terça-feira, maio 12, 2020

Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação – Infohabitar # 729


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Infohabitar, Ano XVI, n.º 729

Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos gerais e temas de desenvolvimento (edição revista e aumentada) – Infohabitar # 729

Por António Baptista Coelho (texto e imagens)

Notas prévias:
Caros leitores da Infohabitar, estimados amigos,
Esperando que estejam todos de saúde, ou a recuperá-la com passos firmes, reafirma-se que a nossa revista mantém a sua regularidade semanal e irá, neste e nos seus próximos números revisitar a temática dos espaços domésticos, que sempre foi uma das nossas matérias editoriais “centrais” e mesmo uma quase razão de ser do nosso nascimento há cerca de 16 anos.
Este “retorno” aos espaços domésticos, que é feito tendo por base alguns artigos já aqui editados e que foram e serão, naturalmente, revistos e desenvolvidos, justifica-se, entre outras razões, pelo evidente e novo protagonismo que esses nossos espaços de vida assumiram nas longas semanas do nosso confinamento; um relevo que importa sentir em profundidade e aproveitar em tudo aquilo que possa contribuir para uma adequada e bem ponderada revisão programática, quantitativa, qualitativa e objetivada dos nossos mundos domésticos mais privados, “pessoais” e familiares.
Esperando que estes artigos possam ser considerados interessantes e oportunos pelos estimados leitores e lembrando-se que serão muito bem-vindas eventuais ideias comentadas a propósito destes artigos e mesmo propostas de novos artigos (a enviar para abc.infohabitar@gmail.com ao meu cuidado),
despeço-me, até à próxima semana, com saudações calorosas e desejos de muita força e de boa saúde,
Lisboa, Encarnação, em 10 de maio de 2020
António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar


Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos gerais e temas de desenvolvimento

Sobre o fazer dos nossos pequenos mundos domésticos o arquitecto e habitante P. Céleste refere que se trata “de ocupar um sítio, de estar em sua casa, de produzir uma habitação calorosa. O contexto é o que nos anima. [escreve ele]
Há peças que devem ver o exterior e esse exterior deve fazer sonhar. Há que ter atenção a uma distribuição simples que proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos habitacionais muito flexíveis [ ...
...] é preciso encontrar uma certa forma de deambulação, estar atento à arte de colocar uma porta, uma janela, atento aos gestos quotidianos.
O habitar de hoje não é mais pensado como no século XIX para a festa e a recepção, mas para a relação com a vida quotidiana” (1) – os sublinhados são do autor do artigo.

Organizações da habitação

Falar de organizações da casa, atualmente, poderia ou deveria ser falar de uma reflexão e inovação contínuas, sempre no sentido de se procurar uma adequação contínua, pois já é tempo de (voltar a) pensar a casa com verdadeira e exigente liberdade.
Esta matéria parece ser óbvia, mas só o será superficialmente, pois continuamos a imaginar e conceber habitações numa “lógica” quase estritamente funcionalista e rigidamente hierarquizada e praticamente nem notamos o que estamos a fazer, pois toda a nossa formação foi feita nesse sentido de funcionalização e “mecanização” do espaço doméstico, um espaço que deveria ser um tal “estojo”, mas extremamente versátil, das nossas variadas identidades.
E note-se, aqui, o potencial conflito entre um ambiente que tanto nos deve envolver e proteger, adequando-se a necessidades, como deve poder evoluir ao serviço da mutação dessas necessidades e da (re)formulação dos nossos desejos habitacionais – e mesmo nesta formulação de “nossos” desejos habitacionais ou de habitar (que não são bem a mesma coisa), importa considerar a nossa parte bem própria e individual (que serão provavelmente tantas quantos os coabitantes) e a parte comum que também tem de marcar o nosso habitar.
Há, naturalmente, alguns aspectos que são fundamentais em termos de privacidade, funcionalidade e conforto, mas estes são, de certa forma, facilmente sintetizáveis numa pequena listagem de aspectos dimensionais mínimos (ex., larguras de compartimentos) e de recomendações, ou, melhor dito, esclarecimentos no sentido de se alertar para que determinados posicionamentos de determinados compartimentos (ex., casas de banho) poderão ter influências negativas nos jogos de privacidade e de adaptabilidade interiores e que há que ter em conta relações privilegiadas e protegidas entre alguns compartimentos (ex, entre quartos de dormir e casas de banho).
Mas estamos, realmente e frequentemente, já bem longe das situações em que as “instalações sanitárias” eram tendencialmente zonas higienicamente críticas e que convinha afastar e “esconder” o mais possível e onde as cozinhas eram espaços “oficinais” dificilmente integráveis com as zonas de estar; isto só para dar dois exemplos de mudança doméstica profunda.
Mas mesmo a este nível há bem recentes e importantes mutações no privilegiar de uma casa de banho estrategicamente situada bem próximo da entrada da habitação e que não seja apenas um lavabo, mas sim podendo proporcionar como que um espaço de “descompressão” e higienização quando da chegada a casa.
O resto, o resto que é quase tudo numa “inovadora” conceção dos espaços domésticos, deveria ser flexibilizado no âmbito das supostas e diversas capacidades criativas dos projectistas e dirigido para os modos de querer viver mais específicos dos habitantes; naturalmente com a excepção de situações, devidamente identificadas, onde haja que ter em conta condições específicas e potenciais de uso da casa que recomendem cuidados particularizados, designadamente, em termos de relações entre espaços, uso e manutenção da habitação e sua durabilidade.
E atente-se que, tal como bem sabemos, mesmo nestas condições de justificada e cuidadosa adequação a modos de vida e usos da casa muito específicos e exigentes, o referido e “cego” excesso funcionalista, fazia, muito frequentemente, “vista grossa”,  ignorando deliberadamente tais contextos e aplicando-lhes a mesma receita global de habitar – da vizinhança, ao edifícios e ao espaço doméstico.

