Relação entre o Habitar e a História
I
Sobre a importância da relação entre o Habitar e a História: uma primeira reflexão informal (que muito se gostaria que pudesse ajudar a despoletar outros textos)
O habitar europeu de hoje, neste início de novo século, tão globalizado, é um habitar sedento de adequadas raízes históricas e culturais e sedento de uma inovação fundamentada; e sobre esta matéria aponto, de seguida e muito brevemente, algumas ideias, sublinhando, desde já, que aqui se considera o habitar com o sentido verdadeiro que vai da sala de estar de cada um, às ruas do nosso bairro e à praça da cidade que é de todos.
Muitos autores estão a convergir em matérias que têm a ver com os assuntos ligados a uma arquitectura caracterizada e viva, seja na matéria do “lugar” seja na matéria das raízes históricas, temas estes bem conjugados em novas e velhas cidades plenas de interesse urbano e de uma vitalidade habitacional bem disseminada e diversificada. Um interesse que até paga, cada vez mais, em termos da chamada indústria cultural.
Fig. 01
Outro aspecto a considerar é que para se desenvolverem uma habitação e um espaço urbano humanizados, que é provavelmente aquilo de que hoje urgentemente precisamos, muito se retira do estudo da história do habitar, em geral, e especificamente da história das tipologias do habitar, designadamente, nas relações entre níveis físicos, entre interior e exterior, e entre habitação, vizinhança e cidade. O caminho poderá ser, assim, o da procura de uma tipologia formal e funcionalmente rica, que seja historicamente consistente, caracterizada por uma perspectiva por um lado extremamente ligada à prática dos habitares e dos sítios habitados, e, por outro lado, muito “construtiva ou orgânica”, solta de preconceitos, mas que integre a experiência da história do habitar.
Sobre estas matérias Escreveu Steen Eiler Rasmussen, na sua “Arquitetura vivenciada” (1), que “só o homem constrói habitações que variam de acordo com requisitos, clima e padrão cultural... ele também avança no jogo da caverna, para métodos cada vez mais refinados de espaços fechados. Pouco a pouco ele empenha-se em dar forma a tudo o que o cerca.”
Fig. 02
E talvez que no agressivo e acelerado mundo de hoje devamos reinventar soluções de protecção e de reforço da individualidade e do sossego vicinal e familiar pois, hoje, os inimigos estão dentro dos muros da cidade; e, no mundo de hoje, onde imperam o individualismo e a falta de oportunidades de convívio, esses caminhos de autodefesa têm de ser muito desenvolvidos com muitos cuidados, pois não podem passar por um autista enclausuramento em recintos exclusivos, anti-cívicos e socialmente estéreis. Há, portanto que (re)inventar soluções que aliem individualidade, sossego, convívio e cidade; e conhecer a história do habitar e da cidade é fundamental nesse (re)inventar de soluções.
Há ainda um outro aspecto, que decorre, em boa parte, do que acabei de dizer, acerca da reinvenção e da descoberta de soluções renovadas para novos problemas e novas exigências, e é um aspecto que, afinal, tem muito a ver com a necessidade de sermos coerentes com a nossa cultura: é que no referido mundo globalizado de hoje e na muito próxima cidade global temos, obrigatória e urgentemente, que dar toda a atenção às lições da nossa pequena história urbana e nesta matéria podemos reflectir um pouco sobre o que querem, de facto, dizer alguns factos, entre os quais se salientam os seguintes: que o pensamento artístico terá apenas cerca de 25.000 anos; que uma das primeiras pequenas cidades foi Jericó, com cerca de 2.000 habitantes em 5 hectares, há apenas 10.000 anos; que há cinco séculos atrás, na Europa, apenas Paris, Nápoles e Istambul ultrapassavam os cento e cinquenta mil habitantes; e que há 50 anos São Paulo tinha três milhões de habitantes, enquanto hoje tem mais de 16 milhões, o que quer dizer que a “super-urbanização” e as mega-cidades apenas acabaram de surgir na história do homem.
Portanto, devemos interiorizar que não podemos saber lidar com o tecido urbano das mega-cidades, em boa parte marcadas pela massificação e pela desumanização. Mas não podemos ficar reféns de uma tal realidade, devemos usá-la no sentido da sistemática aplicação de um conhecimento gradualmente consolidado, duvidando sistemática e sabiamente de falsos profetas cheios de certezas; e temos de aprender constantemente com a prática e com tudo aquilo que pudermos apurar dessa pequena história urbana e do habitar – desde os aspectos mais estruturais aos mais formais e ligados à imagem urbana.
E aqui, por exemplo devemos ter presente a verdadeira magia que se vive, tantas vezes, em velhos bairros, onde as estreitas vielas são determinadas pelo arranjo espacial das portas de entrada; e a pequena rua era e é, assim, directamente referida à escala do homem – a rua ligada à “presença ampliada do homem”, como escreve Rudolf Arnheim. Hoje tudo é bem diferente pois devido às crescentes exigências dos sistemas de transportes a relação espacial entre edifícios e ruas alterou-se; mas será esta uma fatalidade? Será que não é possível reaplicar e, de algum modo, reinventar a relação entre os vitalizadores acessos aos edifícios e os eixos de continuidade urbana?
Nos muitos séculos de cidade pré-industrial o elemento básico de uma planta urbana não era a rua ou estrada, mas as unidades de habitação e as praças públicas.
