- Infohabitar 160
Raúl Hestnes Ferreira, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra
“(Hestnes Ferreira) – Aquela ideia da casa, muito ligada até aos românticos, e sei lá, ao Thoreau, o tipo que vai para a floresta, corta a árvore, arranja as pranchas, faz a sua casa e ali, ali é a sua casa, é uma ideia que continua, a estar presente, culturalmente ...
(Manuel Vicente) – Afinal uma casa é boa para uma família quando for boa para todas, não é? Mas isto não é o elogio do anónimo mas antes da extrema qualidade, a universalidade pela qualidade e não a universalidade pelo «éffacement», pelo apagar.
(Bravo Ferreira) – O neutro ... o neutro é chato em qualquer situação, é sempre cinzento...
(Manuel Vicente) – Do neutro ninguém se apropria... uma pessoa só se apropria daquilo que ama. Uma pessoa não pode amar uma coisa que não seja nada.
(Hestnes Ferreira) – E quando visitamos uma casa do século passado e ficamos deslumbrados com certo tipo de espaços e gostamos mesmo de ir para lá, isso é mesmo um sintoma de que aquilo transcendeu a família para quem foi feito, continua a sugerir e se calhar já foi utilizada de mil e uma formas, já teve mil e uma jarras diferentes em mil e uma mesas diferentes.
(Bravo Ferreira): restou-lhe sempre a qualidade, e essa é que está sempre.”
(Raul Hestnes Ferreira (HF), Manuel Vicente (MV) e Vicente Bravo Ferreira, “Conversa à roda de uma casa”, Arquitectura, n.º 129, 1974, pp. 36-40).
(Manuel Vicente) – Afinal uma casa é boa para uma família quando for boa para todas, não é? Mas isto não é o elogio do anónimo mas antes da extrema qualidade, a universalidade pela qualidade e não a universalidade pelo «éffacement», pelo apagar.
(Bravo Ferreira) – O neutro ... o neutro é chato em qualquer situação, é sempre cinzento...
(Manuel Vicente) – Do neutro ninguém se apropria... uma pessoa só se apropria daquilo que ama. Uma pessoa não pode amar uma coisa que não seja nada.
(Hestnes Ferreira) – E quando visitamos uma casa do século passado e ficamos deslumbrados com certo tipo de espaços e gostamos mesmo de ir para lá, isso é mesmo um sintoma de que aquilo transcendeu a família para quem foi feito, continua a sugerir e se calhar já foi utilizada de mil e uma formas, já teve mil e uma jarras diferentes em mil e uma mesas diferentes.
(Bravo Ferreira): restou-lhe sempre a qualidade, e essa é que está sempre.”
(Raul Hestnes Ferreira (HF), Manuel Vicente (MV) e Vicente Bravo Ferreira, “Conversa à roda de uma casa”, Arquitectura, n.º 129, 1974, pp. 36-40).
O arquitecto Raúl Hestnes Ferreira recebeu o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra numa cerimónia que decorreu na manhã do dia 30 de Setembro, na Sala dos Capelos (Sala Grande dos Actos).
Este pequeno texto retirado de uma conversa de amigos quer saudar e homenagear um dos grandes arquitectos portugueses actuais e fazê-lo com um sentido de grupo e de alguma naturalidade. Afinal , não tenhamos dúvida de que a Arquitectura só ganha em termos de desenho enriquecido e de verdadeira humanidade com uma tal naturalidade e um tal sentido de grupo e de diálogo.
Pois, afinal, e tal como disse o próprio Raul Hestnes Ferreira (em1973): “De acordo com o que penso que seja a arquitectura, a formação profissional nada é se não for estruturada por uma perspectiva humanista que clarifique os aspectos técnicos dessa formação e lhes dê sentido...”E lembremos, também, que a Arquitectura só ganha com uma cuidada e sentida leitura de ideias como aquelas acima apontadas; desta forma vamos conseguindo cruzar palavras, desenhos e obras, e na carreira de Raúl Hestnes há, de facto excelentes palavras, muitas delas como professor de futuros arquitectos, belos desenhos e grandes obras de Arquitectura.