Flexibilização e adaptabilidade doméstica

Importa sublinhar que tais caminhos de flexibilização e ampla adaptabilidade doméstica não significam, naturalmente, qualquer abandono dos objectivos de qualidade residencial, mas sim um claro acréscimo dos mesmos, pois há todo um mundo de possibilidades de viver a casa, algumas delas aqui apontadas, que podem proporcionar uma satisfação e uma apropriação muito mais intensa por parte dos moradores.
O que se fez durante muitas dezenas de anos, designadamente, do século XX foi negar a existência de um tal mundo da identidade e da adaptabilidade, que está à vista de todos em tantos exemplos de arquitectura tradicional, quanta dela até, por vezes, justificadamente não-regulamentar, e em tantos outros exemplos daqueles grandes arquitectos que fizeram grande arquitectura doméstica, mas que preconizaram ideias que não foram verdadeiramente entendidas e que não puderam ser, assim, reinterpretadas, por uma maioria de colegas menos criativos e que acabaram por beber essas “regras” como elemento facilitador de uma prática de projecto rigidamente funcionalista, até porque veiculada em termos regulamentares numa opção que é, frequentemente, arquitectonicamente “árida”.
Poderíamos até imaginar que, no limite, não seriam precisos arquitetos, para fazer essa arquitetura doméstica “automatizada”, ou então o habitar poderia “reduzir-se” a uma indústria do tipo da automobilística em que se concebem, rigorosamente, “meia dúzia” de modelos (mais desportivos, mais familiares, mais económicos, etc.), que são, depois, globalmente disponibilizados; mas, pelo menos, o autor destas linhas e julga-se muito mais pessoas acreditam que o habitar novo e o reabilitado não têm este tipo de caraterísticas, pois deverão ser o tal “estojo” adaptativo da nossa identidade e história e também, cumulativa e evidentemente, elementos protagonistas da nossa cidade e da nossa cultura.
Nada disto quer fazer reduzir a fundamental importância das matérias regulamentares ligadas a aspectos essenciais de segurança, saúde e bem-estar, no entanto considera-se que deve continuar a haver uma verdadeira possibilidade de reinterpretar arquitectonicamente tais matérias e, além disso ou, melhor, antes disso, haveria que rever alguns desses corpos regulamentares à luz de uma prática consistente e de um enquadramento científico verdadeiramente mais aprofundado e culturalmente mais fundamentado.
Tudo isto se julga pertinente quando estamos a passar a soleira da casa e quando, à nossa frente, imaginamos, por um lado, a infinidade de soluções domésticas repetidas até à náusea, numa espécie de solução-tipo geral de habitação, naturalmente, com libertadoras variações criativas e estimulantes, enquanto, por outro lado, lembramos ainda tantas soluções que fomos visitando ou vendo em livros e revistas e onde não há essa solução global estereotipada – uma espécie de “esquerdo-direito” doméstico – mas sim uma enorme diversidade de oferta de relações, espaços, microespaços e pormenores protagonistas, que marcam positivamente as casas e quem as habita ou até apenas as visita, reforçando-lhes, designadamente, os seus aspetos de identidade e de apropriação e, acredite-se, frequente e associadamente os tais tão empolados aspetos funcionais; assistindo-se a uma procura espacial e ambiental em que os referidos suplementos de alma de identidade e “personalização”, acabam por gerar inesperadas e excelentes funcionalidades.




