segunda-feira, maio 28, 2018

641 - Sítios-biblioteca - Infohabitar 641

Infohabitar, Ano XIV, n.º 641

Artigo da Série “Habitar e Viver Melhor” n.º CXIV

por António Baptista Coelho (texto e imagens)


Nota prévia: um pequeno problema editorial levou a que este artigo tenha sido retirado, durante alguns dias, do corpo editorial da Infohabitar; o problema está resolvido, o artigo está novamente disponível e mantém a sua numeração original (n.º 641) 


Sítios-biblioteca

(Nota prévia: por uma questão de autonomia de leitura a introdução será repetida nos vários artigos sobre esta temática dos pequenos sítios domésticos)
Para além dos habituais espaços domésticos globalmente associados a compartimentos mais de estar ou mais de circulação e/ou recepção e que bem conhecemos, uma boa habitação, que nos “diga” realmente algo, para além de, simplesmente, nos abrigar, deve integrar, de forma muito natural, diversos tipos de sítios domésticos, entre os quais se contam os “lugares janela”, já desenvolvidos, mas cuja variedade dependerá da capacidade de quem bem projecta e de quem bem habita esse espaço doméstico.
Mas não tenhamos quaisquer dúvidas de que essa capacidade de adequada e estimulante integração de múltiplos pequenos sítios domésticos, propícios a variadas conjugações de microfunções e microapropriações depende em boa parte de um adequado, pormenorizado e rico/imaginativo projecto de Arquitectura, que facilitará e até incentivará tais condições, enquanto, se não existir esse projecto bem qualificado, quando o mundo doméstico é “manejado” de forma “maquinal” e rigidamente “unificada”, os resultados no uso e apropriação da habitação tenderão a ser muito “áridos” e funcional e formalmente muito pobres.
De certa forma aquilo que se aplica/acontece ao nível urbano e relativo aos aspectos de localização/integração, que têm enorme importância na satisfação dos habitantes – resumindo-se, por vezes, na ideia de que o que interesse primeiro é o sítio, depois o sítio e ainda depois o sítio … -  é algo que acontecerá, depois, ao nível do edifício, quando ele integra habitações com a riqueza da conjugação de variados sítios domésticos, e, depois, ao próprio nível doméstico, considerado, e bem, como a conjugação de variados e ricos pequenos sítios que nos servem, marcam e que apropriamos.
Em seguida iremos comentar diversos “pequenos sítios domésticos”, sem a ambição de os esgotarmos a todos, naturalmente; pois a sua diversidade está apenas dependente da sensibilidade e da imaginação de quem os projecta e de quem os habita – mas mesmo a este último nível é de grande importância o desenvolvimento da reflexão dos projectistas sobre estas matérias, reflexões estas que naturalmente, sendo feitas de forma clara/acessível, irão municiar/influenciar uma grande e adequada riqueza nessa apropriação pelos habitantes.

Contribuição para a definição de “biblioteca”

Antes de iniciar esta reflexão importa estabilizar, minimamente, a ideia/definição de “biblioteca”, que podemos definir:
(i) como uma colecção de livros, pelo menos, minimamente organizados,
(ii) mas também como um móvel destinado à arrumação de livros,
(iii) e ainda como um espaço físico (compartimento, edifício ...) onde se guardam livros e documentos de variados tipos.
É também interessante considerar que a definição de “biblioteca”  se pode associar à “definição” de “livraria”, também referida a uma colecção de livros, embora também a um estabelecimento de comércio de livros; havendo opiniões que ligam a definição de biblioteca, especificamente, à de uma grande colecção de livros adequadamente organizada; condição esta de “minimamente organizada”, que é naturalmente, ambígua ou subjectiva, pois desde que consigamos encontrar razoavelmente, um dado volume, numa extensa colecção bibliográfica, tal situação parece corresponder a uma organização, pelo menos, mínima da mesma.
Para dinamizar este conjunto de comentários iremos falar de “bibliotecas” e de “sítios-biblioteca”, considerando o que é acima referido e centrando-nos, exactamente, nessas referência a uma colecção de livros arrumada num móvel ou em móveis, por sua vez integrados em compartimento(s) doméstico(s) ou parte(s) de compartimento(s) doméstico(s), por sua vez integrando uma dada habitação e/ou edifício ou, mesmo, um dado conjunto/complexo de edifícios.
Desta forma acabamos por usar a referida “definição” como elemento gerador da própria ideia de sítios-biblioteca, e ao serviço de uma pequena reflexão sobre o interesse e a expressiva valência que tais sítios têm, sem dúvida, na criação/caracterização de habitações onde nos possamos sentir melhor, porque rodeados daquilo de que gostamos e nos preenche parte significativa da vida e onde aprofundamos a nossa identidade, rodeados e amparados pelos muitos milhares de mundos, histórias e ideias que vivem nos livros, afinal, na linha do que disse o grande Jorge Luis Borges sobre bibliotecas, sintetizando que:
“Sempre imaginei o paraíso como um tipo de biblioteca.”



