terça-feira, maio 19, 2020

Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730


Ligação direta (clicar) para:  725 Artigos Interactivos, edição revista, ilustrada e comentada - 38 temas e mais de 100 autores.



Infohabitar, Ano XVI, n.º 730

 

Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730

Por António Baptista Coelho (texto e imagens)

Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar, estimados amigos,
Esperando que estejam todos de saúde,
Continuamos um “retorno” a uma abordagem relativamente sistematizada dos espaços domésticos, feito tendo por base alguns artigos já aqui editados e que foram e serão, naturalmente, extensamente revistos, desenvolvidos e “recomentados”, para esta ocasião editorial.
Este relativo “retorno” – relativo, porque o tema dos mundos domésticos esteve, está e estará sempre presente na Infohabitar – justifica-se, entre outras razões, pelo evidente e novo protagonismo que esses nossos espaços de vida assumiram nas longas semanas do nosso confinamento; um relevo que importa sentir em profundidade e aproveitar em tudo aquilo que possa contribuir para uma adequada e bem ponderada revisão programática, quantitativa, qualitativa e objetivada dos nossos mundos domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos agradem aos nossos estimados leitores e lembrando-se, sempre, que serão muito bem-vindas eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e mesmo propostas de novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com ao meu cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações calorosas e desejos de muita força e de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 18 de maio de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar

- e relativamente a esta data, permitam-me lembrar, com saudade, a memória do meu pai, grande amigo e primeiro professor de Arquitectura, António Baptista Coelho, que hoje faria anos -


Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730


Organização da habitação

A organização e a caracterização de um espaço doméstico pode seguir determinados “hábitos” de funcionalidade doméstica, e aqui tanto há hábitos que decorreram da evolução da vivência doméstica ao longo de alguns milénios, como outros que, praticamente, acabaram de nascer pois podemos dizer que foram, de certo modo, “inventados”  em finais do séc. XIX e, designadamente, no séc. XX.
Podemos ainda considerar nesta matéria, dos “hábitos” de funcionalidade doméstica, que estes deveriam poder depender e decorrer bastante mais das formas de habitar características de cada família e, consequentemente, de cada grupo sociocultural, do que, por regra, é proporcionado, tendo-se em conta a organização funcional, tão frequentemente, rígida e “uniformizadora” que está expressivamente inscrita na estruturação e na formalização do espaço construído de cada habitação e, designadamente, na sua organização de gradações de privacidade e nos respetivos conteúdos funcionais “inscritos” no dimensionamento e no equipamento de cada compartimento.
Alternativamente, a organização e a caracterização de um espaço doméstico pode passar por uma verdadeira reinvenção bem fundamentada das respectivas funções, ambientes, associações espaciais e simbólicas e condições específicas de desenvolvimento de diversos espaços de actividade e de cena, numa perspetiva de aplicação discutida do que podemos designar, aqui, como “Grandes Opções Domésticas” - matéria que abordaremos, especificamente, em vários artigos desta série editorial.
E também alternativamente a organização e a caracterização de um espaço doméstico pode passar por uma sua sábia estruturação em termos de hierarquias de privacidade/acessibilidade e de aspetos básicos de dimensionamento mínimo/razoável, que privilegiem a maximização da adaptabilidade e das capacidades de apropriação e de conversão (espaciais e funcionais) domésticas.

