António Baptista Coelho
Notas prévias
Neste segundo artigo, que aborda as origens da cidade, perspectivando a relação dessa origem com a construção de uma cidade densificada e quase sem ruas, ou com “pequenas” ruas, ou humanizados espaços públicos (matéria esta a desenvolver em outros artigos desta série), faz-se, como nota prévia, a referência ao reduzido conhecimento que o autor destas linhas tem sobre estas matérias, testemunhando-se que muito do que aqui se refere estará muito melhor apontado e justificado em obras especializadas de pré-historiadores e arqueólogos.
Alguns aspectos a considerar na origem da cidade e do "habitar em companhia"
- A melhoria das condições climáticas, que aconteceu depois de uma última pequena glaciação, proporcionou excelentes capacidades de crescimento de ricas e diversificadas flora e fauna, designadamente, no chamado “Crescente Fértil”, uma ampla região que se estendia do delta do Nilo ao actual Kuwait, no Golgo Pérsico, atravessando os actuais Israel, Palestina, Jordânia, Síria, Sul da Turquia, Iraque e parte do Irão.
- Esta situação terá proporcionado o desenvolvimento de uma tendência de sedentarização por acréscimo de recursos e de alimentação na proximidade das famílias alargadas, reduzindo-lhes a necessidade de se deslocarem quase em continuidade, como acontecia até então, para se ir renovando o cenário de sustento natural em termos de caça/pesca, recolecção e mesmo primeiros aproveitamentos agrícolas das “versões”/selvagens de alguns cereais e gramíneas comestíveis.
- A tendência de sedentarização parece ter surgido, assim, não directamente, ou pelo menos exclusivamente, associada à designada invenção neolítica da agricultura e à associada domesticação e criação de animais, situação que é reforçada pela recente descoberta de um extraordinário “santuário” megalítico, cujas funções específicas se desconhecem, mas que parece poder ter congregado reuniões de uma grande população de caçadores/recolectores.
- Este edifício/construção, foi encontrado na actual Síria, em Göbekli Tepe, e terá cerca de 11.000 anos (7000 anos anterior a Stonehenge), e é actualmente considerado como o primeiro verdadeiro “edifício público” da história humana – e já agora e a título meramente suplementar não é possível deixar de referir que esta extraordinária infraestrutura não terá, tido, provavelmente um objectivo estritamente funcional.
- Sublinha-se que este “santuário” tem uma estrutura construtiva extremamente elaborada, conplexa e com grande extensão, integrando enorme pedras talhadas em “T”, com três a cinco metros de altura, várias toneladas de peso e marcadas por belíssimos relevos esculpidos de animais, constituindo uma obra que terá demorado várias gerações humanas a ser concçuída e que obrigou ao esforço conjunto de cerca de 500 pessoas – os tais caçadores e recolectores nómadas.
E continuando a nossa reflexão temos assim um primeiro “edifício” humano que não está associado a nenhuma povoação específica que tenha sido encontrada nesse local até agora, e que antecedeu em cerca de 1000 anos o desenvolvimento dos primeiros povoados mais significativos (até agora conhecidos). - Uma possibilidade será que a sedentarização tenha começado a ocorrer, ainda em conjugação com a caça/pesca e a apanha de frutas e plantas diversas, naturalmente, a partir do referido acréscimo de fertilidade da natureza envolvente, e que, sequencialmente, a própria fixação das pessoas e o associado crescimento demográfico – era difícil haver muitas crianças quando as famílias estavam em constante movimento –, tenha levado a um crescimento das necessidades de alimentação e outras associadas à vida diária; e, portanto, que este contexto diversificado (ambiental, social e mesmo de engenho humano), tenha levado à referida “invenção” de uma actividade agrícola e de pastorícia gradualmente mais organizadas e dinamizadas.
- E assim se inicia, de certa forma, um ciclo sem fim: (i) de necessidades, gradual e naturalmente acrescidas/enriquecidas; e (ii) de trabalho, gradualmente mais intenso, para satisfazer essas necessidades. Um ciclo que, por sua vez, ia gerando necessidades de mais mão-de-obra e, portanto, de maior concentração/densificação e cooperação humana, numa perspectiva de desenvolvimento socioeconómico e proto-urbano que o próprio engenho humano logo se terá encarregado de fazer crescer.
