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Infohabitar, Ano XVI, n.º 729
Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos
gerais e temas de desenvolvimento (edição revista e aumentada) – Infohabitar # 729
Por António Baptista Coelho (texto e imagens)
Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar, estimados
amigos,
Esperando que estejam todos de saúde, ou a
recuperá-la com passos firmes, reafirma-se que a nossa revista mantém a sua
regularidade semanal e irá, neste e nos seus próximos números revisitar a
temática dos espaços domésticos, que sempre foi uma das nossas matérias editoriais
“centrais” e mesmo uma quase razão de ser do nosso nascimento há cerca de 16
anos.
Este “retorno” aos espaços domésticos, que é
feito tendo por base alguns artigos já aqui editados e que foram e serão,
naturalmente, revistos e desenvolvidos, justifica-se, entre outras razões, pelo
evidente e novo protagonismo que esses nossos espaços de vida assumiram nas
longas semanas do nosso confinamento; um relevo que importa sentir em
profundidade e aproveitar em tudo aquilo que possa contribuir para uma adequada
e bem ponderada revisão programática, quantitativa, qualitativa e objetivada
dos nossos mundos domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos possam ser
considerados interessantes e oportunos pelos estimados leitores e lembrando-se que
serão muito bem-vindas eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e
mesmo propostas de novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com
ao meu cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações
calorosas e desejos de muita força e de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 10 de maio de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar
Mundos
domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos gerais e temas
de desenvolvimento
Sobre
o fazer dos nossos pequenos mundos domésticos o arquitecto e habitante P.
Céleste refere que se trata “de ocupar um sítio, de estar em sua
casa, de produzir uma habitação calorosa. O contexto é o que nos anima. [escreve
ele]
Há
peças que devem ver o exterior e esse exterior deve fazer sonhar. Há que ter atenção a uma distribuição simples que
proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos
habitacionais muito flexíveis [ ...
...] é
preciso encontrar uma certa forma de deambulação, estar atento à arte de
colocar uma porta, uma janela, atento aos gestos quotidianos.
O
habitar de hoje não é mais pensado como no século XIX para a festa e a
recepção, mas para a relação com a vida quotidiana” (1) – os sublinhados
são do autor do artigo.
Organizações da habitação
Falar
de organizações da casa, atualmente, poderia ou deveria ser falar de uma
reflexão e inovação contínuas, sempre no sentido de se procurar uma adequação
contínua, pois já é tempo de (voltar a) pensar a casa com verdadeira e exigente
liberdade.
Esta
matéria parece ser óbvia, mas só o será superficialmente, pois continuamos a
imaginar e conceber habitações numa “lógica” quase estritamente funcionalista e
rigidamente hierarquizada e praticamente nem notamos o que estamos a fazer,
pois toda a nossa formação foi feita nesse sentido de funcionalização e
“mecanização” do espaço doméstico, um espaço que deveria ser um tal “estojo”,
mas extremamente versátil, das nossas variadas identidades.
E note-se,
aqui, o potencial conflito entre um ambiente que tanto nos deve envolver e
proteger, adequando-se a necessidades, como deve poder evoluir ao serviço da
mutação dessas necessidades e da (re)formulação dos nossos desejos
habitacionais – e mesmo nesta formulação de “nossos” desejos habitacionais ou
de habitar (que não são bem a mesma coisa), importa considerar a nossa parte
bem própria e individual (que serão provavelmente tantas quantos os coabitantes)
e a parte comum que também tem de marcar o nosso habitar.
Há,
naturalmente, alguns aspectos que são fundamentais em termos de privacidade,
funcionalidade e conforto, mas estes são, de certa forma, facilmente
sintetizáveis numa pequena listagem de aspectos dimensionais mínimos (ex.,
larguras de compartimentos) e de recomendações, ou, melhor dito,
esclarecimentos no sentido de se alertar para que determinados posicionamentos
de determinados compartimentos (ex., casas de banho) poderão ter influências
negativas nos jogos de privacidade e de adaptabilidade interiores e que há que
ter em conta relações privilegiadas e protegidas entre alguns compartimentos
(ex, entre quartos de dormir e casas de banho).
Mas
estamos, realmente e frequentemente, já bem longe das situações em que as “instalações
sanitárias” eram tendencialmente zonas higienicamente críticas e que convinha
afastar e “esconder” o mais possível e onde as cozinhas eram espaços
“oficinais” dificilmente integráveis com as zonas de estar; isto só para dar
dois exemplos de mudança doméstica profunda.
