Cidade hostil – Lúcia Leitão no Infohabitar e no LNEC
Artigo e palestra de Lúcia Leitão
Hoje é um dia feliz na edição do Infohabitar pois podemos oferecer aos nossos leitores um excelente artigo da Profa. Dra. Arq.ª Lúcia Leitão, associado a uma temática, infelizmente, na ordem do dia, a da violência urbana, mas que, naturalmente, não se esgota nessa matéria, reflectindo sobre a configuração urbanística da cidade brasileira.
A colega Lúcia Leitão integra o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, no Recife, e estará, entre nós, em Lisboa, na Sala 2 do Centro de Congressos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), às 16h 00m da segunda-feira dia 8 de Junho de 2009 (entrada livre, não implica inscrição, apenas depende da capacidade da sala), numa organização conjunta do Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do LNEC e do Grupo Habitar (GH) – constituindo a 15ª Sessão Técnica do GH.
A arquitecta Lúcia Leitão é autora de diversos livros sobre as temáticas do habitar e do urbanismo, destacando-se, por exemplo, um excelente livro organizado em cooperação com Luiz Amorim e intitulado “A casa nossa de cada dia” – editado em 2007 pela Editora Universitária UFPE – e irá apresentar no LNEC o seu último e recente livro intitulado:
"Quando o ambiente é hostil - uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e Mucambos", cujo sumário e parte do capítulo introdutório são anexados a seguir à edição do artigo realizado pela autora, especialmente, para o nosso Infohabitar.
Fig. 01: capa do novo livro
Estão, desde já todos convidados para o encontro na Sala 2 do LNEC, às 16h 00m da segunda-feira dia 8 de Junho de 2009, e fiquem, agora, com o artigo de Lúcia Leitão: MARCAS IDENTITÁRIAS E CONFIGURAÇÃO ESPACIAL DA CIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA.
António Baptista Coelho
Editor do Infohabitar
MARCAS IDENTITÁRIAS E CONFIGURAÇÃO ESPACIAL DA CIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
por Lúcia LeitãoPrograma de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Recife, Brasil, e-mail: luleitao@hotlink.com.br
Resumo:
O objetivo do texto ora proposto é mostrar como a casa-grande, centro da organização social do Brasil patriarcal, espaço essencialmente privado, repercutiu na configuração urbanística da cidade brasileira. Trabalha-se com a hipótese de que o nascimento desprestigiado da rua —o espaço público por excelência— no Brasil colônia, e mesmo no Império, produziu um ambiente hostil, com repercussões sócio-espaciais ainda pouco consideradas pelo urbanismo brasileiro. As referências teóricas vêm da sociologia gilberteana (Sobrados e Mucambos, 1936) e da psicanálise. Nesta, considera-se o conceito de identificação (Freud, Psicologia das massas e análises do eu, 1920-21) e a idéia de ambiente hostil de Mitscherlich (Psychanalyse et urbanisme, 1970). Sob essas referências, argumenta-se que, edificada em torno do espaço privado — cuja manifestação atual são os shopping centers e os condomínios fechados contra a rua, à semelhança da casa-grande— a cidade brasileira ainda não construiu o seu espaço público, circunstância que favorece a manifestação da violência que assola o país. Conclui-se o texto argumentando que o modo como produzimos e como usufruímos a cidade constitui-se num elemento importante quando se busca enfrentar a questão da violência em suas múltiplas e complexas faces.
Em texto publicado originalmente em 1965, o psicanalista alemão Alexander Mitscherlich escreveu assim: “A maneira como damos forma ao nosso ambiente é a expressão do que somos internamente” (p. 62). Com essas palavras, surpreendentes para a arquitetura, certamente, o autor citado chama a atenção para a dimensão subjetiva do espaço edificado.
É essa ideia, pois, o ponto de partida para as reflexões esboçadas aqui. Ao longo do texto, argumenta-se, ainda que sucintamente, que o espaço edificado na cidade contemporânea brasileira — fechado, segregador e excludente como poucos — reproduz, espacialmente, os valores mais caros da sociedade brasileira, da colônia aos nossos dias.