- De certa forma podemos dizer que o homem, levado pela própria riqueza da natureza, terá, assim, terminado um seu estádio de algum equilíbrio entre necessidades diárias e formas de as satisfazer (quem sabe simbolizadas um pouco na figura do Paraíso), e inventou um processo sem-fim de mais necessidades, mais produção, mais exigências, mais excedentes, maior diversificação de actividades, maior criatividade, mais problemas ou novos problemas, etc., etc.
- Naturalmente que a tecnologia da construção de abrigos/casas foi acompanhando a evolução referida, e, assim, provavelmente, (i) dos primeiros agrupamentos de famílias alargadas abrigadas em casas/cabanas redondas ou ovais feitas de madeira e/ou terra batida, e dispondo, frequentemente, de embasamentos em pedra, passa-se, a certa altura, (ii) para edifícios com plantas rectangulares, tornados possíveis pela invenção de estruturas de alvenaria portante com cantos ortogonais reforçados.
- Estas novas casas rectangulares são mais adequadas do que as anteriores arrendondadas, tanto em termos de subdivisão interna, como considerando a sua agregação urbana. Em termos da sua divisão interna as casas rectangulares e realizadas em pequenos elementos de terra argilosa seca ao sol, proporcionam a sua divisão em espaços relativamente modulados (normalmente a partir da dimensão normal dos troncos de árvores usados na construção das coberturas); em termos de agregação proporcionam a sua associação mútua em conjuntos coesos, densos e imbricados de pequenos edifícios, alguns até já com dois pisos. E assim se desenvolveram as ferramentas para constituição de povoados com alguma concentração e dimensão.
- Voltando à questão da designada “invenção” neolítica da agricultura (selecção/domesticação de plantas encontradas na natureza, como o trigo) e da domesticação e criação de animais (o cão, a cabra), os especialistas consideram, actualmente, que ela poderá ter sido posterior à própria sedentarização, e, quem sabe, possa talvez ter-se desenvolvido numa reacção de procura dos meios de sobrevivência acrescidos, que são necessários a maiores concentrações humanas. Uma situação que poderá ajudar a explicar que a “invenção” da rua terá sido posterior à do conglomerado de habitações e outros edifícios que integram as primeiras grandes povoações conhecidas; pois enquanto o homem se deslocava, com relativa facilidade, através dos terraços/coberturas dos conjuntos imbricados das primeiras povoações, podendo, a partir desses terraços, aceder por escadas ao interior das habitações; não havia já essa facilidade, seja no transporte das mais diversas mercadorias e instrumentos associados à agricultura, seja na circulação e na guarda dos primeiros pequenos rebanhos.
- No entanto, outros pré-historiadores e arqueólogos referem um outro caminho alternativo e racional no processo de sedentarização/urbanização, apontando que teria sido o próprio desenvolvimento da agricultura e as suas exigentes necessidades de transporte de bens e utensílios (ex., grandes cestos e recipientes de barro cheios de sementes), que terão levado os nossos antepassados a fixarem-se mais na vizinhança dos respectivos campos, levando ao desenvolvimento dos primeiros espaços ditos urbanos.
- Provavelmente a verdade estará numa mistura de relações de causa-efeito, associadas a situações locais e regionais específicas. E sobre esta matéria é interessante lembrar que, por exemplo, a evolução neolítica na Europa foi bastante distinta e muito tardia relativamente ao que aconteceu no Crescente Fértil; uma zona do mundo que, na prática, marcou tanto nas primeiras povoações, como depois, passados cerca de 4.000 ou mesmo 5.000 anos, na promoção, concepção e desenvolvimento das primeiras verdadeiras cidades.
Mas interessa ainda aqui comentar que, por essa altura, há cerca de 10.000 anos, na parte do mundo cujo clima e fertilidade ajudaram nesta primeira revolução civilizacional, tínhamos então algumas pequenas “cidades” super-densificadas, ou até povoados onde a densidade não tinha propriamente razão de ser considerada, pois, na prática, haveria apenas uma “grande casa” feita de casas e abrigos privados, rodeada de eventuais florestas e de alguns campos e orlas de cultivo e pastorícia, espaços estes que talvez cumprissem, em parte, a função de espaço partilhado e público; sendo “a cidade feita apenas de casas” uma espécie de reinvenção humana do próprio cenário denso, multiforme e natural/selvagem da “floresta” (termo que é aqui referido, essencialmente, à ideia de espaço natural desconhecido ou pelo menos pouco conhecido e sempre perigoso).