Mas
mesmo a este nível há bem recentes e importantes mutações no privilegiar de uma
casa de banho estrategicamente situada bem próximo da entrada da habitação e
que não seja apenas um lavabo, mas sim podendo proporcionar como que um espaço
de “descompressão” e higienização quando da chegada a casa.
O
resto, o resto que é quase tudo numa “inovadora” conceção dos espaços
domésticos, deveria ser flexibilizado no âmbito das supostas e diversas
capacidades criativas dos projectistas e dirigido para os modos de querer viver
mais específicos dos habitantes; naturalmente com a excepção de situações,
devidamente identificadas, onde haja que ter em conta condições específicas e
potenciais de uso da casa que recomendem cuidados particularizados,
designadamente, em termos de relações entre espaços, uso e manutenção da
habitação e sua durabilidade.
E
atente-se que, tal como bem sabemos, mesmo nestas condições de justificada e
cuidadosa adequação a modos de vida e usos da casa muito específicos e
exigentes, o referido e “cego” excesso funcionalista, fazia, muito
frequentemente, “vista grossa”,
ignorando deliberadamente tais contextos e aplicando-lhes a mesma receita
global de habitar – da vizinhança, ao edifícios e ao espaço doméstico.
Flexibilização e adaptabilidade doméstica
Importa
sublinhar que tais caminhos de flexibilização e ampla adaptabilidade
doméstica não significam, naturalmente, qualquer abandono dos objectivos de
qualidade residencial, mas sim um claro acréscimo dos mesmos, pois há todo um
mundo de possibilidades de viver a casa, algumas delas aqui apontadas, que
podem proporcionar uma satisfação e uma apropriação muito mais intensa por
parte dos moradores.
O que
se fez durante muitas dezenas de anos, designadamente, do século XX foi negar a
existência de um tal mundo da identidade e da adaptabilidade, que está à vista
de todos em tantos exemplos de arquitectura tradicional, quanta dela até, por
vezes, justificadamente não-regulamentar, e em tantos outros exemplos daqueles
grandes arquitectos que fizeram grande arquitectura doméstica, mas que
preconizaram ideias que não foram verdadeiramente entendidas e que não puderam
ser, assim, reinterpretadas, por uma maioria de colegas menos criativos e que
acabaram por beber essas “regras” como elemento facilitador de uma prática de
projecto rigidamente funcionalista, até porque veiculada em termos
regulamentares numa opção que é, frequentemente, arquitectonicamente “árida”.
Poderíamos
até imaginar que, no limite, não seriam precisos arquitetos, para fazer essa
arquitetura doméstica “automatizada”, ou então o habitar poderia “reduzir-se” a
uma indústria do tipo da automobilística em que se concebem, rigorosamente,
“meia dúzia” de modelos (mais desportivos, mais familiares, mais económicos,
etc.), que são, depois, globalmente disponibilizados; mas, pelo menos, o autor
destas linhas e julga-se muito mais pessoas acreditam que o habitar novo e o
reabilitado não têm este tipo de caraterísticas, pois deverão ser o tal “estojo”
adaptativo da nossa identidade e história e também, cumulativa e evidentemente,
elementos protagonistas da nossa cidade e da nossa cultura.
Nada
disto quer fazer reduzir a fundamental importância das matérias regulamentares
ligadas a aspectos essenciais de segurança, saúde e bem-estar, no entanto
considera-se que deve continuar a haver uma verdadeira possibilidade de
reinterpretar arquitectonicamente tais matérias e, além disso ou, melhor, antes
disso, haveria que rever alguns desses corpos regulamentares à luz de uma
prática consistente e de um enquadramento científico verdadeiramente mais
aprofundado e culturalmente mais fundamentado.
Tudo
isto se julga pertinente quando estamos a passar a soleira da casa e quando, à
nossa frente, imaginamos, por um lado, a infinidade de soluções domésticas
repetidas até à náusea, numa espécie de solução-tipo geral de habitação,
naturalmente, com libertadoras variações criativas e estimulantes, enquanto,
por outro lado, lembramos ainda tantas soluções que fomos visitando ou vendo em
livros e revistas e onde não há essa solução global estereotipada – uma espécie
de “esquerdo-direito” doméstico – mas sim uma enorme diversidade de oferta de
relações, espaços, microespaços e pormenores protagonistas, que marcam
positivamente as casas e quem as habita ou até apenas as visita,
reforçando-lhes, designadamente, os seus aspetos de identidade e de apropriação e, acredite-se,
frequente e associadamente os tais tão empolados aspetos funcionais;
assistindo-se a uma procura espacial e ambiental em que os referidos
suplementos de alma de identidade e “personalização”, acabam por gerar
inesperadas e excelentes funcionalidades.
