quinta-feira, outubro 18, 2012

412 - Os percursos de uma cidade habitada e a defesa da Arquitectura Urbana - Infohabitar 412

Infohabitar Ano VIII, N.º 412

ARTIGO XXII DA SÉRIE HABITAR E VIVER MELHOR
  Os percursos de uma cidade habitada e a defesa da Arquitectura Urbana
António Baptista Coelho

Em primeiro lugar importa registar que se considera que o jogo das relações entre rua e casa e entre exterior e interior é, mais do muitos outros aspectos que podem (e devem) ser tomados em conta no que se refere à matéria urbanística, o verdadeiro ligante de uma intervenção urbana e de habitar consistente em termos de presente e futuro e em termos de interesses humanos e sociais.
E desde logo se pode apontar que o principal objectivo é criar e melhorar tais relações qualificando-as como verdadeiros “percursos íntimos, coesos e ricos entre (cidade) «rua» e «casa»”, e é esta uma matéria específica, apenas apontada neste artigo, e que terá de ficar para outras oportunidades em termos de aprofundamento da relação com sinal “superior” e associada à relação das vizinhanças com “a cidade mais central”, um conceito que é ele próprio muito estimulante e gerador de discussão, pois a cidade tem de ser policêntrica e tem de viver, também, nas vizinhanças de proximidade e nos seus pólos conviviais mais intensos e/ou alargados.




Em segundo lugar um brevíssimo comentário sobre a condição de, quando, se reflectir, aqui, em outros artigos desta série, sobre “as medidas do homem e as medidas da cidade”, matéria que se considera essencial na abordagem e na devida caracterização dos tais percursos vivos que devem relacionar interiores e exteriores de vizinhança, se usar o termo “medidas”, não apenas numa perspectiva dimensional e de bases para-dimensionais, mas também numa perspectiva fundamental de definição de escalas de intervenção adequadas e caracterizadoras e, ainda, mesmo de apontamento de recomendação de cuidados e acções preferenciais tando em vista o bem-estar humano e uma adequada e rica vivência/utilização citadina; matérias estas consideradas de grande importância, designadamente, no século das cidades, das mega-cidades e de um mundo mega-urbanizado.
Em terceiro lugar sublinhar que quando se comentarem neste nesta série de artigos outras matérias de desenvolvimento desta temática dos “percursos íntimos, coesos e ricos entre (cidade) «rua» e «casa»”, que poderá ser mais sintetizada, por exemplo, referindo-nos, por exemplo, simplesmente, aos “percursos de uma cidade habitada”, estaremos a abordar diversas matérias do projecto urbano e residencial de pormenor, designadamente, tendo em conta as características mais interessantes a favorecer:
  • nos “pontos e zonas de ligação entre exteriores de uso público e interiores dominantemente domésticos;
  • nas ruas e nos quarteirões associados a vizinhanças de proximidade;
  • nos sítios de passagem, transição e vivência que são “motivos” essenciais de uma cidade viva e estimulante;
  • nos sítios singulares e com carácter assinalável sem os quais nunca houve nem haverá cultura urbana;
  • no leque de espaços de percurso e de identidade que constituem a vital rede capilar da vida citadina, ela própria fundação do carácter maior da respectiva cidade;
  • e, finalmente, nas próprias, múltiplas e variadas relações, privilegiadas e mesmo caracterizadoras, que em todo este quadro físico se tem de estabelecer com os mais diversos tipos e soluções de edifícios; matéria última esta que consideramos essencial na reflexão sobre uma fundamental diversidade de oferta de soluções de habitar domésticas e urbanas.
Serão, assim, estas as matérias a tratar e comentar, sempre que possível, sublinhando-se que a ideia central nesta reflexão é sublinhar a importância de se passar, hoje em dia, decididamente, de uma fase disciplinar, que foi longa, em que a Arquitectura de edifícios e o Urbanismo eram considerados e abordados como disciplinas sensível ou até claramente distintas, o que frequentemente resultava mesmo em serem “opostas” em termos de objectivos e resultados fundamentais, para passarmos a um tempo em que Arquitectura e o Urbanismo se fundam totalmente e onde, nesta fusão, se entenda o papel central dos referidos relacionamentos, relações, transições, limiares, fusões tipológicas de edificado e espaço exterior, percursos estruturantes, pólos estratégicos, etc. ; e em poucas palavras no primado da do relacionameno mútuo e afirmado de espaços e ambientes, numa arquitectura urbana estratégica e atraentemente integrada.