Bibliotecas domésticas e qualidade de vida

Evidentemente que tal comparação serve aqui apenas para dar o sentido da importância que pode ter uma biblioteca doméstica na nossa qualidade de vida e numa estimulante caracterização dos sítios que habitamos, e neste sentido e para além do obrigatório texto/conto de Borges intitulado  “A Biblioteca de Babel” – a não perder, porque contém, mesmo, uma proposta de configuração de “O UNIVERSO (que outros chamam a Biblioteca)”, em termos formais e funcionais –, muito se recomendam os livros do também argentino Alberto Manguel – “Embalando a Minha Biblioteca” e “A Biblioteca à Noite” –, que constituem incontornáveis exemplos de como os livros nos podem habitar e habitar as nossas casas de modo extremamente positivo.
Nestes casos, quase como sendo os espaços de biblioteca e os seus cantos/recantos associados – espaços de leitura, de trabalho à mesa, de estar, de convívio e reunião, etc. – que podem ser verdadeiros pólos aglutinadores da globalidade dos respectivos espaços domésticos e de trabalho em casa.
Importa sublinhar, aqui, que não se constatam estas condições de expressiva presença dos livros nas habitações, em situações específicas de edifícios feitos ou convertidos para o efeito, pois mesmo em andares/apartamentos relativamente correntes esta situação/condição pode ser expressivamente vivida, seja de modo premeditado, seja, naturalmente, ao longo do tempo e da gradual expansão de diversas pequenas bibliotecas, provavelmente, temáticas por quase toda a habitação.
E um aspecto de grande interesse e justificativo deste verdadeiro “casamento” entre livros e casas, condição esta que, depois, resulta nos tais sítios-biblioteca, que, habitualmente ou frequentemente, vão crescendo, em móveis, sítios e partes de compartimentos ocupados, é a multiplicidade de qualidades que os livros atribuem aos nossos espaços domésticos, pois, para além da sua básica e essencial utilidade e do prazer que nos dão, que tantas vezes se renova ao longo dos anos, em leituras e releituras; os livros e os seus espaços-biblioteca, criam ambientes, produzem espaços volumétrica e cromaticamente estimulantes, apoiam no conforto ambiental interior, estão embebidos de expressivos significados culturais e mesmo simbólicos e evidenciam uma interessante “condensação” da nossa história de vida (individual e familiar), estando directamente associados a muito do que nos aconteceu; e, suplementarmente, fundem-se, de forma extremamente estimulante com as mais diversas recordações, que vamos acumulando ao longo dos anos e que podem fazer viver as prateleiras em conjunto com as coloridas lombadas e também, evidentemente, com os mais diversos elementos artísticos.  
E apesar de estarmos já em plena reflexão fica, aqui, a referência de estar bem longe da nossa ideia qualquer tipo de esgotamento ou mesmo de significativa sistematização de uma matéria, que, como esta, nos motivará para outros artigos e textos mais desenvolvidos e específicos.

Livros que vão preenchendo casas

Começámos devagar, muitos de nós, em pequenos a ler e a acumular livros, talvez, primeiro, em simples pequenos montes no chão do quarto e, depois, nas poucas prateleiras que os móveis correntes tinham, para em seguida, e quando houve possibilidade, conseguir uma estante com significativa quantidade de prateleiras, que nos possibilitaram iniciar a arrumação da nossa pequena biblioteca/livraria.
É evidente que nesta sequência de acontecimentos de um lado ficaram aqueles que associaram os livros à “obrigação” de estudar, e que, portanto, os tinham obrigatoriamente, e aqueles que até consideravam tais livros “de estudo” uns quase não-livros, exactamente devido a esse carácter obrigatório, que estranho sempre foi aos amantes de livros; estes sim “escondendo”, frequentemente, os livros de estudo nas gavetas e escrivaninhas ligadas ao estudo, mas começando, já, a evidenciar aquelas primeiras filas de pequenas lombadas dos livros que chegaram por vontade própria ou, tantas vezes, previamente desejados e marcando datas festivas.
E aconteceu, logo aqui, uma primeira “separação de águas”, entre aqueles que começavam a não conseguir viver, de forma agradável e estimulante, sem ler/ver livros, e que, portanto, os honravam com essa presença evidenciada nas ainda pequenas estantes do quarto, ali sempre à mão de uma inesperada releitura de lazer e marcando já o ambiente interior do mesmo quarto, e os que não começaram a ganhar, logo então, o “bichinho dos livros”, o prazer único dos livros e que, logo que possível, os encaixaram e relegaram para compartimentos de arrumação ou, melhor, os deram a quem os lê e estima; e será, essencialmente, com aqueles primeiros que iremos continuar esta pequena reflexão.
Depois e à medida da passagem dos anos e do crescimento das disponibilidades financeiras, os livros, as revistas e outros interessantes documentos vão crescendo em número e diversidade temática, sendo que a vontade de ter uma pequena biblioteca se vai instalando, parecendo, enfim, ser possível, no sentido de ocupar e marcar, plenamente, primeiro uma parede quase inteira, depois, um grande canto de compartimento, e finalmente todo um compartimento, rodeando-nos, os livros, finalmente, como um cerco benéfico, estimulante e protector.

