segunda-feira, maio 18, 2009

247 - "Maus" bairros, "bons" bairros: aprofundar as boas práticas de habitação social - Infohabitar 247

Infohabitar, Ano V, n.º 247

"Maus" bairros, "bons" bairros: aprofundar as boas práticas de habitação social
António Baptista Coelho


Nota prévia geral: o artigo da colega Marilice Costi, programado para a presente semana, e que tratará alguns aspectos da arquitectura dos espaços pedagógicos será editado na semana que vem, aqui, no Infohabitar.
Nota prévia ao artigo: entende-se, e é sugerido ao longo e no final do artigo, que, naturalmente, não será de um excelente desenho urbano e habitacional que decorrerá a solução dos mais variados problemas sociais; acredita-se, no entanto, que o “desenho” da cidade e do habitar, ou da habitação, pode ajudar, e muito, na melhoria desses problemas; o texto que se segue é desenvolvido nesta perspectiva.


Fig. 01

Introdução

A propósito do que aconteceu, há poucos dias, na Bela Vista, em Setúbal, e do que aconteceu, muito recentemente e novamente, em Chelas, Lisboa, lembram-se alguns aspectos que caracterizaram o que de melhor se fez, em Portugal, nos últimos decénios, em “habitação de interesse social”, comentando-se que poucos desses aspectos estarão presentes na Bela Vista, em Chelas e em outros dos nossos bairros e agrupamentos hoje considerados críticos.

Termina-se com alguns comentários, muito breves, sobre o futuro destas matérias; comentários estes em que se incluem alguns parágrafos de um artigo editado no Infohabitar em 9 de Março de 2005, também a propósito de um problema desta natureza; o que dará para reflectir sobre a possibilidade de podermos vir ainda aqui a “repetir” esta temática daqui a mais alguns anos – espera-se que assim não aconteça.

Para “contrastar” e porque se acredita, inteiramente, numa via de se aprender com os bons exemplos que, entre nós, já existem, em quantidade e qualidade, a ilustração é toda ela referida, a título de exemplo, a um excelente agrupamento de habitação de realojamento na Guarda, Bairro do Pinheiro, promovido pelo município da Guarda em 1995, portanto já há quase 15 anos, com projecto do Arq. Aires Gomes de Almeida e GAT da Guarda, para 53 famílias e alguns equipamentos de proximidade, e que foi visitado e fotografado há poucos dias; e a ideia é, naturalmente, apontar que neste caso, praticamente, tudo o que se irá referir como aspectos de qualidade a implementar em habitação de interesse social se cumpriu, e o resultado está à vista, numa intervenção que cooperou no fazer de mais um pouco de cidade humanizada – e sublinha-se que este é apenas um exemplo de muitos que é possível visitar e estudar, no local, em Portugal, e de replicar nos seus aspectos de estruturais de processo de projecto, obra e gestão local continuada.


Fig. 02

Linhas de concepção e acção que marcam os nossos melhores exemplos de habitação de interesse social

São as seguintes as linhas de concepção e acção que marcam os nossos melhores exemplos de habitação de interesse social

Integração social e adequação aos habitantes
É essencial a integração social no habitar e a sua adequação aos habitantes, através de uma crucial mistura social, pela introdução de pequenos grupos de realojamento, e desenvolvendo-se uma cuidada diversificação de soluções habitacionais.
Depois há que garantir a relação com a intervenção social e a gestão de proximidade e avaliar, sistematicamente, na prática muito o que se fez, tirando daí ensinamentos que vão das tipologias aos processos de gestão utilizados; acabando, de vez, com as repetições de concentrações sociais, com a discriminação e o isolamento na localização dos conjuntos, e com o desenvolvimento de misturas sociais que nada têm a ver com a diversificada composição social da cidade.

Relação mútua, efectiva e afectiva, entre interior e exterior residencial

Um dos aspectos é a relação mútua, efectiva e afectiva, entre interior e exterior residencial, um tema que fica bem evidenciado nos aspectos de crítico inacabamento dos espaços exteriores, que ainda se verificam em alguns “bairros sociais”.