Para construção do argumento, toma-se como ponto de partida a casa-grande do Brasil patriarcal, o ambiente onde “até hoje melhor se expressou [inclusive espacialmente] o caráter brasileiro” (Freyre, 1933, p. XXXI). Com isso, busca-se fazer ver que menos o medo da violência urbana que assola o Brasil e mais as marcas identitárias constituintes da sociedade brasileira definem a forma hostil que o ambiente construído apresenta no País.
Gilberto Freyre, ao longo de sua vasta obra, chama a atenção para o fato de que a sociedade brasileira se constituiu em torno do privativismo, da domesticidade e do centralismo. É evidente que a discussão dessas categorias sociológicas excede os objetivos e limites deste texto. Assim sendo, explora-se, a seguir, a manifestação desses elementos no ambiente construído que o Brasil apresenta desde o período colonial.
Três elementos basilares na produção do espaço edificado, a meu ver, materializam, nesse espaço, os elementos constitutivos da sociedade brasileira mencionados anteriormente. O primeiro diz respeito à localização do edifício no sítio, o segundo refere-se à forma que a edificação apresenta. Por fim, o terceiro elemento trata da função do edifício na produção do ambiente construído no País.
No que diz respeito à localização, importa lembrar que o espaço de morar, no Brasil, sempre deixou clara a ideia de poder, de distinção, de privilégios, própria do centralismo que caracteriza o modo de viver dos donos do poder no País. Assim, não é à toa, nem fruto apenas das condições topográficas, que a casa-grande patriarcal se localizava no mais alto lugar do sítio. Muito ao contrário, essa localização era em si mesma uma evidência do poder, do comando do senhor patriarcal sobre todos que estavam à sua volta.
É verdade que, do ponto de vista racional, essa localização possibilitava a supervisão, pelo senhor do engenho, da produção que se dava a seus pés. Mas é também verdadeiro que, do ponto de vista dos valores sociais, essas casas sublinhavam o poder e a distinção inerentes aos que habitavam as casas-grandes brasileiras, um fato que não passou despercebido a Louis Vauthier, o perspicaz observador da sociedade local nos tempos idos do Brasil Império. Diz Vauthier:
Se, afastando os olhos da beira-mar, estender a vista além, distinguirá [...] sobre a encosta de alguma colina [...] uma casa branca erguendo-se à altura de muitos degraus acima do nível do chão e situada de modo a permitir a observação fácil de tudo que se passa no interior do vasto pátio da usina. Ele [o viajante] lerá nos traços dessa arquitetura que existem ali senhores [...] (citado por Freyre, 1960, p. 807, destaques meus).
Como se vê, a localização do edifício era um fator essencial ao exercício do mando, próprio da casa-grande patriarcal. Uma escolha situacional em tudo compatível com o centralismo que nela tinha lugar. Afinal, como se sabe, nenhum fato relevante da vida nacional acontecia fora do raio de influência daquele ambiente socioespacial.
No que diz respeito à forma, convém sublinhar que o acesso a essas casas se dava por meio de muitos degraus, como bem anotou Vauthier no texto citado. Assim, era preciso subir para se chegar ao lugar do poder. Era, pois, esse poder, ou esse valor social, que encontrava sua forma no edifício que se erguia muito acima do rés do chão. Uma ideia perfeitamente aprendida pelos escravos que se referiam “respeitosamente” a esse espaço como a casa-grande, ainda de acordo com as anotações do arguto engenheiro francês na obra mencionada.
No sobrado, a forma que a casa-grande assumiu quando se fez urbana, essa marca de distinção própria da configuração espacial no Brasil se mantém. Afinal, habitar o sobrado era símbolo inequívoco de poder e prestígio. Tanto e em tal medida que até as prostitutas da época eram distinguidas pelo espaço que ocupavam: as “aristocráticas” habitavam o sobrado, enquanto a “escória” ocupava o andar térreo, anotou Freyre (1990, p. 159, citando o médico Lassance Cunha).
