- Infohabitar 38
Sentido do lugar – I, em memória de Fernando Távora
Fazer arquitectura, da casa à rua, é uma acção nobre e exigente. A sociedade de hoje é a da pressa e da ausência de referências, com ela temos de viver, mas nunca abdicando de contribuir, por todos os meios ao nosso alcance, para a manutenção, o reforço e a recuperação e valorização das nossas raízes culturais, humanas e paisagísticas; e aqui a paisagem tem, naturalmente, o sentido mais verdadeiro, que é amplo e profundo, e que vai do vale arborizado e fresco ao povoado branco e pedra que se funde no declive do terreno e na penumbra dos verdes.
Houve a vontade prévia de falar, neste pequeno texto, sobre a importância que sempre teve, e que hoje tem – de forma quase vital – o desenhar cada sítio como se ele fosse o último.
Que não seja estranha esta forma de falar. Lembro-me que sempre que havia um novo projecto de arquitectura para fazer, se entrava numa fase “estranha”, em que o tempo parecia que quase parava e que tudo, bem a propósito, se ia ali, naquele sítio, reinventar mais um pouco, construir ricamente mais um pouco, ajudando-se aquele sítio e mesmo um pouco do mundo a ficar um pouco mais interessante, agradável e desenhado; daí a vontade que sempre havia de folhear com olhos bem abertos muitas e muitas dezenas de revistas e alguns livros bem conhecidos mas sempre inspiradores.
Faz-se aqui um pequeno comentário marginal, mas que, como se verá, poderá ser significativo:
A vida de cada um é feita de uma espécie de acasos e de perspectivas que se tentam e depois se vão cumprindo, com maior ou menor fidelidade. Sendo assim, um dos primeiros livros de arquitectura em que viajei, solidamente, em pequenos mas tão grandes passos, foi o “Existência, espaço e arquitectura” (título informalmente passado para português) do extraordinário Christian Norberg-Schulz. Não será, aqui, hoje, muito mais citado, mas este livro é daqueles que faz pensar se valerá mais a pena pensar e escrever mais sobre o tema de que trata Naturalmente que sim, que vale, mas continua a parecer estar tudo lá.
A magia do lugar, o sentido e o sentir do vernáculo, o saboroso passar e marcar do tempo, a aliança profunda entre a natureza e a boa obra humana, o calor de um cultura que sendo de todos é também exigente, sempre nova e estimulante, as ideias peregrinas sobre o abrigo humano e sobre os locais do homem marcando recantos de colinas e caminhos, e aquela ideia que é possível fazer arquitectura que seja de hoje e de sempre, e que seja do homem e da cidade, e que seja do homem e da natureza, e, por que não dizê-lo, que seja do homem, mas que também o transcenda, apontando linhas de caminhos na existência e no espaço, uma arquitectura que fique para os filhos do homem e que, década após década, de forma sóbria mas segura, se vá enriquecendo de significados, cores, ambiências e sentidos, mas sempre, sempre, no respeito e no serviço do espírito do lugar e, naturalmente, do espírito do homem.
Este tema do “espírito do lugar” já estava pensado para ser texto antes da notícia da morte de Fernando Távora. Este tema já aqui tinha sido tratado, directa ou indirectamente, em vários textos e por várias pessoas, desde “a minha rua” aos “lugares sentidos”, só para dar dois exemplos. Provavelmente este tema, o do carácter do lugar, é, tal como defendia Norberg-Schulz, o verdadeiro tema da boa arquitectura, aquela que tem de fazer e, hoje, urgentemente, refazer, cidades e paisagens.
Este tema foi o tema da vida e da obra do mestre Fernando Távora.
“O autor da simbiose entre o movimento moderno e os modelos vernáculos, uma quase base programática da Escola do Porto, morreu ontem, com 83 anos, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. Culto e cosmopolita, Fernando Távora projectou bairros sociais e fez cirúrgicas adaptações de monumentos, destacando-se ainda como o professor ...” – “Fernando Távora, arquitecto - O mestre da nossa arquitectura”, artigo de Fernando.Madaíl com Maria.João.Pinto e Ricardo.Fonseca, Diário de Notícias, Domingo, 4 de Setembro de 2005, p. 34.
Seguem-se algumas imagens do ainda hoje moderno Bairro de Ramalde, conhecido como bairro do Inatel, no Porto. Este conjunto residencial, desenvolvido entre 1952 e 1960, integra-se nas experiências desenvolvidas no âmbito da habitação de interesse social promovida pelas Habitações Económicas – Federação das Caixas de Previdência (HE-FCP).
Ramalde, tal como refere o arquitecto Francisco Barata, constitui “a primeira referência às propostas do movimento moderno no âmbito da habitação económica”. Em Ramalde valorizaram-se excelentes blocos multifamiliares, que foram objecto de um projecto extremamente bem pormenorizado, num amplo jardim urbano pouco formal; e revelou-se, entre nós, uma nova forma de fazer cidade em íntima relação com o verde urbano, bem dentro da ligação com a doutrina modernista, mas atenção, com uma escala humana fortíssima.
Dedico este artigo ao meu pai, António Baptista Coelho, que hoje teria praticamente a mesma idade com que nos deixou Fernando Távora, e que durante os anos de arquitectura nas Belas Artes do Porto se terá cruzado, diariamente, com ele. Muita saudade e sentidas memórias do que dizia e do que deixava por dizer, mas mesmo assim dizia na forma de estar e no modo de olhar.
Lisboa e Encarnação, 4 de Setembro de 2005
António J. M. Baptista.Coelho
2 comentários :
Uma inspirada homenagem a este criativo Senhor da Arquitectura portuguesa que perseguiu sempre 'aquela ideia que é possível fazer arquitectura que seja de hoje e de sempre, e que seja do homem e da cidade, e que seja do homem e da natureza, e, por que não dizê-lo, que seja do homem, mas que também o transcenda'.
Não fui dos privilegiados que pode disfrutar as aulas do Arqº Távora durante um ano lectivo inteiro. Mas disfrutei de duas aulas extraordinárias. Embora me identifique com os pressupostos conceptuais presentes no seu processo arquitectónico, nem sempre me identifiquei com os seus resultados formais finais. No entanto é inegável o seu legado e a sua importância quase estrutural no que é, ainda hoje, a Escola do Porto. E em sentido mais lato, no que é a arquitectura portuguesa. A figura de Fernando Távora estará sempre presente em qualquer manual de história da arquitectura portuguesa e de história da arquitectura contemporânea. E não me esquecerei nunca daquela que foi uma das suas definições do que é a arquitectura : é a arte de conciliar o que à partida parece inconciliável.
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