O espaço exterior também é para ser vivido e para isso tem de estar condignamente acabado e equipado, e ser bem relacionado com os espaços públicos de uma cidade viva e coesa que lhes assegure uma estimulante continuidade.

Diversidade tipológica e a pequena escala urbana das intervenções residenciais
Outro aspecto sublinha a importância da diversidade tipológica e da pequena escala urbana das intervenções residenciais de interesse social; e se a esta característica juntarmos o privilegiar de pequenas intervenções residenciais bem integradas, temos provavelmente o maior contributo deste quarto de século para a história da habitação de interesse social portuguesa, pois diversidade e pequena escala favorecem: a participação dos habitantes, a identidade local, o desenvolvimento comunitário, e a gestão local; o equilíbrio ecológico de cada conjunto e a introdução do verde urbano; a introdução de espaços para os peões e promotores do convívio natural; a diversidade de soluções de edifícios habitacionais e mistos (habitação e equipamentos); o desenvolvimento de pequenos conjuntos urbanos de requalificação local; e o desenvolvimento de conjuntos residenciais sem qualquer estigma de pobreza e de falta de atractividade.

Diversidade de promoções e adequada gestão local de proximidade
Um outro aspecto sublinha a relação entre a diversidade de soluções e tipologias e diversidade dos respectivos promotores, uma condição que é muito positiva nas misturas sociais disponibilizadas; uma diversidade que encontra na promoção cooperativa um aliado capaz de assegurar excelentes condições iniciais de enquadramento participativo das intervenções, depois prolongadas por muito eficazes acções de gestão de proximidade.

Apoio a “novas” formas de habitar a casa e a cidade
Outro aspecto evidencia o interesse e a oportunidade de substituir a “velha” oferta de soluções habitacionais únicas, pela oferta de um leque de novas formas de habitar, uma oferta tão importante para uma fundamental adequação aos diversos modos de vida e às necessidades habitacionais específicas, como para a criação de uma estimulante diversidade de relações entre habitações e vizinhanças, em vez de monótonas e repetidas soluções de proximidade, com as quais ninguém terá vontade de se identificar.

Uma diversidade e variabilidade que vai dos multifamiliares aos unifamiliares, passando pelas soluções de transição tipológica e pelas afirmadas soluções colectivas, todas elas soluções extremamente úteis e dúcteis na construção de uma cidade que, de certa forma, cresça numa densidade convivial e decresça naquela densidade que nos faz mal, a do ruído, da confusão, do excesso de veículos, e da ausência de identidade, apropriação e espaços de acalmia.

Adequação à cidade e à paisagem e estimulante preenchimento urbano
Outro aspecto refere-se ao privilegiar de intervenções residenciais bem desenhadas, bem integradas na cidade e caracterizadas pela escala humana, que cooperam, activamente, na (re)estruturação da sua zona de intervenção e que dialogam bem com a fundamental continuidade urbana e com a paisagem.

Procura-se uma densificação estratégica, com uma arquitectura amigável e cívica, através de um desenho bem integrado com as paisagens urbanas e naturais preexistentes, que favoreça a criação de vizinhanças conviviais e bem embebidas nas respectivas envolventes, proporcionando aos novos habitantes boas condições para uma rápida integração física e social e numa opção que joga forte na ampliação do habitar para o espaço exterior circunvizinho; de certa forma esquecendo-se tudo aquilo que se liga a espaços menos apropriados ou apropriáveis.

Desenho pormenorizado da habitação
Ainda outro aspecto tem a ver com o desenvolvimento de excelentes soluções-base de fogos, em termos de zonas funcionais e de adaptabilidade a diversos modos de habitar, onde se equilibram espaciosidades conviviais, por exemplo entre sala e cozinha, e onde, por vezes, se criam espaços domésticos bem caracterizados. Sobre a questão das áreas há caminhos a fazer no sentido de se favorecerem melhores condições, mais funcionais, mais humanizadas, mais integradas e mais versáteis; e melhores espaços não são, necessariamente, maiores espaços, pois podem enriquecer-se com condições especiais de caracterização ambiental, escala humana e atractividade.

