O arquitecto Gonçalo Byrne referiu, não há muito tempo(2004) (1), que “A grande diferença da cidade para o edifício é que a cidade é uma obra que gera espaços compartilhados onde as pessoas estão condenadas a encontrar-se; ... O facto de ser compartilhada justifica a gestão democrática, ou seja, a gestão que não exclui.”
Ora, se considerarmos que vivemos hoje, já, numa sociedade mundial em que são mais aqueles que vivem nas cidades do que aqueles que vivem fora delas entende-se, desde já, a importância do adequado desenvolvimento desses espaços de encontro e de partilha, que terão de ser sítios de estima pública e de uma gestão democrática, que tem de respeitar todos os cidadãos, mas que tem de proteger, mais cuidadosamente, aqueles mais sensíveis em termos de exigências de bem-estar e de segurança.
E aqui é sempre fundamental salientar que um dos nossos objectivos tem de ser fazer dos espaços habitacionais e urbanos sítios amigáveis para os idosos e as crianças, estimulantes do seu uso diário e intenso, e desta forma não só teremos de volta um espaço público mais apreciado e usado por estes grupos de habitantes, que são aqueles que mais intensamente usam e podem usar a cidade, como teremos também uma cidade mais habitada, mais viva e portanto mais segura; mas não tenhamos dúvidas que este objectivo de uma cidade mais amiga dos idosos e das crianças é um objectivo tão importante, como extremamente exigente, em termos de condições de bem-estar e de relação com a segurança física e pública; e além de tudo é um objectivo urgente e vital nesta nova época das megacidades; e aliás nesta nova fase da civilização humana há que interiorizar que se não seguirmos este caminho do revitalizar das vizinhanças e da vivência do espaço público, o que nos espera é um futuro sem humanidade, de pessoas isoladas nas suas habitações e entrincheiradas em condomínios, ligadas entre si apenas pelas redes de telecomunicações e cada vez mais receosas de uma vivência directa e real de um espaço urbano, que, consequentemente, será cada vez menos usado e menos seguro.
Temos, assim, de tudo fazer, para incentivar a vivência pública das mega-cidades e das grandes zonas urbanas, nelas integrando condições naturais de segurança, através da forma como planeamos, reabilitamos e gerimos uma cidade que tem de regenerar, urgentemente, em termos de vizinhanças residenciais e espaços públicos verdadeiramente amigáveis, caso contrário não haverá polícia que seja capaz de manter a ordem cívica, até porque esta não decorre apenas de qualquer conjunto de condições mínimas de segurança, mas é sim, essencialmente, consequência da possibilidade da fruição desse espaço público em excelentes condições de bem-estar e de vitalidade; e portanto quaisquer problemas, mesmo pequenos, nestas matérias, levam a uma tendência de menor uso do exterior urnano, gerando-se um nocivo círculo vicioso de menor uso e de mau uso, que resulta numa vivência do espaço público cada vez menos intensa e em comportamentos cada vez mais negativos, com os cidadãos comuns e ordeiros cada vez mais entrincheirados nas suas habitações.
Neste sentido de desenvolvimento de espaços públicos que apetece usar e compartilhar, e onde nos sentimos em companhia, porque integrados numa agradável e intensa vida urbana, há que tudo fazer para que as nossas cidades sejam amigas dos seus habitantes. Amigas no sentido da protecção e do apoio a quem nelas habita, e entre estes, privilegiando-se, naturalmente, os grupos sociais mais sensíveis e mais significativos, com um natural relevo para as crianças e os idosos, que são, aliás, aqueles grupos etários que mais contribuem para uma cidade amigável por estar viva em continuidade ao longo do dia. Mas para tal há que assegurar à cidade de hoje e às suas vizinhanças residenciais condições excelentes em termos de segurança pública, condições estas que para terem esencial viabilidade devem basear-se no desenvolvimento de um meio urbano de proximidade que seja naturalmente propiciador de segurança, considerando múltplos aspectos associados ao fazer de um bom urbanismo e que estão sistematizados nas matérias associadas ao processo/método conhecido internacionalmente como "Prevenção do Crime Através do Desenho Urbano" - Crime Prevention Through Environmental Design, e habitualmente referido pela sigla CPTED.
De certo modo podemos comentar que se houvesse uma garantia de que todas as intervenções urbanísticas novas e de reabilitação fossem realizadas com uma elevada qualidade de concepção, não seria, provavelmente, necessário este tipo de medidas de enquadramento qualitativo que visam especificamente boas condições de segurança pública nos espaços urbanos; mas como tal qualidade de concepção não é, infelizmente, regra, torna-se vital ter este tipo de cuidados designadamente quando avançamos rapidamente para um mundo super-urbanizado.
Para concluir esta reflexão apontam-se, ainda, três aspectos breves.