Falta talvez referir que o o homem, e as suas necessidades e exigências, consideradas de uma forma ampla e verdadeira, e portanto não “fundamentalisticamente” racionalizadas, tem de ser o centro e objectivo-base de toda esta reflexão, havendo ainda que dar o devido relevo aos homens mais sensíveis, que são os idosos e as crianças.
Falta talvez também registar que as actuais tendências de uma cidade mega, densa e mediana ou fortemente informal, como quadro do presente e do futuro próximo, é uma situação que torna mais complexas e críticas as questões acima apontadas; e repete-se: mais complexas, mas também mais críticas e tendencialmente muito urgentes.
Também falta referir que tudo isto se liga à necessidade de passarmos a tratar de Arquitectura Urbana “a sério”, numa natural mas forte relação exterior/interior, projecto do edifício/projecto do espaço exterior, uso público/uso privado ou comum, intervenção/paisagem/ambiente, matéria que, parecendo à primeira vista relativamente pacífica, não o é, pois, designadamente, boa parte das escolas de Arquitectura são escolas de Arquitectura da edificação e até da edificação tendencialmente isolada.
E finalmente, e decorrendo bastante directamente desta última matéria da Arquitectura Urbana (AU), esta mesma AU tem de começar a ser tomada como verdadeira matriz tipológica do edificado e, também provavelmente, e em última instância, quase o contrário também deverá ser considerado, numa perspectiva de um edificado que, de tão denso e “contínuo”, possa também ele ser em boa parte matriz da referida e reinterpretada Arquitectura Urbana.
Apenas para proporcionar algumas leituras em paralelo, que se julga serem sempre úteis, cita-se, em seguida, uma pequena parte de um, desenvolvido em Fevereiro de 2005 por Adrian M. Joyce, no âmbito de um grupo de trabalho do Architect’s Council of Europe, Conseil des Architectes d’Europe, da European Construction Technology Platform (ECTP); e comenta-se, sequencialmente esta citação: (1)
“As cidades são constituídas por edifícios, ruas, praças, jardins, e pelos espaços entre eles, e são suportadas por infra estruturas de serviços e de transportes. As relações mútuas, ou a arquitectura, destes vários elementos dá carácter à cidade. A qualidade da sua arquitectura tem um impacto fundamental no bem-estar daqueles que vivem e trabalham nas cidades. É necessário perceber melhor essas relações e as diversas formas em que os seus impactos são sentidos em situações urbanas. O desafio será então integrar as conclusões resultantes em políticas de desenvolvimento, decisões de ordenamento e no próprio desenho das cidades e dos seus componentes”.




E este desafio é “inteiro” no conceito que põe em relevo, trata-se da importância que é fulcral atribuir, hoje, nas nossas cidades, à arquitectura urbana ou, caso se queira, ao urbanismo de pormenor; é daqui que irá resultar o carácter identitário, a força de atractividade, o interesse da paisagem urbana; e é essencial sublinhar que isto só se faz com um verdadeiro saber fazer da relação entre edificado e espaço livre numa perspectiva que privilegie a continuidade urbana e uma dupla intenção de funcionalidade e “visualidade” do desenho (uma qualidade de desenho coerente com o local e com o habitante).