A opção pela forma vertical para a habitação, o sobrado, como se vê, não se deveu apenas à escassez de terrenos ou a condições topográficas desfavoráveis à construção de edificações horizontais. Essa é apenas a face racional da moeda. A outra face sugere que a busca por status, por assinalar poder e mando — herança do centralismo patriarcal —, é o elemento propulsor desse modo de habitar. Uma evidência disso aparece no fato de que, no sobrado, os espaços térreos jamais eram utilizados pela família patriarcal. Neles, acomodavam-se escravos, produtos que vinham do engenho, viajantes, etc., mas nunca a família patriarcal.
Assim, merece reparo o argumento de que a verticalidade excessiva dos espaços de morar na cidade brasileira contemporânea é pura decorrência do medo de habitar espaços térreos, difundida na afirmativa de que “morar num edifício é mais seguro”. Na verdade, essa opção de morar expressa um valor social, uma marca identitária, que encontra sua expressão formal na medida em que associa verticalidade e distinção, altura e poder. Não é por acaso, pois, tampouco por razões puramente econômicas, que os apartamentos custam mais à medida que se situam nos andares mais altos de cada edifício.
Um outro elemento próprio da arquitetura brasileira, ainda no que se refere à forma, diz respeito ao fato de que o espaço edificado se volta para dentro, fecha-se em si mesmo. Dessa feita, é a domesticidade o elemento a determinar o arranjo formal que o espaço materializa.
Na casa-grande, essa ideia se expressa nos ambientes onde a vida acontece, ou seja, nos espaços realmente utilizados pela família patriarcal, todos eles voltados para dentro, afastados espacialmente do ambiente externo. Mas é no sobrado que essa domesticidade, tida como marca identitária ou como expressão do que somos internamente, conforme queria Mitscherlich, acentua-se.
Dessa vez, a planta baixa é o elemento que deixa à mostra as marcas identitárias da sociedade no modo de produzir o seu espaço edificado. No sobrado brasileiro, a sala de viver, uma denominação por si mesma significativa, o espaço onde a família efetivamente vivia, sobretudo a dona da casa e suas filhas, situava-se no fundo, voltada para o quintal. A sala de visitas, o espaço supostamente voltado para a rua, para o que não é doméstico, familiar, permanecia vazia, subutilizada, inacessível até para as mulheres da casa, como assinala Vauthier no texto já citado.
Ainda no que diz respeito à forma do sobrado brasileiro, chama a atenção o fato de que até mesmo as janelas eram muitas vezes falsas. Compunham a fachada, mas não se abriam para a rua. Assinalavam, desse modo, uma vez mais, a força da domesticidade na sociedade — e na cidade — brasileira de então. No que diz respeito ao urbanismo, Freyre registra o fato de que esses ambientes eram espaços fechados contra a rua (1990) — o espaço público, não doméstico, portanto —, tida como espaço vulgar, destinado ao pobre, ao socialmente bastardo.
Esse modo de morar, na verdade um modo de pensar e de viver, expressão do que somos internamente, como diria Mitscherlich, repita-se, causou espanto a muitos viajantes que por aqui passaram e que estavam acostumados a outros modos de viver. Fechada para a rua, presa à domesticidade, tida como um valor a preservar, a família patriarcal mantinha-se no cárcere privado que, para si mesma, havia edificado. E não por medo, mas, sim, por pretensa fidalguia. Um registro feito pelo médico Lima Santos, publicado pelo Diario de Pernambuco nos anos idos de 1855, não deixa dúvidas quanto a isso:
Verdade é que o grande luxo da terra — um dos sinais de fidalguia, de grandeza e de grande distinção — é o sair à rua o menos possível, ser o menos visto possível e se confundir o menos possível com essa parte da população que os grandes chamam de povo e que tanto abominam (citado por Freyre, 1990, p. 39).