Fig. 03
E foi assim que, nesta fase inicial da história do habitar e da cidade, neste conglomerado orgânico e relativamente caótico de pequenas casas, a circulação comum ou pública se fez pelas respectivas coberturas em terraços, numa solução natural, quando associada a um quadro físico de edifícios mútua, multilateral e densamente encostados e mesmo imbricados uns nos outros. Uma solução espontânea de agregação e de acessibilidades, também excelente em termos de segurança face ao exterior ainda provavelmente muito bravio e desconhecido, pois facilmente as escadas móveis de acesso eram retiradas ou colocadas, consoante as necessidades do momento (ex., acesso rápido, bloqueio de acesso). E é interessante registar que por esta altura, talvez há cerca de 10.000 anos, até a religião, ou o sagrado e o mistério, “morava” nestas casas acedidas por cima, pela cobertura, e “morava” em perquenas casas como as outras, sendo apenas o recheio específico da actividade de “culto” (culto cuja natureza naturalmente é muito difícil de conhecer), e até os familiares mortos continuavam a habitar com os vivos nas suas velhas casas – e assim foi em Çatal Huyuk, na actual Turquia, talvez durante mais de 1000 anos. E é bem interesante sublinhar que as casas de Çatal Huyuk e de outras primeiras povoações tinham pinturas nas paredes, não sendo portanto apenas abrigos funcionais.
De certa forma o convívio e a troca tarão, assim, transbordado do mundo doméstico para um mundo comum/público, primeiro, quase inexistente, forçando, provavelmente ao crescimento específico deste último mundo, que acabou, talvez, por ir convivendo “entre” espaços específicos do habitar, numa natural descida ao plano térreo do povoado, que talvez tenha razões funcionais e decorra do espaço a mais que vai sendo conquistado à envolvente natural e que se vai sedimentando entre crescimentos de novos edifícios, talvez eles próprios gradualmente mais especializados.
E assim se terão criado as bases primordiais dos impasses/becos, das ruelas e das ruas, mais os seus respectivos alargamentos em “largos”, pracetas e praças...
E será, muito provavelmente, com esta mesma citação que retomaremos esta série editorial sobre a origem das cidades, após a Páscoa.
E aproveita-se para desejar uma Páscoa Feliz e em família a todos os leitores, da parte do Grupo Habitar, da edição do Infohabitar e do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do LNEC.
E desde já se refere que no próprio Domingo de Páscoa o Infohabitar editará, com todo o gosto, mais um conto do seu colaborador Adriano Rosa, intitulado "O homem que não morreu".
Notas do artigo:
(1) Rudolf Arnheim, “A dinâmica da forma arquitetónica”, trad. Wanda Ramos, 1987 (1977), p. 70.
(2) Citação de Elias Canetti, em “As vozes de Marraquexe – Notas de uma viagem”, Lisboa, Publicações Dom Quixote, trad. Isabel Ramalho, 1991 (1988), p. 43 e 44
. D. I. Loizos - Human Prehistory: An Exhibition, em: http://users.hol.gr/~dilos/prehis/prerm5.htm
. Leonardo Benevolo; Benno Albrecht – As Origens da Arquitectura. Lisboa, Edições 70, col. Arte & Comunicação, n.º 82, 2003 (2002).
. The Friends of Çatalhöyük and the Çatalhöyük Research Project - Çatalhöyük Excavations of a Neolithic Anatolian Höyük", Londres, University College, Institute of Archaeology, Catalhoyuk Research Project, em
. V. Gordon Childe – A Pré-história da Sociedade Europeia. Mem Martins, Publicações Europa-América, colecção SABER, n.º 43, 1974 (1957).
. V. Gordon Childe – Introdução à Arqueologia. Lisboa, Publicações Europa-América, colecção SABER, n.º 48, 1961.
. W.J.Kowalski - Stone Age Habitats". 1997, em:
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Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Infohabitar n.º 387
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