domingo, maio 23, 2010

299 - Uma cidade amigável e habitada, feita de fachadas permeáveis e de vida urbana - Infohabitar 299

Infohabitar, Ano VI, n.º 299 artigo de António Baptista Coelho

Nota: as imagens que ilustram o artigo foram tiradas em Maio de 2010 no centro de São Paulo, que, está, actualmente, cheio de força e de interesse humano e urbano.
É sempre fundamental ter bem presente e lembrar, sistematicamente, que o que nos tem de mover e aquilo que tem de ser o nosso quase único objectivo quando contribuímos para a concepção do espaço urbano é desenvolver a vida e a afectividade nas cidades e nas suas vizinhanças residenciais.

Nunca será excessivo sublinhar que o urbanismo não foi "inventado" para se desenvolverem estruturas citadinas apenas funcionais e tantas vezes "maquinais" e estruturadas ao serviço dos veículos privados; os objectivos urbanos que sempre marcaram as "boas cidades" e que têm hoje de estar presentes, mais do que nunca, neste novo século das megacidades, tem de ser a sistemática (re)humanização dos espaços urbanos, que têm de ser e de voltar a ser sítios com disponibilidades físicas, ambientais e funcionais que propiciem uma estadia intensa e prolongada e mesmo um significativo potencial de convívio, pois só assim se (re)construirão cidades efectivas e afectivas, tal como defendem Dusapin e Leclercq numa obra recente (2004) (1).



Fig. 01

Uma das condições fundamentais para se desenvolver uma efectiva afectividade citadina e residencial, é que, tal como defende Larry Ford (2), se desenvolva “uma cidade com fachadas permeáveis e com grande variedade de acessos ao nível da rua, que é muito mais dinamizadora da vida cívica do que uma cidade caracterizada por estruturas do tipo fortalezas com paredes cegas e portas invisíveis”, porque “a vida nas ruas é definida e guiada pelas características dos edifícios envolventes.”

Poderíamos ficar por aqui, e convidam-se os leitores a erflectir um pouco sobre esta excelente síntese urbanística de Larry Ford, que defende “uma cidade com fachadas permeáveis", porque “a vida nas ruas é definida e guiada pelas características dos edifícios envolventes.”

Mas podemos avançar mais um pouco sublinhando que o que aqui é salientado é a importância de uma adequada arquitectura urbana integrada por espaços públicos e edifícios e sensível em termos de respostas aos problemas mais críticos de falta de humanização e de vitalidade urbana, de insegurança e de excesso de funcionalidade, que marcam as nossas actuais grandes cidades.

Como base de tudo, há que diagnosticar adequadamente os problemas, entre os quais se destacam:
. a congestão de tráfego;
. o crescimento urbano caótico;
. a decadência física;
. a existência de muitas pessoas desocupadas;
. a reduzida vitalidade residencial e urbana em centros e periferias;
. a ausência de uma gestão urbana eficaz;
. e a insegurança pública.

E há que promover a vitalidade, designadamente, através das seguinte condições gerais:
. espaço livre ou espaço público e de uso público agradável e atraente;
. animação urbana;
. tráfego fluído;
. preservação histórica e caracterização local;
. actividades e instituições cívicas e culturais estimulantes;
. boas condições de habitação, adequadamente distribuídas e diversificadas;
. oferta de emprego diversificada;
. e boas escolas e outros equipamentos de apoio aos grupos sociais mais sensíveis (idosos e crianças).



Fig. 02

E é interessante fazermos o exercício teórico-prático de interiorizarmos que praticamente todas estas condições estão ligadas ao desenvolvimento de trechos de cidade com fachadas permeáveis, sequências urbanas e residenciais cuja vida nas ruas é definida e guiada, em grande parte das situações, pelas características dos edifícios e das construções envolventes.