Outra vez, constitui-se apenas como meia verdade a justificativa de que se evita a rua porque a cidade brasileira contemporânea é violenta e insegura. Na verdade, a recusa da “elite” em frequentá-la faz desses ambientes espaços mais e mais violentos, precisamente pelo processo de desertificação que eles vivem (Jacobs, 2000). Nesse ponto particular, muros altos, fechados contra a rua, edificados em excesso na cidade atual são literalmente tiros dados no pé. Não apenas não garantem segurança — como se constata com a divulgação frequente pela mídia de assaltos realizados em prédios seguros, murados, eletrificados e bem guardados, etc. —, como fazem da rua um ambiente mais e mais hostil. Na verdade, esses muros são elementos que mais segregam do que protegem, uma vez que permitem aos moradores “ser o menos visto possível e se confundir o menos possível com essa parte da população que os grandes chamam de povo e que tanto abominam”, essa, sim, sua real função, de onde se tem a hostilidade que expressam.
Destarte, na cena urbanística da cidade do Brasil contemporâneo, o espaço que dá forma à domesticidade se manifesta na escolha por erguer e habitar espaços frequentados apenas pelos iguais, por aqueles que pertencem ao mesmo agrupamento social, a versão atualizada da família patriarcal brasileira.
Fig. 02, casas fechadas contra a rua em bairro “nobre” do Recife contemporâneo; Foto: Diogo Barretto.
Fig. 03, casas fechadas contra a rua em bairro “nobre” do Recife contemporâneo; Foto: Diogo Barretto.
Por fim, chega-se ao derradeiro elemento, a função do espaço edificado. Mais um elemento a explicitar a produção de espaços compatíveis com o que somos internamente. Agora, é o gosto pelo que é privado que parece definir a produção do espaço, ou seja, o privativismo, em linguagem gilbertiana.
A casa-grande patriarcal era um espaço múltiplo, destinado a abrigar todas as funções requeridas pela sociedade de então em um único e mesmo edifício. Freyre registrou isso ao assinalar que essa casa era de fato um “[...] bloco repartido em muitas especializações — residência, igreja, colégio, botica, hospital, hotel, banco” (1990, p. XLVI). Ainda nessa direção, diz Freyre:
[...] lembre-se de que, durante anos, esteve ligada à casa a figura do médico da família. No seu cabriolé, vinha às casas ver doentes [...]. Além do que, quase todo menino nascia em casa [...].Também vinha a casa o cabeleireiro cortar o cabelo e fazer a barba de ioiôs e comodistas. A professora ou o professor particular de piano. A de canto. A de francês. A de inglês. A costureira. [...] A vendedora de renda ou bico. O vendedor de bugingangas: sabonetes, loções, perfumes. O de galinhas. O de verduras. O de vassouras. O de espanadores. O de milho verde. O de melaço. O italiano da macaca: que no portão fazia dançar a sua macaca (Freyre, 1979, p.14-15).
Como se vê, todos os eventos que faziam a vida da família patriarcal tinham lugar num único e mesmo edifício. O uso múltiplo dado a um mesmo edifício cumpria perfeitamente, nesse caso, o papel que esse edifício deveria desempenhar, o de manter a “aristocracia” brasileira bem longe da rua.
Não é difícil, pois, perceber que, associada à forma, a função múltipla da casa brasileira — ou do espaço edificado no Brasil, a versão ampliada dessa casa — também se constitua em um elemento que consolidava espacialmente o centralismo, a domesticidade e o privativismo como marcas identitárias da civilização que se ergueu nos trópicos, como diria Freyre. Inconscientes por definição (Freud, 1929–1930), essas marcas têm perpetuado um mesmo modo de edificar, reproduzido indefinidamente por gerações sucessivas de brasileiros.
Na cidade contemporânea, a reprodução desse caráter definidor do espaço aparece, por exemplo, em dois tipos particulares de edificações: o shopping center e os condomínios residenciais, ambos espaços fechados para a rua, ambos ambientes que encontraram sua forma de ratificar o centralismo, a domesticidade e o privativismo próprios da sociedade brasileira.