Qualidade e pormenorização do desenho de arquitectura – do interior doméstico ao exterior público
Nesta matéria tem de ficar claro que viver numa obra de boa arquitectura residencial é realmente uma experiência muito positiva, pois, tal como disse há poucos anos o presidente do Royal Institute of British Architects (na altura o Arq. George Ferguson): “uma escola melhor desenhada leva a um melhor ensino, e uma casa e um escritório melhor desenhados resultam em pessoas mais felizes” (Rita Jordão SILVA, «Inauguração da nova galeria do Victoria and Albert Museum» in Público, 29.11.2004).

Todos estaremos, porventura, de acordo que, se assim for, e considerando, especificamente, conjuntos habitacionais dedicados a pessoas socialmente desfavorecidas, fica claro que a promoção de habitação de interesse social, apoiada pelo Estado, pode e deve assumir um papel de relevo como ferramenta de apoio ao desenvolvimento pessoal, familiar e social dos habitantes e das respectivas vizinhanças e comunidades locais numa cidade redimida da falta de desenho e de outras qualidades que se vivem realmente, mas que tanto andaram esquecidas.


Fig. 03

Dos bairros do crime ao verdadeiro problema da habitação (título de um "velho" artigo no Infohabitar)
Relativamente aos nossos “maus” bairros sociais eles continuam a existir (escreveu-se aqui sobre eles há mais de quatro anos, num artigo sobre “os bairros do crime”), e volta aqui a apontar-se, com as mesmas palavras então usadas, que seria muito acertado realizar um estudo prático deste universo da nossa vergonha urbana e para ele tentar e aplicar, de forma expedita, as melhores receitas para lhes aumentar urgentemente a qualidade de vida e naturalmente lhes reduzir a insegurança e a intolerância. Tal estudo também ajudaria a não repetir os erros; e fica ainda uma reflexão urgente sobre quantos desses conjuntos têm dimensão excessiva, tipos de edifícios pouco adequados aos seus moradores, espaços públicos pouco acabados ou mesmo quase inexistentes, e deficientes condições de ligação à cidade, seja por reduzida continuidade urbana, seja por reduzido serviço de transportes públicos.

Sublinha-se, finalmente, e na sequência do que foi aqui apontado, que os caminhos do presente e do futuro na habitação de interesse social portuguesa se ligam a uma arquitectura das vizinhanças e das continuidades urbanas, centrada nos agrupamentos e quarteirões, em soluções que não têm condicionantes significativas em termos de custos, mas que têm, sim, claras exigências de qualidade arquitectónica, que dependem de um amplo aprofundamento tipológico que tem de garantir uma cidade coesa, variada e estimulante.


Fig. 04

Há que privilegiar, assim, soluções residenciais e urbanas que possam contribuir, quer para uma cidade melhor habitada, mais misturada e integrada de diferentes pessoas e actividades, e mais amigável, quer para uma habitação que sendo adequada e multifacetada seja também um pouco de cidade e uma habitação viva, que se estenda pelos exteriores e pelos outros espaços de uma cidade viva.

Talvez que o tema comum numa cidade mais viva e numa habitação com verdadeiro interesse social, e, portanto mais urbana e coesa, mas que não perca o sentido básico do abrigo, do sossego e da apropriação, e da convivialidade entre vários grupos socioculturais, seja uma caracterização humanizada do habitar, um habitar à pequena escala, um habitar das vizinhanças bem conjugadas, um habitar que tanto embebe a escala humana e bem amigável desse sossego, dessa protecção e dessa apropriação, como está disponível, mercê de simples e diversificadas associações, para participar activamente na construção das escalas maiores das vizinhanças mais alargadas, dos bairros e das partes de cidade.

E conclui-se com duas frases bem oportunas do arq. Luís Fernandez-Galiano: “o problema da habitação tornou-se o problema da cidade”; e “a habitação... é um problema urbano, da civitas ou da polis, isto quer dizer, de cidadania e político.”



Fig. 05


Edição Infohabitar
Editado por José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 17 de Maio de 2009

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