Fig. 01: uma habitação expressivamente
habilitadora em termos de diversidade de oferta de relações, espaços e
pormenores protagonistas, que marcam positivamente as casas e quem as habita ou
até apenas as visita, reforçando-lhes, designadamente, os seus aspetos de
identidade e de apropriação.
Espaços domésticos bem caraterizados
Sendo
assim, não se aborda neste texto um qualquer menu de soluções a aplicar
conforme um outro menu de necessidades, mas “apenas” se vai, aqui,
desenvolvendo uma pequena viagem por mundos domésticos positivamente
caracterizados, onde cada espaço e cada relação nos emociona e nos serve
plenamente; sendo que a mistura de tais espaços e ambientes a acaba por ser,
quase sempre, muito mais significativa do que a simples soma funcional das suas
respetivas partes e ficará, naturalmente, ao livre arbítrio dos leitores e à
capacidade que possam ter de poderem influenciar as suas casas.
Por isso se
optou por uma exposição que “inverte”, um pouco, as regras normais em trabalhos
técnicos e científicos, porque se irá tratar daquilo que marca espacial e
ambientalmente as diversas zonas da casa, em termos de notas gerais bem
entendíveis por todos e não apenas por projectistas e investigadores,
remetendo-se para “pé-de-página” as indicações mais objectivas e especificadas,
sempre que se considere que tais indicações poderão ser úteis para concretizar
as ideias de vida e ambiente doméstico a que se referem.
E não é
excessivo referir que outros estudos se dedicam especificamente aos aspetos
mais objectivos do habitar e dos espaços domésticos, como por exemplo o livro
intitulado “Do bairro e da vizinhança à habitação”, que foi publicado
pelo LNEC no já “longínquo” ano de 1998 (ITA 2); e mesmo neste estudo houve o
cuidado de disponibilizar várias possibilidades e opções funcionais para cada
espaço doméstico, referidas por diversos autores.
Mas na
mesma séria editorial do LNEC um livro mais recente, a “Habitação e
Arquitetura: Contributos para uma habitação e um espaço urbano com mais
qualidade” (ITA 12 de 2012), aborda estas matérias com um sentido muito
mais verdadeiro, porque qualitativo e tendencialmente integrado, enquanto ainda
outro estudo do LNEC (que estão disponível numa forma desenvolvida na Livraria
do LNEC) procura direcionar estas temáticas segundo um fio condutor vitalmente
marcado pela necessidade e pela esperança de podermos habitar espaços
expressivamente humanizados – “Entre casa e cidade, a humanização do habitar”,
disponível na dafne editora, opúsculos - Pequenas Construções Literárias sobre
Arquitectura, opúsculo 18, 2009. (www.dafne.com.pt/pdf_upload/opusculo_18.pdf
)
De certa
forma, em todos estes estudos já editados e como base do presente texto assume-se
a ideia de uma técnica de bem-fazer habitação e habitar que esteja expressivamente
subordinada ao objectivo fundamental de se viver melhor, na casa de cada um, de
acordo com os melhores objectivos de vivência doméstica que felizmente encontramos
em tantos exemplos, frequentemente até de habitação de interesse social,
desmistificando-se, deste modo, que tais objectivos são difíceis em termos de
custo e em termos de “impossibilidades” funcionais e abrindo-se, assim, caminho
para que cada um possa (re)inventar, pelo menos parcialmente, o seu sítio
doméstico sonhado e desejado.
Habitação e apropriação
A batalha
seguinte será tentar concretizar tais ideias no mundo doméstico de cada um, mas
uma guerra tem sempre várias batalhas e para as começar a ganhar é essencial
apostar numa informação esclarecida e eficaz.