O texto a seguir ratifica essa ideia quando comparado com o que anotou Freyre sobre a função da casa-bloco patriarcal, fechada para a rua, registrado antes:
Em um dia comum, a dona de casa Adriana, 39, sai de manhã para a sua aula de ginástica, passa pelo salão de beleza para fazer as unhas, leva o filho ao curso de inglês e compra no mercadinho algum ingrediente que falta para o almoço. Ao fim do dia, ainda acompanha os treinos da filha na quadra de tênis e, se der, assiste a um filme com as amigas. Para fazer todas essas atividades, porém, nem ela nem os filhos precisam colocar um pé que seja para fora do condomínio [...] (Folha de S.Paulo, jun. 19, 2005, destaques meus).
Como se vê, o medo e a insegurança urbana são meros pretextos, socialmente aceitos, para um modo de edificar privativista ao extremo. Afinal, falar em distinção, em status, em privilégios, pode soar “politicamente incorreto”, enquanto o medo pode ser facilmente compreendido e aceito. De fato, continuamos a edificar o ambiente construído brasileiro com a intenção explícita de impedir que os usuários desse ambiente sejam confundidos “com essa parte da população que os grandes chamam de povo e que tanto abominam” e de modo a facilitar a vida daqueles que pensam que “sair à rua o menos possível” é sinal de distinção e de pretensa fidalguia.
À guisa de conclusão
A arquitetura nunca foi neutra. É ingênua a ideia de que a forma espacial resulta do acaso ou de meras circunstâncias conjunturais ou, ainda, a impressão de que a forma edilícia decorre somente da inspiração e do talento pessoais dos desenhadores do espaço. Muito ao contrário: o objeto arquitetônico é marcadamente um fato cultural. Materiais empregados, técnicas construtivas, forma espacial, etc. são definidos de acordo com a época e com os valores mais caros a cada sociedade.
Dessa forma, a produção contínua de “cárceres privados” na cena urbanística brasileira expressa não apenas uma busca legítima por ambientes mais seguros, mas também, e talvez principalmente, o modo como somos internamente, as marcas identitárias que definem a sociedade brasileira — da colônia aos nossos dias.
Erguemos edifícios altos, fechados para a rua, porque temos um profundo desprezo pela rua, o espaço público por excelência. Edificamos muros altos, com guaritas e cercas, não apenas para nos proteger de um ambiente hostil, mas porque somos uma sociedade segregadora como poucas. Fechamos-nos em condomínios e em shopping centers não apenas por comodidade ou porque nos sentimos inseguros em outros espaços, mas antes porque tais ambientes, de longe, anunciam a todos, como diria Vauthier, que são esses os espaços onde estão os senhores que se não querem confundir com a plebe (Leitão, 2009).
Assim, para além da forma a partir da qual o espaço edificado é mais facilmente percebido, nele está inscrito todo um conjunto de valores e enunciações culturalmente definidos, valores subjetivos que nos fazem brasileirinhos da silva, como anotou Freyre.
Referências bibliográficas
FREYRE, Gilberto. [1933]. Casa-grande e senzala: formação da família patriarcal brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt, 1933.
FREYRE, Gilberto. [1936]. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.FREYRE, Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
FREUD. S. Obras completas de Sigmund Freud. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1973.
JACOBS, J.Morte e vida nas grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LEITÃO, Lúcia. Quando o ambiente é hostil: uma leitura urbanística de Sobrados e Mucambos e outros ensaios gilbertianos. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009.
Apresentam-se em seguida o sumário e parte do capítulo introdutório do novo livro de Lúcia Leitão, que será apresentado dia 8 de Junho no LNEC e intitulado:
"Quando o ambiente é hostil - uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e Mucambos"
Fig. 04: capa do novo livro
Sumário
Palavras Introdutórias
1 Da Casa-Grande à Cidade Contemporânea
Anotações preliminares
2 O Reinado da Casa
A casa como obra coletiva
A casa como centro social
Uma casa brasileira
3 A Negação da Rua
O sobrado diz não à rua
Um espaço plebeu
4 Brasileirinha da SilvaUm espaço rejeitado
Mostra-me teu espaço
5 Um Traço Identitário
Anotações finais
Da hostilidade
Para o acolhimento
Referências Bibliográficas
Fig. 05: imagens do novo livro
Vende-se huma preta de bons costumes, muito ágil para todo o serviço de uma casa, tem 16 annos de idade e sempre tem sido criada sem sahir á rua [...] para todo o serviço de uma casa de portas a dentro.
