Edita-se, em seguida, um texto que escrevi como comentário de apresentação ao livro de Sérgio Fazenda Rodrigues, intitulado "A Casa dos Sentidos - Crónicas de Arquitectura", cuja primeira edição se encontra já quase esgotada, mas que poderá ser ainda encontrado nas livrarias. A edição é da arqcoop e os desenhos que se juntam no artigo, que se segue, são apenas alguns daqueles com que o autor abre as suas crónicas.
O editor do Infohabitar
António Baptista Coelho
Fig. 01: a capa de "A Casa dos Sentidos - Crónicas de Arquitectura"
Escreveu Joaquín Arnau que "a soma dos hábitos constitui a habitação" e que "a habitação é a função que propicia e decanta a Arquitectura" ("72 Voces para un Diccionario de Arquitectura Teórica", Celeste Ediciones, 2000). Considera-se, assim, o habitar, provavelmente o tema-base ou central da Arquitectura, mas de uma Arquitectura emocionada.
Esta é uma das perspectivas sobre as quais é possível fazer uma aproximação a este livro de Sérgio fazenda Rodrigues, um livro de um habitante, da casa e da cidade, aliás arquitecto, aliás também alguém que desenha, e que fala sobre esse tema central da Arquitectura que é o habitar, mas exactamente numa perspectiva de habitante, um habitante que marca e é marcado pelos seus entornos, como deve acontecer com todos os habitantes; embora, neste caso, haja que contar com uma sensibilidade e uma base de conhecimentos específicos, que depois acabam por nos ser devolvidos em textos de grande clareza e agradabilidade de leitura; aspecto que considero de grande importância como à frente se explicará.
Nestas áreas da leitura e da interacção com o espaço obrigatoriamente muito amplodo habitar, onde a cidade deve ser uma casa grande e esta uma pequena cidade, não podemos esquecer que, tal como escreveu Christian Norberg-Schulz, "a arquitectura se preocupa com algo mais do que necessidades práticas e economia. Ela trata de significados. Os significados derivam de fenómenos naturais, humanos e espirituais, e são experimentados como ordem e carácter. A arquitectura traduz estes significados em formas espaciais. As formas espaciais em arquitectura não são nem Euclidianas nem Einsteinianas. Em arquitectura as formas espaciais significam lugar, percurso e domínio, isto é, a estrutura concreta do ambiente humano. Por isso a arquitectura não pode ser satisfatoriamente descrita através de conceitos geométricos e semiológicos. A arquitectura deve ser entendida em termos de formas significantes."
E temos assim, aqui, salientada a importância dos múltiplos e ricos sentidos que se podem e devem viver nas casas e cidades bem habitáveis, desde que estas sejam verdadeiras casas de sentidos, de sentimentos e de carácter. E seguindo um ponto de vista complementar há que sublinhar que é tempo de a habitação não ser mais considerada como um bem de consumo que responde a imperativos funcionais, mas, essencialmente, como um bem cultural; pois o habitar deve deslocar-se, tal como diz Jean Nouvel, “para o domínio dos bens de consumo culturais, domínio para o qual está a evoluir realmente uma parte da sociedade.”
Numa outra perspectiva, de certa forma gémea daquela que foi referida, podemos considerar que habitar melhor casas e cidades marcadas por vizinhanças e sequências de vistas e de espaços estimulantes é uma condição que nos proporcionará, provavelmente, uma relação mais estreita com a expressão artística num sentido amplo, e, como reflexo deste cenário de vida estimulante, muito provavelmente a própria arte urbana, nas suas diversas expressões e presenças bem próximas dos espaços do habitar, é muito provavelmente condição importante para um viver com mais satisfação, com mais sentidos e com mais sentido.
Por tudo isto não devemos ter quaisquer dúvidas de que há muito mais num habitar amplo e bem qualificado para além das matérias racionais e funcionais, e está na hora de aprofundarmos e debatermos esse "muito mais" pois, por um lado já se viu onde essa parcialidade funcional na abordagem do habitar nos levou, às tantas cidades e casas sem sentidos e com muito pouco sentido, e porque se há uma altura adequada para avançarmos nestas matérias, é agora neste nosso novo século das cidades, das grandes cidades e de tanto espaço urbano sem sensibilidade, e sem identidade; caso contrário temos e teremos um presente e um futuro muito complicados.
Importa ainda considerar que numa vida actual marcada pela falta de tempo para quase tudo, pela absurda normalização e descaracterização dos espaços domésticos, e pela vivência autista nesses espaços, de costas viradas à convivência urbana, num século que se iniciou sem ideologias e com a ideia de que certas qualidades, como o convívio, a solidariedade e até a própria capacidade poética, seriam meras perdas de tempo sem sentido; e que afinal acorda para problemas de qualidade de vida diária que muitos pensavam serem já fantasmas do passado, é talvez a boa altura de nos determos sobre o que pode ser uma verdadeira qualidade do nosso habitar no dia-a-dia e nos nossos cenários de vida, um habitar que tem de englobar vizinhança e cidade, e que tem de contar com uma expressiva dimensão qualitativa e extensa, profunda e diversificadamente sensível.
Fig. 02: um dos desenhos de Sérgio Fazenda Rodrigues, que acompanham a sua "Casa dos Sentidos"
Mas como tratar estas matérias sem nos especializarmos em tantos temas do saber ou sem nos transformarmos naquilo que Eduardo Cintra Torres definiu, há poucoss dias, no jornal Público (3 Dez 2010) como "tudólogos" - "especialistas em tudo" e que tantas vezes tão pouco sabem?
