma junta bem larga de coesão dos mundos domésticos – deixemos, para já, os espaços comuns fora do jogo –, mas é uma junta onde realmente se vive e que vive, também, a outros ritmos e por outras razões que não apenas aquelas que temos nas nossas casas. É um mundo cívico que tem as suas próprias razões de ser, e isto é muito importante, e é a riqueza e diversidade urbana a chamar por nós, diariamente, e isto é também muito importante e tem “mecânicas” próprias, formais e funcionais – mas, julgo que talvez formais, em primeira linha e a este tema voltaremos – que regem a potencialidade de se influenciar um habitar com mais felicidade e mesmo com mais entusiasmo, e aqui há que lembrar, sempre, o magistral tratado de paisagem urbana de Gordon Cullen, um trabalho ao qual nunca foi feita a devida justiça, designadamente, no que aqui nos reúne, autor e leitor, que é o pensarmos sempre mais um pouco sobre o como fazer habitações mais felizes (leia-se espaços habitacionais e urbanos mais felizes).
Mas há que sublinhar aqui três aspectos: o primeiro tem a ver com estar-se a tratar de boa parte da matéria própria do “arquitectar”, e assim devemos ter em conta que será difícil ou mesmo desaconselhável avançar muito mais nesta reflexão sobre o jogo das relações no habitar urbano, pois tal assunto deverá ficar atribuído ao trabalho de cada projectista, uma ideia que seria boa se tivéssemos a certeza de que estamos sempre a tratar com excelentes projectistas (sem mais comentários); o segundo aspecto, ao qual dedicaremos, mais à frente, atenção específica tem a ver com a grande importância deste jogo de relações espaciais na construção do amplo leque de tipos de edifícios de habitação; e o terceiro aspecto, ao qual dedicaremos, já de seguida, mais algumas reflexões, tem a ver com a noção de que boa parte da potência arquitectónica e vivencial do jogo de relações espaciais decorre de múltiplos aspectos de ligação, transição, separação e sobreposição física e visual entre espaços interiores e exteriores.
Pensemos então, apenas um pouco mais, nos aspectos de articulação entre espaços interiores e exteriores e nas suas influências na desejável fruição positiva do habitar.
Nestes limiares é importante a evidenciação dos “jardins de inverno”, nomeadamente, nos pisos térreos através de volumes envidraçados e cheios de plantas "domésticas", é um importante factor de expressão dos seus respectivos fogos, de embasamento do edifício e de relação com a envolvente natural ou de “verde” urbano, ao mesmo tempo que servem como elementos de integração entre o exterior e o interior, porque as plantas são elementos comuns e bem evidentes num e noutro. E isto pode e deve generalizar-se à matéria do verde no edificado, naturalmente, numa relação com um verde mais forte na ligação com o solo.
E uma tal reflexão, mais “edificada” sobre estes elementos do exterior, mas enclausurados, que são os “jardins de inverno” pode ter uma contrapartida, quer num expressivo desenvolvimento das soluções associadas a quintais/pátios privativos, que são elementos do exterior apenas delimitados por construção, quer num idêntico desenvolvimento das zonas de relação interior/exterior, que podem marcar os "pontos" de acesso aos edifícios e os pólos de animação/vitalização pontual por equipamentos; e afinal todos estes elementos marcam funcional e visualmente o sub-nível físico residencial de transição entre a vizinhança de proximidade e os seus edifícios.
E devemos ter bem presente que é neste sub-nível físico de limiar, que, se conseguirmos desenvolver um verdadeiro nível vivencial, se poderá ganhar boa parte da batalha da motivação do uso do exterior e do desenvolvimento de uma imagem residencial apetecível, pacífica e apropriável.
Afinal é nesta margem funda, neste limiar, que se "sai" dos espaços exteriores equipados a caminho dos edifícios e se sai dos edifícios a caminho desses exteriores equipados ou de outros edifícios, trata-se de um complexo de relações potencialmente vitalizador que há que tratar com grande continuidade física e visual, velando, cuidadosamente pelo conforto nos edifícios (face a possíveis actividades exteriores incomodativas) e pela funcionalidade, agradabilidade e relativa, mas fundamental, liberdade de uso dos espaços exteriores equipados (com poucas restrições porque bem posicionados e adequadamente protegidos e pormenorizados).
Esta é uma perspectiva que se julga ser razoavelmente inovadora e que se ganhou, evidentemente, não por acaso, na sequência de um amplo trabalho de apoio a uma tese de doutoramento em Arquitectura, realizada no LNEC e apresentada na FAUP, sobre o que poderá constituir a qualidade arquitectónica residencial (1); afinal, também aqui acabámos por nos situar estrategicamente nas relações entre níveis físicos mais conhecidos e evidentes, por se concluir que muita da qualificação arquitectónica se situa nestes inter-níveis, entre cidade e bairro, entre bairro e vizinhança, entre vizinhança e edifício, entre edifício e habitação, e mesmo entre a habitação e os seus compartimentos – não é tornar complexa uma “coisa” simples é, sim, aproximarmo-nos da real complexidade de algo que parece simples.
E assim já se entende melhor que, por exemplo, é fundamental, não só a adequada concepção dos espaços exteriores de vizinhança e dos compartimentos domésticos, mas também a forma como uns e outros se relacionam directamente e através dos associados níveis do edifico e da habitação. E é, assim, fundamental afirmar que a qualidade residencial depende do desenvolvimento de conjuntos habitacionais globalmente concebidos tendo em atenção as desejáveis características dos seus diversos níveis físicos e das suas estreitas e mútuas inter-relações, desde a integração na envolvente até à pormenorização exterior e interior.
Por outras palavras, Francisco Keil do Amaral fala-nos estas matérias, quando, referindo-se aos "sectores de Lisboa mais lisboetas", diz que (2): "Aprecio neles, acima de tudo, uma «poética desarrumação» e fraccionamento dos edifícios e dos espaços livres e uma escala humana de relações espaciais e volumétricas peculiar. Desarrumação sábia ou com acasos sabiamente aproveitados, favorecia-a o relevo da Cidade, recomendava-a o clima e quadrava aos hábitos populares. Amenizava o conjunto do casario sem grandeza e a permanência em habitações pouco cómodas e salubres; convidava a uma vida na rua, ao ar livre, alegrada pelo nosso sol. Nesses sectores as casas não entaipavam os passantes em ruas monótonas, rigidamente alinhadas. Abriam-se, de quando em quando, em varandas sobre o rio, ou sobre os campos ou sobre outras casas construídas mais abaixo. Nuns pequenos espaços deixados à margem do movimento das ruas podia-se lazeirar, sonhar, conversar livremente ou contemplar o casario e os barcos que sulcavam o Tejo. Nuns larguinhos íntimos, abrigados do vento, os velhos gozavam o sol de Inverno, enquanto, ao lado os mais novos jogavam à malha. Bastantes edifícios eram concebidos envolvendo parcialmente pequenos espaços livres, a que davam recato e utilidade, eximindo-os à bisbilhotice proverbial dos vizinhos portugueses."
Julga-se que sobre o jogo das relações e o seu papel na Arquitectura urbana e do habitar dificilmente outro texto poderia realizar uma melhor síntese.
Notas
(1) António Baptista Coelho, “Qualidade Arquitectónica Residencial”, Lisboa, LNEC, ITA n.º 8, 2000.
(2) Francisco Keil Amaral, "Lisboa uma Cidade em Transformação", pp. 146 e 147.
Notas editoriais:
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Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Infohabitar, Ano VIII, n.º 411
Sobre o jogo das relações urbanas: limiares, transições e relação interior/exterior - I
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
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