Dos sítios-biblioteca à casa-biblioteca

É então, quando os filhos vão seguindo as suas vidas, que a biblioteca doméstica vai ocupando a casa  em recantos e sítios-biblioteca minimamente temáticos e organizados, libertando-se, finalmente, das suas primárias limitações financeiras e culturais, ligadas à velha “obrigação” de ler tudo o que se compra, para se passar a uma nova fase de verdadeira biblioteca/livraria, cada vez mais rica, cada vez mais direccionada para as temáticas que mais nos interessam e apaixonam, e, portanto, cada vez mais servindo como uma verdadeira biblioteca pessoal ou familiar (mas sempre muito pessoal), que acaba por ser muito mais estimulante do que muitas outras, embora muito maiores e mais ricas.
E é também esta a altura em que, por vezes, chegam estimulantes doações de familiares, que vão criar outros ricos “nichos” temáticos, que ficam confortavelmente em reserva para próximas explorações.
E é também então que esta biblioteca doméstica positivamente tentacular e até estimulantemente labiríntica e inesperada, nos começa a oferecer os melhores cantos/recantos e sítios-biblioteca, onde nos sentimos duplamente em casa e identitariamente confortados; condições estas que, naturalmente, se expandem e expressivamente, em termos de ambientes criados aos respectivos espaços domésticos e, quando bem desenvolvida, à própria “casa” no seu conjunto, que passará, no limite a ser uma casa-biblioteca.    

Livros e novos hábitos domésticos

De uma forma mais global os sítios-biblioteca nas nossas habitações podem estar em extinção com a tendência de se encaixotarem os livros, relegando-se estes caixotes para arrumações, frequentemente, junto dos estacionamentos, ou mandando-os para outras paragens, pelas mais variadas razões entre as quais as “higiénicas”, pois os livros criam pequenos bichos e acumulam pó, e além de tudo isto há a televisão e a internet e o papel começa a estar a mais, pois até em casa nos vamos rendendo à revolução informática, que evidentemente, é benéfica; isto embora ainda não se tenha inventado, parece, uma forma mais evidenciada e estimulante de tratar a crescente biblioteca de PDFs.
Lembremos, já agora, que as próprias livrarias comerciais passaram a ser, essencialmente, montras de livros recentemente lançados e deixaram de ser o que eram: verdadeiras bibliotecas ricas e aconselhadas; uma situação que, por si só, acaba por reforçar a importância que tem e terá uma adequada biblioteca doméstica.
Julga-se que durante muitos anos ainda haverá sítios-bibliotecas domésticos “resistentes” e são sítios fantásticos para se ouvir música, ler, trabalhar e conversar, e podem ser uma óptima alternativa ao sítio de TV e cinema em casa; constituindo um verdadeiro trunfo na riqueza temática e ambiental de uma habitação que se deseje bem qualificada e caracterizada.
E, como em tudo, há fluxos e refluxos nos hábitos gerais e domésticos, e não tenhamos dúvida de que a revolução informática documental acaba por ser dinamizadora da continuidade do livro impresso, que tem qualidades distintas das do PDF.
Um pouco à margem desta sequência de reflexões é oportuno considerar que estas inovações no habitar doméstico - trabalhos e lazeres - parece também confluir para o interesse em se desenvolver uma estruturação da habitação em compartimentos razoavelmente idênticos em termos de condições dimensionais e assim adaptavelmente apropriáveis para diversos usos.


E importa, aqui, registar que a qualidade e os benefícios de uma dada biblioteca doméstica ou de um dado sítio-biblioteca doméstico não se ligam, apenas, ao seu desenvolvimento quantitativo, havendo pequenos móveis-biblioteca bem desenvolvidos, pormenorizados, localizados e avizinhados, e/ou situados em determinados cantos/recantos domésticos que vivem, por si, como verdadeiras bibliotecas bem caracterizadas, estimulantes e visual e ambientamente atraentes.   


Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) De acordo com o mesmo sentido, de se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.

Infohabitar, Ano XIV, n.º 641

Sítios-biblioteca – Infohabitar 641

Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
abc.infohabitar@gmail.com
abc@lnec.pt

Infohabitar, Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
Editado nas instalações do Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do Departamento de Edifícios (DED) do LNEC.


Apoio à Edição: José Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.

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