Infohabitar, Ano XIV, n.º 643
Artigo da Série “Habitar e Viver Melhor” n.º CXV
por António Baptista Coelho (texto e imagens)
Sítios da habitação - Infohabitar 643
Sobre uma habitação mais feita de sítios específicos do que de funções domésticas
Lembrando, entre outros autores Arquitectos, o
grande Christopher Alexander e a sua incontornável “linguagem de padrões”, que
tanto influenciou tanta gente e tão poucas vezes citada ou referenciada, podemos
referir que uma habitação, um mundo doméstico que, para o ser, tem de integrar,
potencialmente, os vários mundos domésticos específicos dos respectivos
habitantes, mais o respectivo agregado comum e convivial, muito mais do que um “simples”
complexo funcional – e ainda assim o número de funções é extenso – deveria ser
constituído e constituível por uma potencial e muito extensa diversidade de “cantos”,
“recantos” e “sítios” adequados a uma enorme variedade de misturas funcionais e
apropriações pessoais e de grupo específicas.
As limitações a uma tal liberdade doméstica são,
naturalmente, de vária ordem, destacando-se alguns aspectos de agradabilidade e
de conforto ambiental, de adaptabilidade e de funcionalidade com sentido lato,
que, em seguida, muito brevemente se apontam.
Agradabilidade espacial e conforto ambiental
As limitações à liberdade de apropriação e à “personalização”
nas áreas da agradabilidade espacial global e do conforto ambiental são de
grande importância e referem-se ao “direito” à espaciosidade, pelo menos, mínima,
referida a condições de desafogo espacial que possam contar grande diversidade
de potenciais ocupações por mobiliário, à acessibilidade/circulação adequada, à
luz natural, à boa insolação, à boa ventilação e ao adequado conforto higrotérmico
e acústico que todos os habitantes devem ter. Naturalmente que ao avançarmos na
referida perspectiva de “apropriação e personalização”, não se conseguirá
garantir tudo isso, pois a liberdade de apropriação poderá condicionar alguns
desses aspectos; no entanto muitos deles poderão ser facilitados e favorecidos
através de cuidados prévios projectuais adequados – por exemplo: boa espaciosidade
básica (também a nível de pé-direito), boa orientação e insolação, adequada e
extensa fenestração e edifícios pouco profundos e/ou com soluções de iluminação/ventilação
no miolo do edificado, ventilação cruzada garantida, adequado isolamento térmico
e acústico, etc.
Aspectos essenciais de adaptabilidade
As limitações à liberdade de apropriação e à “personalização”
nas área da ausência de aspectos essenciais de adaptabilidade referem-se,
essencialmente e em termos de organização da habitação, à existência de rígidas
hierarquias espaciais, designadamente, através de uma sequência de zonas domésticas
praticamente unifuncionais; no que se refere à pormenorização da habitação a
respectiva inadaptabilidade e dificuldade de apropriação crescem com a redução
do número de paredes livres – de vãos, de interruptores e tomadas, de instalações
fixas e de encosto de portas. E naturalmente que condições de espaciosidade mínimas
ou próximas de mínimas, designadamente, em termos de dimensões de largura de
compartimentos e circulações, influenciam muito negativamente o respectivo
potencial de adaptabilidade desses espaços.
Num sentido contrário e portanto para dispormos de
habitações bem adaptáveis e apropriáveis teremos espaços domésticos com
larguras versáteis em termos da respectiva ocupação, organizações domésticas
funcionalmente neutrais em termos de organização geral e dimensionamento dos
respectivos compartimentos, associadas a circulações alternativas possíveis,
directamente, entre compartimentos e preparação de fusões e subdivisões de
compartimentos e naturalmente que a localização das instalações também apoiará
ou dificultará essa capacidade adaptativa; em termos de pormenorização quanto
mais metros lineares de paredes totalmente livres tivermos mais adaptável e
apropriável será a respectiva habitação.
Aspectos essenciais de funcionalidade num sentido amplo
Passando, agora, às limitações à liberdade de apropriação
e à “personalização” associáveis a aspectos essenciais de funcionalidade, privacidade/convivialidade
e capacidade de arrumação, podemos sintetizar referindo que uma funcionalidade
bem prevista e/ou, de certa forma, “bem concentrada” onde ela possa facilitar e
agilizar, eficazmente, as actividades domésticas mais trabalhosas em termos de
esforço/duração e/ou com maior potencial de má influência sobre a vida doméstica,
é condição extremamente benéfica na “libertação” dos restantes espaços da
habitação para expressivas e sequenciais intervenções de adaptação e apropriação;
e estas condições jogam-se em previsões espaço-funcionais específicas com influência
tanto nas configurações espaciais e de integração de equipamentos e instalações,
como numa adequada pormenorização, que, por exemplo, facilite expressivamente a
limpeza e outras actividades domésticas mais trabalhosas e obrigatórias (ex.,
fazer camas, lavar e arrumar louça, lavar, tratar e arrumar roupa).