O texto de  Adrian M. Joyce, acima citado, chama também a atenção para a questão da variabilidade das situações e das soluções e é também desta matéria que decorre o interesse dos recantos de vizinhança, das sequências urbanas, dos bairros e conjuntos e, finalmente, das próprias cidades assim compostas. E no final o texto acima foca-se a questão do como verter a síntese de tudo isto em instrumentos aplicáveis à regulação do urbano, regulação esta que é essencial, mas que não pode nunca cercear a tal variabilidade e a tal qualidade, mas que deveria, também, garanti-las, a bem da cidade e dos cidadãos.
E quase se termina este artigo com as palavras de um urbanista que também falou destas matérias, imagine-se já há em 1991, e fazendo uma excelente história-síntese das intervenções nos espaços públicos; trata-se de Michel Sablet que refere, num livro que se recomenda e que manteve toda a actualidade: (2)
  • "As operações de renovação baseadas no zoning e no arejamento do tecido quebraram a continuidade da rede de espaços públicos e muitas vezes equiparam, mas não arranjaram/resolveram” (Sablet, p. 28).
  • “A 1ª geração de espaços colectivos: ou a mediocridade sempre viva, o vazio grandiloquente, o espaço urbano lixo/resíduo, a arquitectura de cidade que se reduz e reduz o espaço público a volumes cortados pela arquitectura (contra-senso semântico e resultado morno) e às super-formas” (Sablet, p.31).
  • “A 2ª geração de espaços colectivos: ou o miserabilismo, o culto intelectual do vazio monumental, a tradição clássica requentada, a grandiloquência e o pastiche monumentais exaltando o desprezo pela rua” (Sablet, p. 32).
  • “A 3ª geração de espaços colectivos: ou a boa consciência, os redutores de escala recriam espaços com volumes interessantes, mas os grandes planos continuam a ser espaços de circulação, um princípo de esforços para modelar sub-espaços entre os imóveis, mas ficamos pela organização da Carta de Atenas, e o reduzido e medíocre mobiliário tem um papel muito elementar” (Sablet, p. 33).
  • “A 4ª geração de espaços colectivos: ou as atribulações da adolescência, a rua pedonal deixa de ser um modelo uniforme, os abrigos abrigam algo, a vegetação já não está «encaixada», a iluminação pública tem o seu papel, já não se trata de vias pedonais alinhadas, a água já não é elemento «estrangeiro»” (Sablet, p. 34).
  • “A 5ª geração de espaços colectivos ou a metamorfose urbana: Espaço verde? Praça? Fonte? O que importa. Concepção global e interpenetração das funções criam urbanidade” (Sablet, p. 36).
Será esta urbanidade, concebida a partir de uma concepção global e da interpenetração das funções o objectivo da defendida e re-interpretada Arquitectura Urbana, feita das tais múltiplas e estimulantes relações, que deverão estar sempre claramente ao serviço do homem habitante e privilegiando, designadamente, os grupos mais sensíveis, como as crianças e os idosos, até porque quando se faz uma cidade que é, assim, estruturalmente, mais amigável, se faz, também, uma cidade mais cívica, culta e rica em termos de conteúdos.
Mas deixem fazer uma última reflexão sobre esta matéria, que traduz a necessidade vital de tudo isto passar a ser bem “legível” por todos e não apenas matéria de espacialistas, pois só assim poderemos dar o necessário salto qualitativo; quando todos exigirmos uma cidade habitada assim feita.
Pois não podemos esquecer que, tal como diz o poeta José António Gonçalves (3):

“O arquitecto é um ser que caminha sobre a espuma das paisagens
e vive encantado pelas sombras que sobrevivem à flor da relva exactamente
no lugar onde as outras pessoas nunca passam
...”

Notas
(1) António Baptista Coelho, “As cidades são os locais mais desejáveis para viver e trabalhar II, objectivos/desafios e alguns comentários”, artigo editado em 17 de Maio 2005 na revista Infohabitar.
(2) Michel de Sablet, “Des espaces urbains agréables à vivre – places, rues, squares et jardins”, 1991.
(3) Sobre o grande poeta madeirense José António Gonçalves, não conseguimos, infelizmente, identificar a obra específica, entre os seus muitos livros de poesia, onde está editado o texto onde se integra a citação com que se termina este artigo, no entanto deixam-se três links para a obra deste grande escritor:
http://manuelcarvalho.8m.com/biografiagoncalves.html
http://manuelcarvalho.8m.com/jag1.html
http://poesiaseprosas.no.sapo.pt/jose_antonio_goncalves/poetas_joseantoniogoncalves01.htm
Notas editoriais:
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Infohabitar a Revista do Grupo Habitar

Infohabitar, Ano VIII, n.º 412

Os percursos de uma cidade habitada e a defesa da Arquitectura Urbana

Editor: António Baptista Coelho

Edição de José Baptista Coelho

Lisboa, Encarnação - Olivais Norte

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