Cidade e habitação

Essa possibilidade, desejavelmente, muito ampla de diversidade de apropriação e de conversão/adequação no interior doméstico é, realmente, a base do enorme interesse de que se pode, ainda, vir a revestir o acto de habitar, um interesse potenciado, hoje em dia pela noção de que é a habitação que faz cidade adequada, condição essencial no nosso século das cidades e das mega-cidades frequente e criticamente caóticas; e daí se retira a crítica oportunidade que têm e terão, por exemplo, as exposições habitacionais e os amplos fóruns de discussão sobre estas matérias.
Realmente o podermos ter e sentir, constantemente, um adequado sítio doméstico, permite-nos poder estar habilitados e positivamente preparados para a “exploração” e o uso mais intenso e prolongado dos espaços de vizinhança de proximidade e, consequentemente, dos espaços mais citadinos; atuando, assim, a nossa habitação como um “porto seguro”, bem identitário e apropriado, sempre disponível e acolhedor no princípio e no fim das nossa deambulações urbanas – de certo modo proporcionando-nos uma interessante e igualmente satisfatória dupla vida em duas ou mesmo três dimensões que, desejavelmente, deveriam, ser tão estimulantes como diversas: o mundo doméstico; a envolvente vicinal do mundo doméstico e espaço preparatório do mundo urbano; e o mundo urbano.
Referindo-nos especificamente à defendida clara abertura de perspectivas e de liberdade na organização e nos conteúdos domésticos importa salientar que boa parte, se não a totalidade, dos regulamentos que enquadram, por vezes de forma que se julga ser excessivamente rígida, a concepção do espaço doméstico privativo nasceram devido a justas e vitais preocupações ligadas à higiene, à saúde, à segurança e à defesa dos habitantes relativamente à sua frequente exploração económica através do seu alojamento em condições dimensional e ambientalmente patológicas; condições estas que muito se ligam aos respetivos quadros urbanos.
E assim se evidencia, mais uma vez, a ligação íntima e bissequencial, que une os espaços domésticos, vicinais e urbanos; afinal, todos eles essenciais espaços de habitar.

Regulamentação da habitação – novos caminhos

Ora, hoje em dia, é possível proteger os habitantes de boa parte, ou mesmo da totalidade, dessas negativas condições urbanísticas e de habitar através de outras medidas técnicas, construtivas e normativas que não aquelas que definem uniformemente e quase “milimetricamente” a organização doméstica, compartimento a compartimento e espaço a espaço.
E todos sabemos que as diversas instalações que servem o habitar, incluindo as sanitárias, conheceram enormes avanços nos últimos 100 anos, assim como as estratégias de ventilação, as prescrições relativas a condições de higiene e saúde associadas aos acabamentos e, naturalmente, todo o enorme compêndio de novas soluções construtivas e de pormenorização; e portanto o que aqui se defende é que para garantir as apropriadas e necessárias condições de higiene e de saúde no habitar doméstico não é hoje necessário seguir, como regra única, prescrições justificadas por condições por vezes até já relativamente ultrapassadas, por proporcionarem, em alguns casos, soluções espaciais e técnicas alternativas e eventualmente mais adequadas à crescente diversidade de modos e desejos de habitar casa, cidade e paisagem.



Fig. 01: apontamento de espaço doméstico baseado, livremente, em situações reais. Pretende-se, aqui, focar o sentido de “porto seguro” que nos pode e deve ser trazido pelas memórias e mesmo pelas possíveis visualizações da aproximação e dos vãos exteriores dos nossos espaços domésticos; afinal, os contactos com mundos domésticos que sejam verdadeiramente satisfatórios e desejados deveriam ser claramente dignificadores e evidenciadores dessas condições e, evidentemente, nunca reduzidos a meras relações funcionais de acessibilidade.