A propósito de palavras e de Arquitectura valem bem a pena os textos "proposta de atribuição do grau", da autoria do Prof. Arquitecto Alexandre Alves Costa e do Prof. Doutor Walter Rossa que fez o elogio do doutorado; textos estes disponíveis a partir do site: https://webonc.darq.uc.pt/weboncampus/event/dataNews.do?elementId=116
E sobre a vida e a carreira de projectista entre muitos outros textos é interessante começar pela síntese disponibilizada no site da RTP:
http://www.rtp.pt/index.php?article=300085&visual=16&rss=0
Em seguida reedita-se o artigo escrito por uma amiga de Raúl Hestnes Ferreira, a arquitecta paisagista Maria Celeste Ramos, a propósito de uma recente exposição sobre a obra de Raúl Hestnes, uma excelente exposição que esteve patente no seu ISCTE, cerca de Fevereiro de 2006, e que, quem sabe, possa vir a ser proximamente reeditada.
Com uma saudação muito sentida a Raúl Hestnes Ferreira
António Baptista Coelho
1 de Outubro de 2007
Uma imagem de Raúl Hestnes Ferreira no Júri do Prémio INH 2005, que integrou como representante da Ordem dos Arquitectos
Sem palavras de apresentação que não as de uma atenção muito afectiva para o precioso significado e a rara beleza e sinceridade das palavras, que se seguem, da amiga Maria.Celeste.Ramos, faz-se no Infohabitar uma primeira viagem de texto e imagens a propósito da belíssima exposição, actualmente em exibição no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), sobre a obra de Raúl.Hestnes.Ferreira, e já agora, quem não conheça, pode aproveitar para passear na muito rica e muito humana arquitectura exterior e interior do novo edifício do ISCTE, também concebido por Raúl.Hestnes e que constitui uma verdadeira continuidade da exposição; as imagens são de Pedro Romana Baptista Coelho
Amiga Celeste, o Infohabitar considera um privilégio editar as tuas palavras,
Antonio Baptista Coelho
FAZER CIDADE
A propósito da macro-exposição dos projectos do arqtº. Raúl.Hestnes.Ferreira no ISCTE que visitei a 7 de fevereiro de 2006, sinto necessidade de voltar atrás quando também eu trabalhei no GTH a desenhar espaços de jardim, integrada na equipe por onde passaram alguns grandes arquitectos-paisagistas e arquitectos de hoje que fizeram Cidade, tentando eu "acompanhá-los" ajardinando os "espaços" por eles concebidos e honrar os colegas mais velhos que por lá já tinham passado, o que abria para mim, ainda tão jovem, um mundo novo não apenas de trabalho mas também de "olhar" a cidade e de participar na sua construção pois que, do papel, se seguiu depressa a sua construção, tendo-me sido muito grato, ainda, abrir pela primeira vez grandes covas para plantar as árvores que ainda lá estão hoje tão velhas e sólidas como os edifícios, numa área de cidade de grande qualidade de vida e de ambiente urbano
Nesses anos 60 o país iniciava nova forma de fazer cidade em Olivais Norte e Sul, e Chelas, planeada e desenhada não só a outra escala de intervenção no espaço físico, mas com novo desenho de estruturação como se de "cidade nova" se tratasse, moderna nos desenhos de estrutura entre eles o "celular", como o de uma célula de ser vivo, que se introduzia quase "clandestinamente" na cidade antiga de desenho "tradicional", pese embora a diversidade que Lisboa pode oferecer e de que Alfama é sempre excepção mas contudo sempre dentro da mesma "regra” de construir habitar.
Que surpreendente para mim, "novata" nas coisas dos jardins e da cidade, e que passados tantos anos me é forçado reavivar, não por ser muito importante o meu trabalho, mas ter sido esta exposição que, mais uma vez, me faz repensar melhor cada "bocado" da cidade onde moro, com mais "um olhar" e um referencial que passa pelo olhar do meu envelhecer em paralelo com o da própria urbe e com contínuo feed-back como se eu me sentisse um bicho que olha o seu habitat de que muito depende "qualquer bicho."