E um outro oportuno exercício teórico-prático remete-nos para a crucial importãncia que a qualidade da Arquitectura urbana - aquela que se faz integradamente de edifícios e exteriores -, assume nesta cidade, desejavelmente, feita de vizinhanças humanizadas, por sua vez, desejavelmente, feitas de fachadas permeáveis.



Fig. 03

Chegamos a um novo ponto de paragem/reflexão nesta sequência de ideias e recordemos que para desenvolver a vida e a afectividade nas cidades e nas suas vizinhanças residenciais, e tal como sublinha a jornalista Ana Henriques, “não basta pensar apenas naquilo de que as cidades necessitam fisicamente”, é necessário, realmente, “dar alma aos subúrbios e domar a praga automóvel” (3); aspectos estes que remetem:

. seja para toda a outra enorme e fundamental dimensão qualitativa da Arquitectura residencial e urbana, que acabou por ir sendo quase naturalmente esquecida ao longo do Século XX, no qual a quantidade, o dimensionamento e a funcionalidade, foram, praticamente, aspectos hegemónicos, e de tal forma que parecia que nada mais existia para além deles;

. seja para a consideração da principal localização e para a caracterização global da maior gravidade do problema que se foi criando, e que se refere, essencialmente, ao enorme mundo dos centros urbanos sem vida e dos subúrbios sem alma, que foram surgindo e que se foram estendendo desde há mais de cinquenta anos e que ameaçam marcar intensamente o actual século das cidades, designadamente, através de espaços de "não-vizinhança", constituídos por elementos puramente funcionais e pouco ou nada afectivos e marcados por edifícios e conjuntos urbanos com fachadas expressivamente impermeáveis às vistas e aos usos mistos interiores e exteriores.

Considerando estas periferias densas e desorganizadas, mas numa reflexão que, sem custo, se pode doirigir aos centros urbanos sem vida consistente/continuada, Alain Cluzet (2003) (4) defende a urgência de se reconquistarem as cidades como espaços humanizados e de vida, tanto no que se refere aos usos e morfologias, como nas próprias relações sociais. Mas para uma tal reconquista as cidades devem (re)qualificar-se como espaços devidamente cuidados e humanizados, aos mais diversos níveis, evidenciando-se aqui a grande importância dos aspectos básicos ligados, designadamente, ao conforto ambiental, com algum destaque para o conforto acústico (ausência de ruído incomodativo), ao mobiliário urbano adequado e à oferta de evidenciadas condições de limpeza, aspectos estes, que se podem considerar como de primeira linha na melhoria de uma qualidade urbana global - e que são apontados num livro coordenado por Myron Magnet (5).




Fig. 04

Num outro registo, mais global e de síntese, e usando as sábias palavras de Amos Rapoport (1977), podemos sublinhar que:

“A habitação e as suas envolventes são regiões privadas por excelência contrastando com a natureza pública da cidadania com uma totalidade. O Bairro (se realmente existe, como deveria ser) proporciona-nos um elemento mediatizador semi-público, semi-privado, etc, e se estes elementos falham, o sistema pode falhar. Qualquer cidade pode ser considerada como uma selecção de subsistemas com vários graus de publicidade e privacidade, frontalidade/«posterioridade» e separados por diversas barreiras e necanismos …, o domínio privado, variável; as transições e os espaços semipúblicos e semiprivados muito variáveis; e o domínio público medianamente variável.”(6)

E, naturalmente, se imaginarmos grandes pedaços de cidade onde pura e simplesmente não existem grande parte desses aspectos de "mediatização" e de limiar entre mundos de privacidade e de publicidade ou convialidade potencial, o sistema pode realmente continuar a falhar, e falhar cada vez mais de forma muito significativa e muito grave, e não tenhamos dúvida que nessa mediatização de relações é fundamental a construção de vizinhanças humanizadas e a presença efectiva de fachadas permeáveis, que aliás são fundamentais elementos dessa humanização.



