António Baptista Coelho
A qualidade do habitar, no início do século XXI, na Europa
Considerando a matéria da promoção da qualidade do habitar, hoje em dia, nesta nossa Europa, ainda no início do século XXI é possível e desejável reflectir sobre muitos aspectos, uns mais quantitativos e outros mais qualitativos, uns mais globais e temáticos outros mais práticos; em seguida e um pouco “ao correr da pena” sugerem-se algumas ideias sobre a “natureza” da qualidade do habitar, ideias com que muitos de nós se têm cruzado e que o autor destas linhas tem naturalmente revisitado ao longo do desenrolar de muitas actividades no âmbito Laboratório Nacional de Engenharia Civil, onde coordena o Núcleo de Arquitectura e urbanismo (NAU), mas também nas inciativas do Grupo Habitar e naturalmente na sua participação na vida de uma grande cooperativa de habitação, a Nova Habitação Cooperativa (NHC) e também no âmbito da FENACHE – a Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica.
Fiquemos então, primeiro, com um conjunto de ideias gerais, mas que, como se verá, têm fortes reflexos práticos e, depois, com uma série de matérias de âmbito mais prático, mas que elas próprias revertem para fundamentais opções genéricas.
Com os sub-títulos tenta-se uma clarificação global da matéria e as poucas ilustrações querem apenas reforçar, de forma muto genérica, o sentido geral do texto, referindo-se a casos recentes de habitação de interesse social em Portugal.
Fig. 01: 2001, Maia, Milheirós, Rua 5 de Outubro e Rua do Paiol, empresa Sedengil/Engil, 48 e 28 fogos, projectista coordenador, Arq. João Carlos dos Santos.
Um habitar humanizado
A primeira ideia tem a ver com a pergunta sobre “o que devemos pedir ao espaço arquitectónico para que o homem possa continuar a designar-se como humano?” e sobre isto Norberg-Schulz disse que “em primeiro lugar devemos pedir uma estrutura representável que ofereça abundantes possibilidades de identificação.” E disse também que “a tarefa do arquitecto é ajudar o homem a encontrar um sítio existencial onde firmar-se, concretizando as suas imaginações e fantasias sonhadas ...” (1)O habitar como um serviço
A segunda ideia é que a habitação não é, basicamente, um produto de consumo, pois, tal como escreveu Gerard Bauer (1980), “sempre que as exigências primordiais estão praticamente satisfeitas, quando o habitante começa a ter voz activa, ele (exige) diversidade, cor local, charme, humor, e verdadeiros sítios”.(2)
Aprofundar a qualidade do habitar
A terceira ideia é que a qualidade do habitar tem muito a ver com o aprofundamento e a diversificação da noção de qualidade de vida, pois tal como sintetizou o pintor Júlio Resende, a propósito de uma casa que, para ele, projectou Carlos Loureiro (3): “O arquitecto que submete toda a génese da obra ao binómio técnica-espírito é, em propriedade, o arquitecto para o homem...”
Habitar a cidade pública e convivial
Uma quarta ideia é que a qualidade do habitar se joga um pouco por todo o lado na cidade e com grande intensidade no exterior público, no andar a pé, e na essencial convivialidade.
Um habitar democraticamente qualificado
Uma quinta ideia é que “há certas qualidades que podem ser consideradas essenciais em todos os géneros de casas: sossego, encantamento, simplicidade, largueza de vistas, vivacidade e sobriedade, sentido de protecção e abrigo, expressiva economia na manutenção, harmonia com a envolvente natural e a vizinhança, ausência de lugares escuros e ao abandono, conforto e uniformidade de temperatura,...” – escreveu-o Voysey, em “The English Home”, em 1911.
A busca da felicidade no habitar
E, finalmente, uma sexta ideia tem a ver com o verdadeiro sentimento de felicidade que está associado ao habitar de espaços com qualidade arquitectónica, pois, tal como disse o Arq.º George Ferguson, “uma escola melhor desenhada leva a um melhor ensino, e uma casa e um escritório melhor desenhados resultam em pessoas mais felizes”(4). E inversamente, e tal como escreveu Spiro Kostof (1992), há que interiorizar que os actos de violência e revolta urbana são “inspirados pela cinzenta monotonia das envolventes e por um sentimento geral de exclusão relativamente à corrente principal da sociedade.”(5)
Uma cinzenta monotonia que tão bem conhecemos e que tantas vezes terá a ver, não com razões objectivas, por exemplo de custos, mas com “carências de projecto e de estereótipos de produção consolidados.”(6)
Sendo assim fica claro que qualquer tipo de promoção de habitacional e designadamente a habitação de interesse social, apoiada pelo Estado, pode e deve assumir um papel de relevo como ferramenta de apoio ao desenvolvimento pessoal, familiar e social dos habitantes e das respectivas vizinhanças e comunidades locais e nunca, de forma alguma, deve influenciar negativamente em qualquer uma destas áreas.
