ARTIGO XXII DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR
Os percursos de uma cidade habitada e a defesa da Arquitectura Urbana
António Baptista Coelho
Em primeiro lugar importa registar que se considera que o jogo das relações entre rua e casa e entre exterior e interior é, mais do muitos outros aspectos que podem (e devem) ser tomados em conta no que se refere à matéria urbanística, o verdadeiro ligante de uma intervenção urbana e de habitar consistente em termos de presente e futuro e em termos de interesses humanos e sociais.
Em segundo lugar um brevíssimo comentário sobre a condição de, quando, se reflectir, aqui, em outros artigos desta série, sobre “as medidas do homem e as medidas da cidade”, matéria que se considera essencial na abordagem e na devida caracterização dos tais percursos vivos que devem relacionar interiores e exteriores de vizinhança, se usar o termo “medidas”, não apenas numa perspectiva dimensional e de bases para-dimensionais, mas também numa perspectiva fundamental de definição de escalas de intervenção adequadas e caracterizadoras e, ainda, mesmo de apontamento de recomendação de cuidados e acções preferenciais tando em vista o bem-estar humano e uma adequada e rica vivência/utilização citadina; matérias estas consideradas de grande importância, designadamente, no século das cidades, das mega-cidades e de um mundo mega-urbanizado.
- nos “pontos e zonas de ligação entre exteriores de uso público e interiores dominantemente domésticos;
- nas ruas e nos quarteirões associados a vizinhanças de proximidade;
- nos sítios de passagem, transição e vivência que são “motivos” essenciais de uma cidade viva e estimulante;
- nos sítios singulares e com carácter assinalável sem os quais nunca houve nem haverá cultura urbana;
- no leque de espaços de percurso e de identidade que constituem a vital rede capilar da vida citadina, ela própria fundação do carácter maior da respectiva cidade;
- e, finalmente, nas próprias, múltiplas e variadas relações, privilegiadas e mesmo caracterizadoras, que em todo este quadro físico se tem de estabelecer com os mais diversos tipos e soluções de edifícios; matéria última esta que consideramos essencial na reflexão sobre uma fundamental diversidade de oferta de soluções de habitar domésticas e urbanas.
Serão, assim, estas as matérias a tratar e comentar, sempre que possível, sublinhando-se que a ideia central nesta reflexão é sublinhar a importância de se passar, hoje em dia, decididamente, de uma fase disciplinar, que foi longa, em que a Arquitectura de edifícios e o Urbanismo eram considerados e abordados como disciplinas sensível ou até claramente distintas, o que frequentemente resultava mesmo em serem “opostas” em termos de objectivos e resultados fundamentais, para passarmos a um tempo em que Arquitectura e o Urbanismo se fundam totalmente e onde, nesta fusão, se entenda o papel central dos referidos relacionamentos, relações, transições, limiares, fusões tipológicas de edificado e espaço exterior, percursos estruturantes, pólos estratégicos, etc. ; e em poucas palavras no primado da do relacionameno mútuo e afirmado de espaços e ambientes, numa arquitectura urbana estratégica e atraentemente integrada.
Falta talvez referir que o o homem, e as suas necessidades e exigências, consideradas de uma forma ampla e verdadeira, e portanto não “fundamentalisticamente” racionalizadas, tem de ser o centro e objectivo-base de toda esta reflexão, havendo ainda que dar o devido relevo aos homens mais sensíveis, que são os idosos e as crianças.
E este desafio é “inteiro” no conceito que põe em relevo, trata-se da importância que é fulcral atribuir, hoje, nas nossas cidades, à arquitectura urbana ou, caso se queira, ao urbanismo de pormenor; é daqui que irá resultar o carácter identitário, a força de atractividade, o interesse da paisagem urbana; e é essencial sublinhar que isto só se faz com um verdadeiro saber fazer da relação entre edificado e espaço livre numa perspectiva que privilegie a continuidade urbana e uma dupla intenção de funcionalidade e “visualidade” do desenho (uma qualidade de desenho coerente com o local e com o habitante).
O texto de Adrian M. Joyce, acima citado, chama também a atenção para a questão da variabilidade das situações e das soluções e é também desta matéria que decorre o interesse dos recantos de vizinhança, das sequências urbanas, dos bairros e conjuntos e, finalmente, das próprias cidades assim compostas. E no final o texto acima foca-se a questão do como verter a síntese de tudo isto em instrumentos aplicáveis à regulação do urbano, regulação esta que é essencial, mas que não pode nunca cercear a tal variabilidade e a tal qualidade, mas que deveria, também, garanti-las, a bem da cidade e dos cidadãos.
- "As operações de renovação baseadas no zoning e no arejamento do tecido quebraram a continuidade da rede de espaços públicos e muitas vezes equiparam, mas não arranjaram/resolveram” (Sablet, p. 28).
- “A 1ª geração de espaços colectivos: ou a mediocridade sempre viva, o vazio grandiloquente, o espaço urbano lixo/resíduo, a arquitectura de cidade que se reduz e reduz o espaço público a volumes cortados pela arquitectura (contra-senso semântico e resultado morno) e às super-formas” (Sablet, p.31).
- “A 2ª geração de espaços colectivos: ou o miserabilismo, o culto intelectual do vazio monumental, a tradição clássica requentada, a grandiloquência e o pastiche monumentais exaltando o desprezo pela rua” (Sablet, p. 32).
- “A 3ª geração de espaços colectivos: ou a boa consciência, os redutores de escala recriam espaços com volumes interessantes, mas os grandes planos continuam a ser espaços de circulação, um princípo de esforços para modelar sub-espaços entre os imóveis, mas ficamos pela organização da Carta de Atenas, e o reduzido e medíocre mobiliário tem um papel muito elementar” (Sablet, p. 33).
- “A 4ª geração de espaços colectivos: ou as atribulações da adolescência, a rua pedonal deixa de ser um modelo uniforme, os abrigos abrigam algo, a vegetação já não está «encaixada», a iluminação pública tem o seu papel, já não se trata de vias pedonais alinhadas, a água já não é elemento «estrangeiro»” (Sablet, p. 34).
- “A 5ª geração de espaços colectivos ou a metamorfose urbana: Espaço verde? Praça? Fonte? O que importa. Concepção global e interpenetração das funções criam urbanidade” (Sablet, p. 36).
Será esta urbanidade, concebida a partir de uma concepção global e da interpenetração das funções o objectivo da defendida e re-interpretada Arquitectura Urbana, feita das tais múltiplas e estimulantes relações, que deverão estar sempre claramente ao serviço do homem habitante e privilegiando, designadamente, os grupos mais sensíveis, como as crianças e os idosos, até porque quando se faz uma cidade que é, assim, estruturalmente, mais amigável, se faz, também, uma cidade mais cívica, culta e rica em termos de conteúdos.
“O arquitecto é um ser que caminha sobre a espuma das paisagens
e vive encantado pelas sombras que sobrevivem à flor da relva exactamente
no lugar onde as outras pessoas nunca passam
...”
Notas
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Infohabitar, Ano VIII, n.º 412
Os percursos de uma cidade habitada e a defesa da Arquitectura Urbana
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
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