Fig. 05

Aprofundando ainda mais um pouco estas matérias e utilizando-nos da tipologia de acções do Project for Public Spaces (PPS) (7), uma organização não lucrativa de apoio técnico cuja missão fundamental é ajudar a desenvolver e manter espaços públicos indutores e criadores de convívio sustentado e de espírito comunitário, chama-se a atenção para a importância que tem uma acção local, bem participada pela população e bem pormenorizada, na construção de sequências urbanas mais activas, afectivas e, portanto, mais efectivas em termos de vida urbana e mais seguras na sua vivência.

E neste sentido apontam-se, em seguida, questões e aspectos concretos que baseiam, actualmente, a actuação do Project for Public Spaces (PPS), retirados de documentos do PPS consultados em 2006:

. Por que razões são os sítios importantes para as cidades?
. O que é que faz a grandeza de um sítio?
. Por que razões tantos espaços públicos falham?
. Por que razões são alguns sítios melhores do que outros?
. Por que razões saímos dos nossos carros em certos lugares, para os conhecer e usar, e nos desviamos de outros lugares?
. Por que razões são alguns jardins elementos valiosos das suas respectivas comunidades, enquanto outros são sítios a evitar?
. O que fazer se queremos transformar os nossos espaços públicos em elementos positivos das nossas comunidades e vizinhanças, mas não sabemos como os desenvolver e vitalizar?
. Como é que transformamos os nossos espaços públicos em afirmados espaços de convívio e comunidade.

Tal como fica evidente na consulta ao excelente site do Project for Public Spaces, que vivamente se recomenda, muita da urgente (re)humanização das nossas cidades passa:

. pela sua devolução a um intenso e motivador uso pelos seus habitantes;

. que, por sua vez, depende de uma sua adequada caracterização e valorização cultural;

. que muito depende de uma forte integração entre edifícios, espaços públicos e zonas de limiar;

. uma integração que passa pela referida permeabilidade das fachadas conjugadas em ruas resgatadas aos veículos e devolvidas ao peão e à animação urbana, mas de uma forma viável, não fundamentalista e que aproveite toda a evolução em termos de novas formas de tráfego, com relevo para os transportes públicos.


Entenda-se, ainda, e para concluir este texto que tudo isto - a circulação pedonal, a eficácia dos transportes públicos, a cidade mais habitada e mais viva e as tais fachadas permeáveis, que são afinal a base dos ricos e apetecíveis espaços de limiar entre interior e exterior - se liga a uma renovada forma de viver a cidade com vagar e com intensidade nos seus espaços públicos, um vagar que propicia a melhor observação e, eventualmente a estadia, e um vagar que irá, assim, produzir actividades, animação e, portanto, dinamização económica local e, naturalmente, apropriação e relações contínuas de acompanhamento e de segurança no uso.

Pois, afinal, a cidade é o espaço público, construído pela circulação física das pessoas e pela sua visibilidade mútua,ainda que por vezes este espaço penetre e circule no e entre os espaços edificados que o envolvem e conformam.

Notas:


(1) Dusapin, F. Leclercq., “Villes affectives, villes effectives“, 2004.
(2) Larry Ford, “The Spaces between Buildings”, 2000.
(3) Ana Henriques, “Dar alma aos subúrbios e domar a praga automóvel”, Público, 4 Fevereiro 2005.
(4) Alain Cluzet, “Au bonheur des villes“, 2003.
(5) Myron Magnet (org.), “Paradigma urbano – as cidades no novo milénio (The Millennial City)”, 2001 (2000), pp. 479 e 415.
(6) Amos Rapoport, “Aspectos humanos de la forma urbana – Hacia una confrontación de las Ciências Sociales con el diseño de la forma urbana”, 1978 (1977), p.265.
(7) Project for Public Spaces, “How to Turn a Place Around”, 2000.

Infohabitar, Ano VI, n.º 299
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte, 23 de Maio de 2010

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