Assim este recuo que faço permite-me não apenas avaliar a qualidade do que foi feito nesse tempo e que é hoje referência de qualidade urbana e de dinâmica da cidade, manifestada igualmente pela apropriação feita pelas várias gerações de habitantes que conquistaram a “sua cidade”, o “seu bairro”, o “seuhabitar” e o “seu viver.”
Estes 50 anos de cidade nova a que o tempo já deu "tempo histórico" desde o tempo do risco dos esquissos até à existência da árvore que dá, pela sua estatura, uma definição rigorosa do tempo de existência dessa realidade "tijolo-árvore-habitar" - tempo vivo na natureza das coisas e do lugar do homem.
Apetece-me assim fazer este percurso emocional, não apenas sobre este-bocado-de-cidade-também já velha, que faz contínuo edificado e contínuo Humano com a cidade histórica, integrando a natureza viva, mas relacionando-a com a evolução da cidade-velha à qual esta foi acrescentada permanecendo a matriz de urbanidade em que é visível a evolução da vida do betão-tijolo-árvore, mas que hoje poderá estar a ser posta em causa pois que a evolução da cidade mais velha foi transformada e transfigurada nem sempre da melhor forma sobretudo a partir dos anos 80 devido a novos factores de evolução que a cidade teve de integrar, não apenas em termos de crescimento demográfico que acompanhou a introdução do automóvel, tão abruptamente, que levou a transformações globais por vezes tão drásticas e brutais sobretudo nas grandes avenidas que de repente se transformaram em auto-estradas urbanas, desumanizando o viver, mas contudo realidade com que a cidade se teve de debater e tem que com ela viver e continuamente ajustar-se, mas sem no entanto ter ainda encontrado compromisso de qualidade
Não quero deambular muito mais por este tema em que o peão deixou de ter prioridade para a ceder ao automóvel que também não só transtornou os velhos transportes públicos tradicionais como o eléctrico , como obrigou ao "tapamento" dos belos pavimentos das ruas em paralelepípedos de granito para que não lhe caíssem os parafusos nem avariassem a suspensão, pavimento que era semi-permeável e sem quase despesa de conservação e certamente sem causar nenhuma poluição, como a que é hoje provocada pelos combustíveis fósseis utilizados como energia-motor, acrescida aos detritos derivados do desgaste do betuminoso com o atrito dos pneus que por sua vez se desgastam e tornaram a atmosfera irrespirável todos eles detritos cancerígenos, para além de ter alterado, irreversivelmente, o clima urbano que passou a ser mais quente e mais seco, até porque a chuva quando cai já não encontra os pequenos espaços das juntas das pedras a que estava habituada e ser bem recebida para bem da cidade e cidadãos e tudo se tornou negro e impermeável com estes modernos materiais também emanadores de CO2, acrescendo-se ainda a poluição do som, num acréscimo contínuo de desumanização da cidade que não encontra equilíbrio para a vida global e a modernidade.
Assim, a exposição de 45 anos de arquitectura de Hestnes Ferreira, inaugurada no ISCTE a 7 de Fevereiro de 2006, é importante não apenas pelos projectos que foram agora postos a público na sua essencialidade contando a sua história pessoal que se confunde com a profissional, mas porque este arquitecto e o seu trabalho já fazem parte da história da cidade, sendo que este preâmbulo só propõe equacionar a minha visão da cidade "desse tempo", que também vivi, para que possa, então, olhar a sua obra e sobre ela opinar, obra que não se pode separar nem da evolução do país nem da cidade, nem do tempo histórico e cultural, e mesmo económico, pois que se os anos 60 são de grande viragem e evolução, os anos 80 serão o início de tempo de grande degradação, hoje constatada não importa por que tipo de cidadão urbano, sabendo ou não o que quer que seja da história da cidade que habita
A sua obra é assim representativa e imbuída de factos da história do país durante a segunda metade do século passado de que os actos de fazer arquitectura fazem parte e que vieram também romper com a arquitectura "institucionalizada" e denominada de "português suave"
Esta é uma exposição de um homem e uma vida e da sua contribuição para o "construir-habitar", que já não seria no entanto a cidade de agora que exige ainda mais interdisciplinaridade do que há 50 anos atrás, porque a vida urbana se tornou muito mais complexa, tempo durante o qual também aumentou de forma quase inesperada a esperança de vida, a par das grandes mudanças sociais e de participação do cidadão permitindo que os habitantes invoquem o direito de pedir muito mais à cidade e, para tanto até bastará dizer que eu, cidadã do mesmo país, nele vivi para além da maioridade sem qualquer direito de cidadania pois que só me era concedido o direito social - e parcialmente jurídico - de existir .