Anúncio publicado no Diario do Rio de Janeiro em 28 de outubro de 1821, reproduzido por FREYRE, G. 1990, p. 47, destaques meus.
Dois pintores brasileiros de hoje podem ser apresentados como poetas [...]. Num, sobrevive principalmente um menino de casa-grande — o de Jundiá — com as lembranças ou relembranças pungentes de carinhos de mãe por filho, de chamegos de primo com primas, de amores de ioiôzinho com negras, de aventuras com animais — tudo dentro de salas, de alcovas, de alpendres, de restos de senzalas. Tudo à sombra da casa. Noutro, sobrevive um menino criado em sobrado de pai rico, comissário de açúcar, residente na Madalena do Recife: casa de azulejo dando para o rio, portão de ferro rendilhado separando o filho mimado da rua, dos perigos da rua, das vulgaridades da rua.
FREYRE, G. 1979, p. 68, destaques meus.
Fig. 06: imagens do novo livro
Palavras Introdutórias
Na introdução de Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre explica as razões que o levaram a debruçar-se sobre o tema que o envolveu durante toda a sua vida. A necessidade de melhor entender a civilização que nascia nos trópicos foi o mote que o fez empreender a aventura intelectual da qual deriva sua obra.
Seguindo-lhe os passos, nesse sentido em particular, chama-se a atenção do leitor, logo de partida, para as razões que fizeram surgir o texto que ora se apresenta. Tal como em Freyre, também uma inquietação está na origem das notas aqui esboçadas. O mote, no entanto, foi dado por uma pergunta feita à queima-roupa a um candidato a prefeito, durante uma das últimas campanhas eleitorais realizadas no Brasil: Por que não há parques públicos na cidade?, quis saber o entrevistador.
A indagação ficou mais instigante quando se atentou para o fato de que a cidade em questão dispõe de diversos parques, mais de duas centenas de áreas oficialmente reconhecidas como espaços públicos, além do sistema viário, naturalmente. A questão era outra, portanto. Na verdade, a pergunta apontava para um não reconhecimento, como tal, do espaço público que a cidade apresenta. Nasciam, desse modo, naquele momento, as primeiras ideias que dariam origem a este ensaio.
A dificuldade do entrevistado, assim como a própria pergunta formulada, apontava para o fato de que a escrita gilbertiana ainda não se havia esgotado, como, aliás, convém aos textos que se tornam clássicos. Tanto é assim que representantes do grupo que se assenta no topo da nossa pirâmide social desconheciam, aparentemente, elementos básicos da cultura que nos faz brasileirinhos da silva. Como consequência, ignoravam, em particular ― como indica tanto a pergunta quanto a tentativa de resposta ―, as implicações espaciais do modo como se deu o desenvolvimento do urbano na vida brasileira.
Este texto decorre, pois, da questão anotada sumariamente acima. Com ele, pretende-se oferecer ― à luz da escrita gilbertiana, e sob o foco do urbanismo e com apoio em alguns conceitos-chave da teoria psicanalítica ― uma contribuição para que se possam melhor compreender as razões que talvez estejam na origem do ambiente claramente hostil que muitas cidades brasileiras apresentam.
Erguida privilegiando o espaço privado, tido como nobre, distinto, vip, a cidade brasileira não pode ainda consolidar o seu espaço público, ou mesmo edificá-lo ― hipótese a partir da qual se constrói o argumento central deste texto. Ao contrário, edificou um ambiente hostil que segrega, que exclui, que separa, com todas as consequências sociourbanísticas decorrentes desse modo de edificar.
Elaborado como uma escrita livre, destinado ao público em geral, este ensaio é um texto eminentemente opinativo. Não se trata, portanto, de uma tese produzida com o rigor conceitual e metodológico que caracteriza esse tipo de produção acadêmica. Aqui não se verá a angústia da prova ― essa palavra carregada de ansiedade, segundo assertiva feliz de Richard Sennet ― mas, sim, uma ideia a compartilhar. É nesse sentido que ele deve ser lido.