Lembremos
que se começou esta viagem – e esta série editorial (“Habitar e viver melhor”) –
na vizinhança urbana e, depois, ao longo do edifício, que são mundos onde
naturalmente terá de haver ordem e equilíbrio gerais e consensuais e onde a
apropriação por cada um, será bem-vinda, mas desde que bem regrada, concentrada
e positivamente cumulativa em termos de atractividade e de identidade local; mas
agora, dentro das nossas casas, estamos num mundo “mais nosso”, que deve
privilegiar uma adequada apropriação individualizada dos seus diversos espaços
e elementos particularizados.
Importa
referir, ainda, o facto de que temos sempre tendência a imaginar uma casa numa
perspectiva organizativa rígida: por exemplo, imaginamos entrar para um
vestíbulo e daí passar para o resto da habitação, mas quando encaramos uma
situação “tradicional” de entrada directa para uma sala de jantar que é também
sítio de boas-vindas não estranhamos esta “quebra” de sequências. E este é um
exemplo que pode ir mais longe, naturalmente, e que aqui se “ilustra” lembrando-se
a entrada de uma habitação em Malmö, que dava directamente para uma ampla
cozinha e sala de família: não havia outra entrada e os visitantes estranhavam,
logo na altura, mas as reacções pareciam, depois, globalmente positivas, quando
os visitantes começavam a entender a estrutura inovadora daquela habitação.
E será,
assim, nesta perspetiva de uma inovação bem fundamentada e referenciada à nossa
cultura habitacional e doméstica que procuraremos ir estruturando neste texto e
em próximos artigos sobre os espaços domésticos de um “habitar e viver melhor”.
Fig. 02: uma habitação que sirva
e se evidencie, designadamente, como “estojo” global e particularizado, mas
versátil, devidamente estimulante, agradável e funcional dos espaços, elementos
e comportamentos que integram as nossas vidas – uma habitação muito mais feita
de relações entre comportamentos do que entre compartimentos.
Grandes temas para a revisão dos espaços domésticos
Retomando o excelente parágrafo do
arquiteto P. Céleste, acima apontado, é essencial que nos interiores domésticos
possamos “estar em sua (nossa) casa” (o “nossa” é
responsabilidade do autor destas linhas) e numa “habitação calorosa”,
sendo que “o contexto é o que nos anima” e, nesse contexto,
o “exterior deve fazer sonhar”, e há que privilegiar
uma “distribuição
simples que
proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos
habitacionais muito flexíveis” e “é preciso encontrar uma certa
forma de deambulação, estar atento à arte de colocar uma
porta, uma janela, atento aos gestos quotidianos.” (2)
Regista-se que esta “repetição” sincopada das palavras do citado autor parece sintetizar muito daquilo que se tenta sublinhar neste artigo e que se irá procurar desenvolver, mais um pouco, já de seguida e em próximos artigos desta série e salienta-se, desde já, que em 10 aspetos considerados no texto acima (referidos em seguida na mesma ordem usada no referido parágrafo), apenas dois se podem considerar com natureza mais objetiva e mesmo assim a questão de uma “distribuição simples” e da adequação aos “gestos quotidianos” incluem, também, muitos e amplos aspetos menos objetivos:
(i)
apropriação geral;
(ii)
atratividade e domesticidade;
(iii)
integração;
(iv)
comunicabilidade e estímulo ao desejo/sonho no habitar;
(v)
racionalidade e acessibilidade – “distribuição simples”;
(vi)
apropriação específica e reforço da identidade de cada espaço;
(vii)
adaptabilidade;
(viii)
acessibilidade flexível, adaptável e apropriada.
(ix)
criatividade projetual e capacidade de pormenorizar
(x)
funcionalidade e adequação à multiplicidade dos “gestos quotidianos”.
Não se
trata aqui de aprofundar qualquer conflito/despique entre aspetos mais
qualitativos e eventualmente mais subjetivos ou mais quantitativos e objetivos,
pois ambos têm natural presença no quadro de uma adequada e ampla qualidade
residencial e arquitetónica, mas apenas sublinhar que, quando estamos
em presença de uma boa conceção de arquitetura residencial (e sublinha-se
expressivamente esta condição), a essencial mistura qualitativa e quantitativa
ou mais subjetiva e mais objetiva, referida aos diversos aspetos de projeto e
vivência a ter em conta, não parece favorecer os aspetos habitualmente
considerados como mais objetivos, funcionais e racionalistas, e, aliás, isto
acontece, quer devido à fulcral importância dos outros aspetos, em boa parte
responsáveis pelo fazer das habitações de que realmente gostamos e que
realmente nos satisfazem – tal como aponta P. Céleste –, quer devido à
frequente circunstância de tais aspetos mais funcionais estarem, habitualmente,
tão intimamente embebidos no “partido” geral e no quadro de pormenorização da
habitação, que acabam por não ser entendidos de forma específica e isolada por
quem a habita e mesmo por quem a visita.