Abrir a boca, ter opinião e emiti-la era como se se cometesse "pecado de querer existir como ser social e intelectual" e as consequências estavam logo ali - 50 anos bem interessantes, esses, que coincidem com o tempo em que o trabalho deste arquitecto foi executado e “fez cidade”, quase tantos quantos eu, e outros como eu, levaram a adquirir o direito de existir em plenitude social. Mas não estarei a sonhar com essa de plenitude social? Enganei-me com certeza.
Terminada esta espécie de enquadramento sociocultural, parece no entanto que hoje, importante ou vazia, a minha opinião pode não apenas ser emitida, como ouvida e, se não for, resta o "grito", porque já se pode "gritar".
Desta forma ao olhar cada projecto exposto, na sua imensa variedade formal recolhe-se esta quase incapacidade de não voltar atrás para melhor repensar o hoje e, só depois, mas em primeiro lugar, falar da sensação quase inquietante de "quantidade", como se fosse inesperado que um homem só conseguisse produzir o que foi nesta exposição dado apreciar por quantos a visitaram e foram muitos e serão com certeza muitos mais os que terão interesse em ver a "forma" como um homem viveu o seu tempo através do seu trabalho.
Já se escreveu neste blog/revista, no final do ano de 2005, sobre "o espírito do lugar", num artigo geminado. Que interessante é esta experiência de adesão intelectual, e afectiva, que faz alguém repegar uma ideia e geminar-lhe a sua num "contínuo-cultural" que une, retoma e segue, à semelhança do que é, afinal, a cidade, ela espelho dos habitantes, que permite construção de afectos adentro (e fora) das paredes duras de cada habitação.
Parecendo-me que habitar terá também essa dimensão de juntar o meu ao seu olhar a cidade e a ideia de ser o espaço dos homens e dos seus afectos e de lançar raízes não apenas estéticas e éticas, mas também afectivas e solidárias.
Cidade a Casa do Homem e o conforto de viver física e emocionalmente.
Olhar cada projecto de Hestnes Ferreira é desventrar-lhe não apenas a forma da sua geometria mas a intenção com que o "desenho" se apropriou das mãos, ou as mãos do desenho que se destinava a um lugar e a uma função específica
Olhar cada projecto e apreciar-lhe o desenho de geometrias quase arquetípicas tal que se diria que cada lugar as aceitaria sem "gemido" porque se lhe apõem humanizando-o e revivificando-o, dando-lhe "existência."
Espírito do lugar?
Espírito da intenção?
E que espírito teria porventura cada lugar de cada projecto?
Não teria sido algumas vezes o "espírito do projecto" que o deu ao lugar?
Se há lugares que não admitem que sejam "adulterados na sua essência" porque é essa a sua condição de "lugar", outros há que "esperam" que algo ou alguém lhes dê vida e identidade em diálogo inteligente homem-lugar e a sua obra.
Assim, obrigada Raúl por essa arquitectura de mão-cheia, que "sobrou" como exemplo de vida concreta e exponível para os teus colegas e para muitos outros, e que "fez cidade e vida de viver."
PS - não cheguei a falar sobre os projectos de Hestnes Ferreira, só falei de mim como pessoa urbana que foi crescendo e olhando a cidade durante esse tempo de trabalho em que foram sendo desenhados e construídos tais projectos pelo país espalhados e pergunto se não será necessário aprender, colectivamente, a LER o sentido e espírito de ser cidade com os espaços onde se tem de viver.
Lisboa e Bairro.de.Santo.Amaro, 11 de fevereiro de 2006
Celeste Ramos
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