Fig. 03
Importa, assim, considerar a(s) história(s) da evolução do habitar (n)a cidade e repensá-la(s) na cidade de hoje, que em muitos casos começa a ser pós-industrial. E nesta forma de pensar e de actuar não faz, evidentemente, qualquer sentido apostar em “tábuas rasas”, quando há informação útil referida a casos tipológicos alguns com muitas centenas e mesmo milhares de anos de vivência e outros, os mais inovadores, com aplicações feitas já praticamente durante um período de cerca de 100 anos. Mas nesta forma de pensar e actuar também não faz sentido optar por inovações pouco coerentes porque mal fundamentadas, pois estamos a avançar em matérias vitais para a cidade habitada e para o verdadeiro bem-estar dos cidadãos.
Apontam-se, em seguida, oito aspectos estruturadores da relação entre habitar, tipologias e humanização:
(i) O “filão” tipológico tem de ser considerado de uma forma completa e historicamente coerente, pensa-se, naturalmente em vizinhanças próximas completas que respondam bem a amplos leques de necessidades habitacionais e urbanas.
(ii) Considerar um futuro marcado por grande diversidade de soluções domésticas e urbanas pormenorizadas; o que tem potenciais vantagens para a visada apropriação e a humanização das soluções de habitar.
(iii) Ter presente quer as necessidades humanas mudam mais superficialmente do que pode parecer, encontrando-se exemplos históricos de tipologias e morfologias habitacionais, que podem ter oportunidade nos dias de hoje. Um exemplo é dado pela “casa urbana oriental” , estruturada por pátios, uma solução com mais de 6.000 anos ainda usada em muitas cidades da Ásia, África e América do Sul; um outro exemplo, este no interior da casa, refere-se às “engenheiras domésticas” que estruturaram muitos dos aspectos da funcionalidade da casa moderna logo em 1850; e depois, o modernismo, com os seus mínimos funcionais.
Fig. 04
(iv) Avançar numa construção tipológica, feita com um “espírito aberto”, e duplamente iniciada: seja na escala do fogo, e seguindo “para cima”; seja na escala da cidade/bairro, e seguindo “para baixo”. Construída com elementos de ligação, limiar, separação e transição e marcada por cada sítio “único”.
(v) Aprofundar a ligação entre densidade, convivialidade e forma urbana com escala humana e apropriável, numa cidade que não seja rígida e automóvel-dependente. Ao nível dos edifícios a apropriação cresce com a redução da dimensão do respectivo conjunto habitacional e urbano e do seu número de fogos, em soluções baixas, densificadas e com continuidade urbana; afinal aquilo que Henri Lefebvre qualifica como sendo desejado por muitos habitantes, e que é o unifamiliar num contexto colectivo, o espaço apropriável com as vantagens práticas e conviviais da vida social organizada.
(vi) Criar tipologias residenciais e urbanas verdadeiramente amigáveis, pois, tal como defende Jaime Lerner, a cidade tem de começar a ser novamente um sítio verdadeiramente amigável (Catarina Selada e Álvaro Santos, “O renascimento do papel das cidades”, Público - Economia, 5 Abril 2004.) E, para tal, uma das principais batalhas tem de ser travada na configuração e caracterização de tipologias residenciais e urbanas.
(vii) Ligar a habitação à vizinhança citadina, pois é muito mais motivador fazer, mais livremente, a ligação entre tipos de fogos e tipos de vizinhanças de proximidade, do que continuar a estar cativo de uma relativa ditadura de tipos de fogos, tipos de edifícios e tipos de vizinhanças, afinal, tal como escreveu Francisco de Gracia “a nova tipologia tende a ligar edifício e morfologia urbana numa fortíssima relação com o lugar unicum”.
(viii) E, por fim, a resposta doméstica deverá ser o desenvolvimento da adaptabilidade e da funcionalidade domésticas, e uma incorporação ponderada das inovações, mas não uma “casa do futuro” que seja, essencialmente, uma casa de “gadgets”
Fiz aqui um breve e imperfeito esboço temático sobre algumas matérias do habitar e sobre a utilidade que o conhecimento da história tem para o seu aprofundamento, desde que se vise uma qualidade do habitar ao serviço de uma cidade culta e uma cidade amiga de quem a habita; e para terminar esta reflexão cito uma recente afirmação de Leonardo Benevolo e Benno Albretch (2) que nos dizem que:
“Os desafios a enfrentar no mundo de hoje não dizem apenas respeito às quantidades e aos números, mas também, – e sobretudo – à complexidade e à subtileza.” E os autores apontam, depois, que “só o leque completo dos resultados em que a excelência qualitativa aflora das maneiras mais diversas e imprevistas, dá uma ideia justa dos recursos da mente humana, e ajuda a transformar o passado, de prisão ou labirinto, em horizonte aberto a novas criações.”
É isso, afinal, que há a ganhar com o encontro entre gentes da História e do Habitar, avançar um pouco numa perspectiva de transposição do passado num horizonte aberto a novas criações.
Sobre estas matérias que integram o rico e vital filão tipológico da História para o Habitar de hoje não é possível deixar aqui de sublinhar:
- a extraordinária obra de Norbert Schoenauer, “6.000 años de de hábitat: De los poblados primitivos a la vivienda urbana en las culturas de oriente y occidente” (refiro aqui uma edição espanhola de 1984 a edição original é de 1981 e julgo haver já uma outra edição no Brasil);
- e ainda nesta matéria também sublinho uma obra que terá passado, injustamente, um pouco desapercebida entre nós e que é o Atlas de Arquitectura (1 e 2), de Werner Müller e de Gunther Vogel, que teve uma última edição espanhola na Alianza Editorial, nos Alianza Atlas em 2002.
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 1 de Novembro de 2007.
António Baptista Coelho
Edição por José Baptista Coelho, em 2 de Novembro de 2007.
Notas:
(1) Steen Eiler Rasmussen, “Arquitetura Vivenciada”, 1998 (1986), p.32.
(2) Leonardo Benevolo e Benno Albretch, “As Origens da Arquitectura”, 2002, pp.10 e 13.
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