Novos modos e desejos de habitar e velhas soluções recuperadas

Mas, para além desta perspetiva, talvez seja chegada a altura, numa altura de tantas inovações e possibilidades tecnológicas em termos de climatização, ventilação, isolamentos e instalações, de poder começar a reequacionar as próprias opções básicas de organização doméstica; ou, pelo menos, é bem a altura de acabar com modelos quase-únicos e de começar a disponibilizar uma verdadeira e atraente diversidade de grandes opções domésticas.
E a título de exemplos, que se julgam simples e atraentes, aponta-se a reinterpretação da ideia de “hall” doméstico, no sentido de espaço de entrada e de eventual reunião mais ampla, ou, alternativamente de desenvolvimento de um verdadeiro espaço de “descompressão” e transição ambiental entre exterior comum ou público e interior mais privado; e uma ideia/função que depois se pode desdobrar numa pequena saleta – o velho “parlour” – e numa cozinha e zona de refeições, cuja duplicidade funcional possa ser, eventualmente, graduada conforme a dimensão da habitação e até a ocasião de vivência – mais formal ou mais familiar/informal.
E entenda-se que este exemplo é, isso mesmo, apenas um exemplo, embora fundado numa tradição de viver doméstico que passou de um único espaço de habitar, ou de dois espaços sendo um privado do casal e outro comum aos restantes habitantes da casa, para uma especialização e respectiva espacialização fundada essencialmente nos aspectos da privacidade dos quartos e da função social – e eventualmente convivial – do receber (um receber que implica convívio), isto ainda na alta idade média e referido às grandes casas, para, depois, se desenvolver uma funcionalização de todas as habitações, incluindo as mais pequenas.
E o que se quer deixar aqui apontado é que, atualmente, talvez seja a altura de retomar algum desse “caos” equilibrado em termos de funções domésticas. Um “caos” que habilite adaptabilidade e apropriação individual e em grupo e que seja servido e tornado possível por uma excelente estruturação e controlo do conforto e da saúde ambiental domésticas.
Importa, no entanto, sublinhar que tais novos caminhos não podem seguir o mau exemplo do anterior funcionalismo organizativo, rigidamente hierarquizado e de “modelo único”, mas sim têm de ser aplicados adequada e cuidadosamente em relação e ao serviço dos tais novos modos e desejos de habitar, ou de formas específicas de viver a habitação; e quem projeta tem de ter a capacidade de julgar da adequação ou inadequação destes caminhos, considerando as caraterísticas dos moradores conhecidos ou prováveis.
É, ainda, interessante refletir sobre o interesse humano e doméstico da cuidada e relativa recuperação de “velhas” soluções de espaços e microespaços do habitar, seja em termos dos seus expressivos conteúdos funcionais e ambientais mais conviviais (ex., em termos da associação entre trabalho doméstico e convívio informal) ou de maior privacidade e recolhimento e/ou funcionalidade (ex., espaços de trabalho profissional em ambiente doméstico), seja no que se refere aos seus respetivos contornos e elementos formais e funcionais (ex., renovados elementos de mobiliário com variadas valências e  não apenas os “estafados” e “mínimos” elementos correntes de mobiliário).

Funções habitacionais renovadas e novos espaços habitacionais


Centrando-nos, agora, na referida e, naturalmente, sempre relativa reinvenção das funções, dos ambientes, das associações e dos espaços de exercício do habitar doméstico, há que sublinhar que esta ideia se liga:
·        quer a uma nova espacialização e funcionalização de determinados compartimentos, transformando, por exemplo, a cozinha num amplo espaço multifuncional e convivial, e a sala-comum num pequeno complexo de diversas áreas de actividade distintas e potencialmente “privatizadas” (ex., cadeirão de leitura bem localizado e com equipamentos de apoio), embora unificáveis numa grande área “comum” de convívio doméstico;
·        quer a uma estratégia de sistemática conversão de muitas outras áreas ou microáreas domésticas em espaços estimulantemente inovadores, porque concretizam a associação de funções e de ideias diversificadas; por exemplo, uma semi-cave que se transforma numa sala familiar, de trabalho e para dormir de convidados e um lavabo social que é tratado muito mais como um espaço de recepção e representativo, do que como uma vulgar e pequena casa de banho e, já agora, também em espaço de apoio a uma razoável “descontaminação” quando se chega a casa.
O que se acabou de apontar tem a ver, por um lado, com a ideia que se tem apontado, nestes textos, sobre a função não ser tudo, quando abordamos o habitat humano, e revelar ser mesmo bastante pouco; uma ideia que se julga ser bastante adequada seja na própria cidade e nos seus bairros, seja nas vizinhanças residenciais e urbanas, seja nos edifícios habitacionais e, finalmente, e naturalmente, de forma destacada, nos interiores domésticos.