Temos por um lado de encontrar os “postos avançados” das diversas áreas de conhecimento que estabeleçam contactos privilegiados com as áreas da arquitectura do habitar, e devemos, nós próprios, arquitectos e interessados por estas matérias artísticas, arquitectónicas e urbanas, identificar as temáticas que mais se ligam a uma ampla, rica e sensível satisfação de quem habita, por um lado, e a uma gradual e consistente construção de uma cidade digna e estimulante, procurando, neste caminho, deixar de lado uma nossa eventual formação disciplinar, mais específica ou especializada, e usar, essencialmente, as ferramentas operacionais de que dispomos em termos de leitura aprofundada de espaços e ambientes, colocando-as ao serviço de habitantes e moradores, para daí retirar ideias, apontamentos e caminhos sobre como avançar nessas cidades e casas dos sentidos de todos e que cumpram um sentido comum de grande qualidade cívica e convivial.
Naturalmente, o livro aqui apresentado - "A Casa dos Sentidos - Crónicas de Arquitectura" - é exemplo do bom uso dessas ferramentas de leitura e de divulgação do bom habitar.
Naturalmente que há franjas de actividade que são privilegiadas neste tipo de abordagem, e nelas há que salientar, seja os ficcionistas e jornalistas que trabalham bem nas áreas do habitar casas e cidades, seja os arquitectos que têm algum à-vontade no construir de crónicas e textos sobre esses temas, mas visando um público o mais amplo possível.
O Sérgio Fazenda Rodrigues encontra-se neste último grupo e junta, ainda, a este perfil de divulgador dos aspectos qualitativos do habitar, o sentido da ilustração destas qualidades; matéria que considero ser de grande valia, pois, por um lado, custa-me sempre muito a entender o divórcio entre arquitectar e desenhar, e tenho ainda a certeza que esta aliança corresponde, neste caso a uma relação forte e genuína.
E assim o autor escreve e desenha sobre a arquitectura e o cinema, museus e cidades, portanto memórias vivas; penumbras e fronteiras do olhar, o cheiro das casas e das cidades, toques sedutores, música e arquitectura, o sentido íntimo das escadas dos muros e dos materias, limites, espaços e comportamentos, o sentido do fogo, coisas guardadas, reunião à volta da mesa, o corpo e a arquitectura, cafés habitados, maquetas e presépios, sótãos caves e memórias, e luz e vistas das cidades.
O autor ajuda-nos, assim, a encarar o habitar numa renovada e urgente perspectiva: como "objecto mais adequado para experimentar ideias e afirmar conceitos," um pouco como apontou Richard Weston (1):
. como coisa/sítio "entre a realidade e o desejo, entre o corpo e o sonho, entre o possível e o desejado", como pormenorizou Vicente Verdú (2);
. e um habitar que nunca deverá ser apenas o que tantos de nós designam como boas casas, mas realidades também caracterizado "pelo seu «poder espacial» e pelos «aspectos arquitectónicos» que coloca e a que respondem”, tal como sugere Kazuhiro Kojima (3).
E tudo isto se liga a uma afirmação de Leonardo Benevolo e Benno Albretch que não consigo deixar de citar nas minhas últimas intervenções e que sublinha que “os desafios a enfrentar no mundo de hoje não dizem apenas respeito às quantidades e aos números, mas também, – e sobretudo – à complexidade e à subtileza.” (4)
Uma afirmação que afinal faz salientar que os bons espaços de habitar têm de aliar aos aspectos básicos de funcionalidade, o desenvolvimento de uma caracterização arquitectónica residencial que os torne de certa forma únicos em termos de imagens e de relações de imagens e em termos de espaços e ambientes e de relações entre espaços e ambientes; casas multisensoriais e casa cheias de sentido! Poderemos concluir.
Fig. 03: outro dos desenhos de Sérgio Fazenda Rodrigues, que acompanham a sua "Casa dos Sentidos"
E, afinal, casas bem distintas daquelas "caixas sobrepostas onde vivem os habitantes da grande cidade" daquelas caixas nas quais "o número da rua e a designação do andar fixam a localização do nosso «buraco convencional»", sem "espaço à volta dela, nem verticalidade...", sem "raiz", todas estas, características daquilo que Gaston Bachelard designou como um "alojamento refugiado num andar" e sem "os princípios fundamentais para distinguir e clarificar os valores da intimidade". (5)
Porque habitar tem de ser, verdadeiramente, sentir, marcar, apropriar e desenvolver um contexto caloroso, exterior e interior, um contexto bem integrado num viver a cidade das proximidades e a cultura expressivamente urbana e diversificada, numa vivência que tem de ser integrada e natural, e em contextos que nos animem através de conjuntos de aspectos que nos falem, em cada sítio, de um habitar “único”, não monótono, não mudo e sempre em relação estreita e dialogante com a cidade. Todos estes, aspectos que são determinantes num habitar multisensorial que verdadeiramente nos entusiasme, porque não deveríamos pedir ao habitar menos que isso: que nos entusiasme! E para tal precisamos de muitas casas dos sentidos!
Notas:
(1) Richard Weston, “A casa no século vinte”, 2002, p.7.
(2) Anatxu Zabalbeascoa, “La casa del arquitecto”, Ed. Gustavo Gili, p.6, 1995.
(3) Kazuhiro Kojima, “What is a «Good House»”, em “Contemporary japanese houses, 1985-2005”, pp. 14 e 16.
(4) Leonardo Benevolo e Benno Albretch, “As Origens da Arquitectura”, 2002, p.9.
(5) G. Bachelard, "La Poétique de l'Espace", p. 30.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Infohabitar n.º 324, 12 de Dezembro de 2010
1 comentário :
euu preciso desse livro por favor onde posso encontrar
Enviar um comentário