Um deles está bem claro numa citação daquele que é um dos mais importantes teóricos da arquitectura e do urbanismo do século XX, o Arq.º Christian Norberg-Schulz, que escreveu o seguinte: “No passado os bandidos viviam fora das muralhas, hoje estão dentro. A cidade respira brutalidade e sentimos o desejo de fugir-lhe para encontrar a paz. Por isso procuramos proteger e conservar a natureza;... com o passar do tempo não poderemos fugir mais; o arquitecto moderno deve contribuir para sanar esta situação, criando um novo ordenamento e uma nova e significativa unidade entre a paisagem e a obra do homem.” (2) - temos aqui evidente a nostalgia de uma cidade pacífica, que talvez o nunca tenha sido, mas que hoje em dia assumiu situações, por vezes, verdadeiramente desumanas e inaceitáveis para o comum dos cidadão, numa espiral de insegurança e de falta de humanidade que, continuando, colocará evidentemente em causa a própria evolução de um processo de super-urbanização marcado por adequados valores humanos, sociais e culturais.
O segundo aspecto decorre do primeiro e refere-se a estarmos no crescendo do desenvolvimento das megacidades e se não encontrarmos respostas viáveis e sustentáveis para a indegurança urbana de hoje, então o que acontecerá quando por exemplo na Ibéria tivermos a megacidade Setúbal-Lisboa-Porto-Vigo? De que forma poderemos viver bem esta mega continuidade urbana?
E o terceiro aspecto é ser fundamental interiorizarmos as duas faces de uma mesma moeda nesta matéria da insegurança urbana: é que estamos aqui a lidar com problemas novos, pois nunca houve concentrações urbanas deste tipo e com uma população tão dinâmica e com tantos e tão significativos meios de comunicação e de eventual acção criminal; e só conseguiremos encontrar respostas adequadas para estes problemas numa acção de parceria activa e prática entre as várias áreas do conhecimento, com natural destaque para a Arquitectura e o Urbanismo, a Segurança Pública e a Gestão Urbana e com uma contínua retroacção entre medidas práticas reais e reformulação e mellhoria gradual e estratégica das medidas tomadas.
Salienta-se, assim, que o caminho a seguir decorrerá de um leque diversificado de tipologias de acções: umas mais urbanísticas, outras mais sociais, outras de gestão local e de participação e outras mais policiais; acções estas que deverão ser devidamente articuladas, seja em termos de enquadramento básico das intervenções urbanas novas e de reabilitação, seja na essencial continuidade ou periodicidade do seu acompanhamento, avaliação e correcção.
Fig. 02
E nesta perspectiva é urgente dinamizar as relações téoricas e práticas entre múltiplas disciplinas e entre diversas instituições, destacando-se, naturalmente, a formação em Arquitectura e a formação dos oficiais de polícia, que é assegurada, em Portugal, pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e de Segurança Interna (ISCPSI), no qual se têm desenvolvido excelentes trabalhos de cadetes finalistas sobre estas matérias da relação entre urbanismo e segurança pública, e no qual existe já um aprofundado conhecimento teórico e prático destes assuntos que, repete-se, é urgente disseminar e cruzar com as matérias de concepção da Arquitectura urbana; e desde já o Grupo habitar se compromete a tentar assegurar acções de divulgação e de discussão destas temáticas com destaque para a "Prevenção do Crime Através do Desenho Urbano" (Crime Prevention Through Environmental Design, CPTED), numa desejável parceria com os colegas do Instituto Superior de Ciências Policiais e de Segurança Interna.
Para concluir esta reflexão ampla sobre as relações entre urbanismo e segurança, sublinha-se que a relação da segurança pública com a dinamização de uma cidade habitada e viva é um tema que está hoje bem na linha da frente das preocupações de todos nós e que começa a conciliar o interesse aprofundado tanto das forças de segurança, como de conhecidos teóricos urbanos, como é o caso de John Abraken, recomendando-se aqui a leitura quer de uma entrevista de Habraken, traduzida pelo Prof. Norberto Corrêa (3), quer de um artigo de Luís Balula (4), que equaciona a também fundamental preocupação com os aspectos éticos das medidas securitárias que são frequentemente propostas em termos de segurança pública.
E não tenhamos quaisquer dúvidas que nesta matéria e para lá de todo o tipo de medidas relativamente "passivas" ou preventivas, baseadas nas referidas amplas parcerias técnicas, numa estratégica integração de saberes e numa intensa cooperação com a população, haverá que, por vezes, tomar decisões críticas seja em termos de eventuais demolições e reformulações urbanísticas, seja no que se refere a uma efectiva acção de policiamento, baseada na acção de proximidade, mas recorrendo também à adequada previsão de outro tipo de intervenções de emergência e estratégicas.
Notas:
(1) Inês Moreira dos Santos e Rui Barreiros Duarte (entrevistadores), “Estruturas de mudança - entrevista com Gonçalo Byrne”, Arquitectura e Vida, n.º 49, 2004, p. 51.
(2) Christian Norberg-Schulz, “A paisagem e a obra do homem”, Arquitectura, n.º 102, 1968, pp.52-58.
(3) Clinton J. Andrews, “Segurança e o ambiente construído – entrevista com John Abraken”, Urbanismo, n.º 20, trad. Manuel Norberto Corrêa, 2005, pp. 20 a 25.
(4) Luís Balula, “Aspectos formais e éticos da segurança nos espaços públicos”, Urbanismo, n.º 20, 2005, pp. 26 a 28.
Infohabitar, Ano VI, n.º 298
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 16 de Maio de 2010
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