Matéria importante nesta última temática é, também,
a consideração de aspectos essenciais de apoio à privacidade e à convivialidade
domésticas; neste sentido os aspetos de privacidade são mais associáveis à
entrada na habitação, aos espaços de descanso/dormir e ao uso de casas de banho,
jogando-se, talvez, de forma mais efectiva no sentido de uma espacialidade
relativamente desafogada e a uma adequada previsão de vistas interiores, e
podendo variar significativamente com os usos e modos de vida específicos e
havendo que considerar que a disponibilização de casas de banho privativas
deverá ser bem considerada e harmonizada com o potencial adaptativo do respectivo
compartimento a que ela está associada; no que se refere ao potencial adaptativo
no sentido convivial ele poderá cumprir-se, por exemplo, através da previsão de
fusões temporárias entre compartimentos, bastando para tal que exista já uma
ligação potencialmente ampla entre eles (ex., grande porta de correr).
E então a liberdade de apropriação?
Poderíamo comentar que, depois de tantas considerações
e de tantos cuidados específicos pouco ficará como campo de liberdade para o(s)
morador(es) adaptarem, apropriarem e personalizarem os seus compartimentos e as
suas habitações, mas julga-se que não.
E poderemos até imaginar um espaço de habitação que
cumpra praticamente tudo aquilo que acabou de ser referido e que, apesar disso,
ou em boa parte por causa disso seja “campo” muito adequado para se tornar um “complexo”
único de “espaços/cantos/microespaços” únicos, agradavelmente acolhedores e
versáteis nos seus usos.
E podemos e devemos ainda considerar que também é
possível projectar pormenorizadamente uma habitação no sentido em que ela possa
ser extremamente versátil na sua ocupação posterior, entrando-se, aqui,
naturalmente na matéria da qualidade arquitectónica, seja no sentido em que
esta deixa margem para depois o habitante intervir não tendendo a afectar os
aspectos de qualidade críticos, acima apontados, seja no sentido em que a
concepção vai logo ao encontro desse potencial de diversidade de ocupação; e,
por vezes, isto é até atingido dentro de quadros dimensionais mínimos (habitação
de interesse social); sendo que, como é sabido, outras vezes esta qualidade não
é atingida mesmo quando não há tais limitações dimensionais.
De certa forma é este um dos lugares de eleição do
Arquitecto, pensar em lugar de muitos dos habitantes que irão viver no espaço
que está a projectar e procurar servi-los a todos o melhor possível,
propiciando espaços, microespoaços e conjugações de espaços expressivamente
versáteis e apropriáveis; e não tenhamos dúvida de que o conselho/apoio de um
Arquitecto poderá ajudar os habitantes a ocuparem e viverem melhor os seus
espaços de vida, pois afinal trata-se da especialização do Arquitecto, podendo
constituir mais um importante campo da sua intervenção, aconselhando, por
exemplo, na mudança de habitação e na respectiva (re)configuração e (re)ocupação
pormenorizadas.
Sobre o valor/identidade da habitação
Tais eventuais limitações no que se refere a uma
adequada apropriação habitacional e respectivos cuidados, acima apontados, têm importantes
repercussões positivas seja na disponibilização de espaços domésticos que
harmonizam apropriação, carácter próprio/único e adequadas condições de
habitabilidade e de conjugação entre diversos espaços fortemente apropriáveis,
seja no próprio valor imobiliário desses espaços, que não apresentarão, assim,
quaisquer “problemas” de habitabilidade críticos ou indesejáveis para muitos
outros potenciais habitantes; podendo, até, apresentar, frequentemente,
aspectos específicos que marcam a identidade daqueles espaços e os tornam únicos
e muito mais apetecíveis do que a situação “estafada” do “esquerdo-direito” e
T0 a T4, com instalações sanitárias interiores (para poupar espaço de fachada)
de que estão cheias as nossas cidades e vilas.
Para concluir e apenas como tema que fica um pouco e
positivamente em suspenso, no sentido do seu posterior desenvolvimento, fica a
ideia que este potencial de expressiva diversidade, versatilidade e
caracterização de uma habitação, poderá/deverá ter continuidade: (i) seja nas
suas “extensões” e/ou especificações de projecto no edifício multifamiliar –
por exemplo, no aproveitamento em duplex de posições sob a cobertura, e no
aproveitamento da relação com espaços exteriores privados (peqeunos quintais/pátios,
varandas fundas, etc.); (ii) seja na configuração expressivamente diversificada
e caracterizada de “novos” edifícios multifamiliares, bem distintos das
referidos estafadas tipologias “esquerdo-direito”
e potencialmente bem marcados pela fusão entre vários tipos de usos (usos
mistos); ricas e actuais matérias que ficam para outros
desenvolvimentos.
Falta, naturalmente, salientar aqui que tudo o que
aqui se apontou em termos de apropriação pelo morador e inovação tipológica
nunca poderá contribuir para a deterioração da imagem pública e vicinal dos
respectivos edifícios, devendo, sim, contribuir para a sua valia patrimonial e
urbana.
Nota final: em próximos artigos desta série serão
comentados alguns sítios domésticos com variadas valências.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.
Infohabitar, Ano XIV, n.º 643
Sítios da habitação – Infohabitar 643
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
abc.infohabitar@gmail.com
abc@lnec.pt
Infohabitar, Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
Editado nas instalações do Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do Departamento de Edifícios (DED) do LNEC.
Apoio à Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.
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