Fig. 02: apontamento de Braga na proximidade do Arco da Porta Nova, um espaço urbano vivo, bem pedonalizado, diverso e multifuncional. E, a propósito, parece ser oportuno referir que para ser realmente estimulante e atraente o espaço urbano tem de ter e evidenciar espaços “quase domésticos” na sua expressiva e múltipla capacidade de uso pela pessoa a pé e, naturalmente, pela sua assinalável escala humana.  

Funcionalismo no habitar – passado criticável e realidade a alterar

Lembremos, novamente, como o funcionalismo fez e faz sofrer os habitantes das cidades, tentando “impingir-lhes” tipos de organização e conteúdos funcionais por vezes aberrantes, porque tão distintos das misturas funcionais diversificadas que são as mais humanas e que se ligam aos núcleos e novelos funcionais diversificados, que são os verdadeiros motores e caracterizadores de cidades vivas e estimulantes.
E se tal aconteceu à escala da cidade, com tantos aberrantes porque excessivos e pouco naturais zonamentos, o que dizer da escala do edificado, abandonada à fúria especulativa do “pronto-a-habitar”, feito “à medida” de famílias-tipo cada vez mais inexistentes e sempre “à medida” de uma indústria da construção habitacional, que, naturalmente, preferiu um produto mobiliário estandardizado; num processo uniformizador que, por exemplo, nos oferece o famoso leque tipológico do T0 ao T5, com eventuais e pouco frequentes soluções intermédias, marcado pela omnipresente zona íntima e por uma estruturação funcional rigidamente hierarquizada e repetida.
Habitações que deixaram de ser verdadeiramente caraterizadas, pela sua dimensão e pelos seus “partidos” de estruturação e ambientais, para se reduzirem a uma espécie de “centopeias” domésticas, cujas cabeças são, por regra, iguais ou muito semelhantes e que, depois, se prolongam por uma sequência de quartos mais ou menos alongada.

Habitar e inovação – habitar e adequação

Tal realidade, marcada verdadeiramente pela consideração da habitação e do habitar como verdadeiros produtos de consumo, foi apenas “combatida” em opções, mais ou menos, experimentalistas e/ou de extremo bom-senso e grande qualidade arquitetónica, associadas, frequentemente, a intervenções de habitação de interesse social e, por vezes (pontualmente), a habitação para grupos sociais mais favorecidos e/ou em habitações feitas realmente à medida dos seus futuros habitantes e por excelentes e bem informados e formados Arquitectos.
Ações estas de criação de estimulantes espaços habitacionais que privilegiam o desenvolvimento de um mundo familiar e pessoal que deve e pode ser uma realidade feita para servir e estimular as necessidades e os sonhos de habitar, bem como a mutação dos mesmos ao longo dos anos -  e esta capacidade de quase contínua (re)conversão formal e funcional da habitação ao longo dos decénios, servindo a mesma ou diversas famílias, constitui um extraordinário suplemento físico, de apropriação e de alma aos respetivos habitantes, que deveria ser muito mais interiorizado e considerado; e quando não existe traduz-se, afinal, por vezes, na transformação da habitação numa espécie de “para-camisa de forças” doméstica.  
E essa recriação de estimulantes espaços habitacionais que privilegiem o desenvolvimento e a mutação de variados mundos familiares e pessoais é possível, frequentemente, através de soluções, que por vezes parecem tão simples, como fusões e separações de espaços e de estruturas de circulação, caraterizações ambientais marcantes, designadamente em termos de sentido/”adn” doméstico, e de inovadoras integrações de instalações que potenciem essa mesma capacidade de mutação e adequação; uma simplicidade que, evidentemente, só é possível com boa Arquitectura.
Afinal e tal como escreveu Christian Norberg-Schulz, a casa não é e não pode ser um refúgio funcional, um "não lugar" uniforme, mas exige um espaço distinto e uma cena que se possa imaginar (1).

Notas:
(1) Christian Norberg-Schulz, "Habiter", p. 105.

 


Uma primeira versão, bastante menos desenvolvida, deste artigo foi publicada no número 470 da Infohabitar, em 3 de Fevereiro de 2014.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 730

Sobre a temática das novas formas de habitar – Infohabitar # 730


Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa.


Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).

Sem comentários :