Dito isto
apontam-se e comentam-se, muito brevemente, em seguida as matérias em que nos
propomos dividir, estrategicamente, a abordagem ao grande tema dos “mundos
domésticos e pessoais” (que tem sido publicada, ao longo de muitos meses, na
Infohabitar na série editorial “Habitar e viver melhor”).
Serão assim
tratadas, em seguida muito sinteticamente e, posteriormente, em artigos
específicos, as seguintes matérias relativas aos “mundos domésticos e
pessoais”.
Grandes Opções Domésticas
A
organização e a caracterização de um espaço doméstico pode seguir determinados
hábitos de organização domésticos, alguns dos quais decorreram da evolução da
vivência doméstica ao longo de alguns milénios, e outros que, praticamente,
acabaram de nascer pois foram inventados em finais do séc. XIX e no séc. XX, ou
então a organização e a caraterização de um espaço doméstico pode passar por
uma verdadeira reinvenção bem fundamentada das respectivas funções, ambientes,
associações espaciais e diversos espaços de actividade e de cena, numa
perspetiva de aplicação discutida do que podemos designar como “Grandes Opções
Domésticas”.
Opções estas que, evidentemente,
não são ou não devem ser rígidas, condição esta que desde logo evidencia a
importância de se aplicar/prever uma importante “reserva” de adaptabilidade
doméstica.
Espaços de ligação habitação-edifício e habitação-rua
Sobre a
ligação habitação-rua importa aprofundar as possibilidades vivenciais e
arquitetónicas que uma diversidade de relacionamento entre esses dois mundos de
privacidade e convivialidade pode e deve proporcionar com o duplo objectivo de
uma cidade mais variada, atraente e mesmo equilibradamente surpreendente, e de
uma habitação marcada pelas identidades próprias e de cada família.
E um outro importantíssimo aspeto
deste sentido de relação da habitação com o seu exterior joga-se na essencial
relação entre os diversos espaços domésticos (construídos) e os espaços e
elementos naturalizados, existentes, quer em espaços privados exteriores, quem
na vizinhança pública ou comum; e afinal desta relação sairão valorizados tanto
os espaços interiores como os exteriores.
Viver ao nível térreo
A existência de residências
térreas, dispondo de espaços exteriores privativos, liga-se a uma oferta,
directa, de condições de vida diária potencialmente muito semelhantes ao viver
em edifícios unifamiliares e pode, até, ser conveniente para potenciar a continuidade
da presença humana e a animação urbana.
Nesta perspectiva podemos
considerar que “viver ao nível térreo” será um dos principais passaportes para poder
viver em outras tipologias residenciais que não apenas as mais normais ou
habituais e por aqui chegaremos, entre outras, às estimulantes tipologias intermediárias
entre edifícios multi e unifamiliares; e de tais misturas sairão as vizinhanças
e a cidade enriquecidas, para além de se obter a importante satisfação de um
amplo leque de desejos habitacionais privados e familiares, pouco consentâneos com
o pobre leque tipológico habitacional habitualmente existente.
Sobre a adaptabilidade doméstica
Sobre a importância, hoje em dia
crucial, da adaptabilidade das soluções domésticas salientam-se alguns aspectos
que são considerados essenciais tendo em vista, essencialmente, o
desenvolvimento de habitações adequadas a diversos tipos de famílias, modos de
vida e de uso e apropriação, e o combate a "layouts" e configurações
pormenorizadas com características funcionais e ambientais "rígidas"
(pouco adaptáveis e versáteis); de certo modo e mais uma vez é apagar, de vez,
a ideia de que as habitações podem ser concebidas, apenas, como soluções
funcionais, e/ou que essa possibilidade é algo que pode ser, até, considerado
como um aspeto positivo na conceção – numa espécie de “normalização” da vida
doméstica, habitualmente logo expandida à normalização de (pseudo)vizinhanças e
até, por vezes, de (pseudo)cidades.
Fig. 03: uma habitação que acabe
por ser, muito mais, um amplo conjunto de versáteis microespaços para-domésticos,
dinamicamente agregáveis, do que um simples mostruário de compartimentos quase
monofuncionais.