As referências teóricas vêm notadamente de Gilberto Freyre e, em menor medida, da teoria psicanalítica. A escolha por Freyre se justifica pela riqueza de detalhes sobre a arquitetura e o urbanismo do Brasil patriarcal ao longo da sua obra, e não por se minimizar a importância de outros autores que se debruçaram, com muito brilho, sobre a formação da sociedade brasileira. Com relação à teoria freudiana, alguns conceitos ajudam a compreender que motivações subjetivas podem ditar o modo como produzimos o ambiente construído.
Cinco capítulos compõem o texto. No primeiro deles, estão as anotações preliminares redigidas com o objetivo de indicar as questões principais que estiveram na origem das reflexões que ora se apresentam ao leitor, as primeiras definições conceituais, bem como os objetivos e limites disciplinares deste ensaio.
No segundo capítulo, apresentam-se três idéias da obra de Gilberto Freyre consideradas fundamentais para que se tenha uma melhor compreensão do modo como se deu o reinado da casa no Brasil patriarcal, ponto de partida para o argumento que se desenvolve neste texto. Em outras palavras, apontam-se as razões que fizeram a sociedade brasileira organizar-se no abrigo do espaço privado ― da colônia aos nossos dias ―, conforme se quer mostrar aqui.
No terceiro, tem-se como objetivo mostrar como e em que medida a paisagem social existente durante o tempo em que se deu o desenvolvimento do urbano ― como se refere Freyre àquele momento da história nacional ― definiu um ambiente urbano usufruído um tanto a contragosto pela sociedade brasileira de então. Um espaço edificado onde essa sociedade expressou, claramente, uma profunda negação da rua, com repercussões importantes na configuração espacial que definiria a cidade brasileira desde então.
Em brasileirinha da silva, expressão gilbertiana que nomeia o quarto capítulo, pretende-se mostrar como as razões que definiram e consolidaram o reinado da casa e, consequentemente, a negação da rua, perduram na sociedade brasileira assim como no espaço que essa sociedade edifica. E como essas mesmas razões, revistas e atualizadas, continuam a determinar, ainda nos dias que correm, o papel menor, secundário, desprestigiado, que o espaço público desempenha ― quer na forma, quer no uso, quer nas funções ― nestas terras tropicais, independentemente dos custos sociais e urbanísticos que se paga por isso.
Em Um traço identitário, apresentam-se as anotações finais, onde estão esboçadas as conclusões a que se chegou com as questões que nortearam o processo reflexivo.
A segunda razão a justificar a publicação que ora vem às mãos do leitor é que as ideias aqui apresentadas na forma de um breve ensaio obteve, em 2006, o prêmio Antônio Carlos Escobar - Construindo alternativas em segurança pública, promovido pelo Instituto Antônio Carlos Escobar – Iace , com sede no Recife. Com sua publicação, em versão ampliada em relação ao texto premiado, cumpre-se o compromisso de divulgação do texto assumido com aquela instituição.
Por fim, uma outra informação relevante é que as ideias ora apresentadas deram origem a uma pesquisa acadêmica, atualmente em curso, aprovada e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, com a qual se pretende aprofundar a investigação das hipóteses formuladas. Essa pesquisa, denominada Da casa à cidade: expressão da subjetividade e configuração espacial, vem sendo desenvolvida no Núcleo de Estudos da Subjetividade na Arquitetura – NusArq, grupo de pesquisa integrante do Laboratório de Estudos Avançados em Arquitetura – lA2, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco.
Notas:
(1) SÁ CARNEIRO, A. e MESQUITA, L. Espaços livres do Recife. Recife: Prefeitura do Recife/UFPE, 2000.
Referências editoriais:Editora Universitária UFPEAv. Acadêmico Hélio Ramos, 20. Cidade UniversitáriaCep.: 50.740-530
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Infohabitar: Lisboa e Encarnação – Olivais Norte
Edição de José Baptista Coelho
1 de Junho de 2009
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