Fig. 02: 2001, Guimarães Mataduços, empresa FDO, 60 fogos, projectistas coordenadores, Arq. Carlos Fonseca e Arq. Alfredo Machado.
Falou-se de alguns aspectos gerais e de enquadramento da natureza da qualidade do habitar, mas acreditem que são aspectos com forte expressão prática. Serão, agora, apontados, também muito brevemente, algumas matérias que sendo práticas, têm também uma importância estratégica na qualidade residencial.
Precisamos, urgentemente, de humanizar e vitalizar centros históricos e subúrbios e num tal desígnio as novas intervenções na cidade central e na cidade periférica têm de ser, cada vez mais, de pequena escala, muito bem pormenorizadas e qualificadas no seu desenho de arquitectura, muito sensíveis aos respectivos habitantes e sítios de habitar numa perspectiva humanizadora de reconstrução da coesão urbana.
Nestas matérias os caminhos passam pela redução da ocupação dispersa do território, trabalhando-se a densidade e uma forma urbana atraente, orgânica e contínua, condições estas que obrigam a um projecto de arquitectura muito bem qualificado em termos de opções gerais e de pormenor e que aplique uma solução tipológica bem estudada e fundamentada.
Fig. 03: 2001, Lisboa, Calhariz de Benfica, Travessa do Sargento Abílio, C. M. de Lisboa, 91 fogos, projectista coordenador Arq. Paulo Tormenta Pinto.
Um projecto que interiorize uma coerente inovação tipológica, do habitar e das outras suas tantas actividades “amigas”, servindo-se uma (“nova”) cidade “genérica mult-étnica e multi-cultural”, em soluções que façam habitar a casa, o edifício e a cidade; e em soluções sem “tabus” e sem ideias feitas no que se refere às tipologias de edifícios.
E os caminhos do projecto e da sua análise deverão também começar a considerar, objectivamente, a “qualidade arquitectónica”, noção esta com grande actualidade, pois encontra hoje em dia sustentáculo institucional mesmo ao nível das preocupações e dos objectivos da União Europeia, um desígnio que tem de se construir através da harmonização entre qualidade de desenho e satisfação habitacional; um tema que é igualmente urgente e oportuno.
Fig. 04: 2001, Vila Nova de Gaia, Oliveira do Douro, Quinta do Guarda-Livros, C. M. de Vila Nova de Gaia, 139 fogos, projectista coordenador, Arq. Paulo Alzamora
Uma outra questão que também se liga com esta última matéria do urgente aprofundamento do que é “qualidade arquitectónica” vai mais fundo e tem a ver com a “convivência”, que é fundamental assegurar – nesse sentido de dinamização da qualidade arquitectónica –, entre qualidade do desenho de arquitectura e satisfação dos moradores. Desde já e sobre esta matéria aqui se comenta que entre a linguagem arquitectónica eventualmente considerada “correcta” e o gosto por uma casa em grande parte tão atraente como as outras há todo um debate a fazer e estudos a desenvolver. Não se defende uma arquitectura residencial “fácil” e menos qualificada, no entanto há um equilíbrio básico que deve ser respeitado e, mais fundo que isso, há debates a fazer sobre o que é ou será melhor para uns ou para outros e mesmo se tal questão se poderá colocar.
Finalmente, e também em termos muito práticos, há ainda que contar com o crescimento da necessidade de mais habitação, associado à desagregação da grande família tradicional, ao aumento da esperança de vida e ao desenvolvimento do trabalho em casa e das actividades domésticas ligadas ao lazer. Uma necessidade que também resulta da continuidade da concentração urbana, que irá agudizar-se nos próximos decénios. Uma necessidade que também é consequência de se ter de substituir o que se fez mal; e aqui temos bem presente o mau exemplo francês que vai levar à demolição de 250.000 habitações, e ao realojamento, em melhores condições habitacionais e citadinas de cerca de 5 milhões de suburbanos. E sobre esta matéria, não haja dúvidas, será necessário desenvolver, por vezes, opções drásticas e dispendiosas, isto se se quiser, realmente, seguir, finalmente, a via da qualidade; e lembremos que, tal como foi divulgadohá pouco tempo na imprensa escrita, afinal, em Portugal, parecem ser ainda necessárias cerca de 200.000 habitações novas e quase o mesmo número de habitações reabilitadas, sendo que delas cerca de 20% terão de ter apoio do Estado.