Bons espaços e ambientes domésticos
A ideia que
se quer aqui sublinhar é a importância determinante do conforto ambiental, com
destaques específicos para a insolação, a luz natural, a ventilação, o
isolamento de ruídos e o isolamento térmico, para uma verdadeira satisfação com
o espaço doméstico.
Os espaços e,
essencialmente, os microespaços domésticos valerão muito mais como elementos
relacionais e até de transição ambiental, do que como células quase
auto-enclausuradas.
Zonas domésticas: (novas) ideias organizativas
Provavelmente,
há alguns anos, esta parte do trabalho seria das mais importantes em termos de
um apoio prático ao desenvolvimento de melhores soluções habitacionais; tratava-se,
então, afinal, de um relativo culminar de toda uma tradição de zonamentos
funcionais ou funcionalistas, zonamentos estes que, infelizmente, ajudaram a
destruir bairros de cidades e a uniformizar espaços domésticos no sentido do
serviço a uma pessoa “média” e a uma família “média”, que raramente existem.
Propõem-se, como essencial modelo
de revisão, um apurado, sensível e adaptável modelo de microfuncionalidades,
aliás já bem preparadas nos bons estudos funcionais como os de Nuno Portas, no
LNEC (“Funções e exigências de áreas da habitação”), de Sven Thiberg e de Claude
Lamure; e em mútiplos e excelentes estudos de arquitectos projectistas e
autores de livros, como, por exemplo, Herman Hertzberger.
Equilíbrios dimensionais e de privacidade
Procura-se desenvolver, neste tema,
considerações sobre o equilíbrio com que se distribui o espaço na habitação e
as respectivas consequências na adequação a variados tipos de família e a
diversos modo de vida.
Trata-se, evidentemente, de matéria
básica na concepção residencial, mas infelizmente muito mais presente nas respectivas
memórias descritivas do que na realidade dos espaços construídos.
Opções domésticas de compartimentação
Trata-se de desenvolver a matéria
da junção e divisão de compartimentos e espaços, da escolha entre ter mais
compartimentos mais pequenos ou menos compartimentos maiores e da separação
entre zonas mais sociais ou mais íntimas.
E neste “capítulo” fica bem evidenciada
a rica possibilidade de se habilitar o espaço doméstico para uma ampla e complexa
constelação de microfunções e microcomportamentos; muito mais rica do que a
simples normalização “compartimental”.
“Libertar” a habitação das instalações.
A ideia que
quer aqui evidenciar é que tudo o que se faça para favorecer uma maior
capacidade de apropriação e de adaptabilidade dos espaços domésticos
relativamente aos seus habitantes, pode ser extremamente afetado, por redes e
padrões de serviço de instalações rígidos e pouco adaptáveis.
Trata-se de assunto que tem a sua complexidade,
mas que merece aprofundamento, também, quando vivemos uma situação que faz evidenciar,
por exemplo, a importância de uma maximização da privatização de casas de
banho.
Oferta diversificada de espaços domésticos específicos
Nesta parte da temática abordam-se,
globalmente, os compartimentos, cantos e recantos domésticos e os espaços
tendencialmente intimistas onde se processa a vida diária das famílias, um
leque variado de espaços habitualmente com funções específicas, mas
desejavelmente com uma equilibrada flexibilidade funcional, que devem ser
espaços privilegiados da apropriação familiar e individual.
E lá voltamos à insuspeita
importância de uma adequada proposta de uma amplíssima panóplia de microespaços
domésticos; matéria esta que, sem dúvida, coloca em evidência a importância de
um excelente projeto de Arquitectura.
Notas:
(1) e (2) Monique Eleb, Anne Marie
Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997,
p. 238.
Uma primeira versão, mais resumida, deste artigo
foi publicada nos números 468 e 469 da Infohabitar, em 20 e 27 de Janeiro de
2014.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada,
caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha
de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões
expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições
individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto
da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos
artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos
artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é,
igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão
referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e
científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito
significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver
com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo
GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à
respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas
e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do
teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou
negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido
na edição.
Infohabitar, Ano XVI, n.º 729
Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços
da habitação, aspetos gerais e temas de desenvolvimento (edição revista e
aumentada) – Infohabitar # 729
Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola
Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação
em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil
(LNEC), em Lisboa.
Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para
a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na
Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).
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