Fig. 05: 2001, Funchal, Santo António, Caminho da Penteada, C. M. do Funchal, 8 fogos T0 para pessoas idosas e que vivem sozinhas, projectista coordenador, Arq.ª Susana Fernandes (Dep. Habitação, C.M. do Funchal).
Mas para rematar estas matérias de números, e tal como Kazuo Shinohara, salienta-se (7) que “na nossa enorme sociedade actual há pouca diferença entre fazer cem casas ou duzentas casas, mas que a quantidade que é difícil apurar é o número de casas que são feitas e que atingem um significado social.” E casas com significado social interagem com partes de cidade vivas e conviviais.
Cidades bem conformadas pelos conceitos de público e de privado, numa relação activa e recíproca, marcada pela redescoberta da importância dos “limiares”, que se distribuem da rua à porta de casa, em cenários potencialmente apaixonantes, ... pois como escreveu Daniel Filipe "de vez em quando apetece a gente tomar por uma dessas ruazinhas que não se sabe onde irão acabar, deixando correr o tempo ao sabor dos passos erradios." (8)
Fig. 06: 2001, Porto, Campanhã, Conjunto Habitacional do Ilhéu, C. M. do Porto, 126 fogos, projectista coordenador, Arq. Manuel Correia Fernandes.
Mais habitar e mais cidade
Tal como defende Fernández-Galiano, não tenhamos dúvidas que o problema da habitação se tornou o problema da cidade – e eu gostaria de acrescentar esta ideia dizendo que, hoje em dia, o problema e o potencial do habitar é, nem mais nem menos, o problema e o potencial da cidade. E mais se adianta que, neste nosso novo século das cidades, o problema e o potencial da cidade é hoje o problema e o potencial da humanidade. E se, como parece, há ainda tanta falta de habitação e tanta falta de cidade, então, não tenhamos dúvidas, só é hoje possível fazer boa cidade com boa habitação; tudo o resto não nos pode interessar.Finalmente, sobre como fazer boa cidade habitada, hoje em dia, no princípio deste novo século, nesta nossa velha e excelente cultura europeia, lembremos, por fim, uma grande afirmação de Leonardo Benevolo e Benno Albretch que nos dizem que (9): “os desafios a enfrentar no mundo de hoje não dizem apenas respeito às quantidades e aos números, mas também, – e sobretudo – à complexidade e à subtileza.”
Notas:(1) Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura, Barcelona, Editorial Blume, trad. Adrian Margarit, 1975, p. 135.
(2) AAVV, Architecture 1980 – Doctrines et Incertitudes, Les Cahiers de la Recherche Architecturale, n.º 6/7, Paris, 1980, p. 103.
(3) Carlos Loureiro, “Moradia do pintor Júlio Resende”, Arquitectura, 1966.
(4) Artigo de Rita Jordão Silva no Jornal Público de 29 de Novembro de 2004, citando George Ferfuson, Presidente do Royal Institute of British Architects na inauguração da nova galeria do Victoria and Albert Museum, dedicada a uma exposição permanente de arquitectura, num significativo retorno ao passado pois até 1909, e tal como se refere no artigo, “a arquitectura era a alma do Victoria and Albert Museum”.
(5) Spiro Kostof, “The City Assembled”, 1992, p.121
(6) Giovanni Ottolini e Vera De Prizio, “La casa attrezzata - qualità dell'abitare e rapporti di integrazione fra arredamento e architettura”, 1993.
(7) Kazuo Shinohara, “Now, «modern next»”, em “Contemporary japanese houses, 1985-2005”, Tóquio, TOTO Shuppan 2005, p. 435.
(8) Daniel Filipe, “Discurso sobre a cidade”, Lisboa, Editorial Presença, Colecção Forma n.º 8, 1977 (1956), p.77: “ uma cidade onde acontecem coisas ...(p.51)
(9) Leonardo Benevolo e Benno Albretch, “As Origens da Arquitectura”, 2002, pp.10 e 13.
Lisboa, Encarnação-Olivais Norte, 11 de Outubro de 2007
Publicado por José Baptista Coelho
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