Fig. 01: uma habitação expressivamente habilitadora em termos de diversidade de oferta de relações, espaços e pormenores protagonistas, que marcam positivamente as casas e quem as habita ou até apenas as visita, reforçando-lhes, designadamente, os seus aspetos de identidade e de apropriação.

 Espaços domésticos bem caraterizados

Sendo assim, não se aborda neste texto um qualquer menu de soluções a aplicar conforme um outro menu de necessidades, mas “apenas” se vai, aqui, desenvolvendo uma pequena viagem por mundos domésticos positivamente caracterizados, onde cada espaço e cada relação nos emociona e nos serve plenamente; sendo que a mistura de tais espaços e ambientes a acaba por ser, quase sempre, muito mais significativa do que a simples soma funcional das suas respetivas partes e ficará, naturalmente, ao livre arbítrio dos leitores e à capacidade que possam ter de poderem influenciar as suas casas.
Por isso se optou por uma exposição que “inverte”, um pouco, as regras normais em trabalhos técnicos e científicos, porque se irá tratar daquilo que marca espacial e ambientalmente as diversas zonas da casa, em termos de notas gerais bem entendíveis por todos e não apenas por projectistas e investigadores, remetendo-se para “pé-de-página” as indicações mais objectivas e especificadas, sempre que se considere que tais indicações poderão ser úteis para concretizar as ideias de vida e ambiente doméstico a que se referem.
E não é excessivo referir que outros estudos se dedicam especificamente aos aspetos mais objectivos do habitar e dos espaços domésticos, como por exemplo o livro intitulado “Do bairro e da vizinhança à habitação”, que foi publicado pelo LNEC no já “longínquo” ano de 1998 (ITA 2); e mesmo neste estudo houve o cuidado de disponibilizar várias possibilidades e opções funcionais para cada espaço doméstico, referidas por diversos autores.
Mas na mesma séria editorial do LNEC um livro mais recente, a “Habitação e Arquitetura: Contributos para uma habitação e um espaço urbano com mais qualidade” (ITA 12 de 2012), aborda estas matérias com um sentido muito mais verdadeiro, porque qualitativo e tendencialmente integrado, enquanto ainda outro estudo do LNEC (que estão disponível numa forma desenvolvida na Livraria do LNEC) procura direcionar estas temáticas segundo um fio condutor vitalmente marcado pela necessidade e pela esperança de podermos habitar espaços expressivamente humanizados – “Entre casa e cidade, a humanização do habitar”, disponível na dafne editora, opúsculos - Pequenas Construções Literárias sobre Arquitectura, opúsculo 18, 2009. (www.dafne.com.pt/pdf_upload/opusculo_18.pdf )
De certa forma, em todos estes estudos já editados e como base do presente texto assume-se a ideia de uma técnica de bem-fazer habitação e habitar que esteja expressivamente subordinada ao objectivo fundamental de se viver melhor, na casa de cada um, de acordo com os melhores objectivos de vivência doméstica que felizmente encontramos em tantos exemplos, frequentemente até de habitação de interesse social, desmistificando-se, deste modo, que tais objectivos são difíceis em termos de custo e em termos de “impossibilidades” funcionais e abrindo-se, assim, caminho para que cada um possa (re)inventar, pelo menos parcialmente, o seu sítio doméstico sonhado e desejado.

Habitação e apropriação

A batalha seguinte será tentar concretizar tais ideias no mundo doméstico de cada um, mas uma guerra tem sempre várias batalhas e para as começar a ganhar é essencial apostar numa informação esclarecida e eficaz.
Lembremos que se começou esta viagem – e esta série editorial (“Habitar e viver melhor”) – na vizinhança urbana e, depois, ao longo do edifício, que são mundos onde naturalmente terá de haver ordem e equilíbrio gerais e consensuais e onde a apropriação por cada um, será bem-vinda, mas desde que bem regrada, concentrada e positivamente cumulativa em termos de atractividade e de identidade local; mas agora, dentro das nossas casas, estamos num mundo “mais nosso”, que deve privilegiar uma adequada apropriação individualizada dos seus diversos espaços e elementos particularizados.
Importa referir, ainda, o facto de que temos sempre tendência a imaginar uma casa numa perspectiva organizativa rígida: por exemplo, imaginamos entrar para um vestíbulo e daí passar para o resto da habitação, mas quando encaramos uma situação “tradicional” de entrada directa para uma sala de jantar que é também sítio de boas-vindas não estranhamos esta “quebra” de sequências. E este é um exemplo que pode ir mais longe, naturalmente, e que aqui se “ilustra” lembrando-se a entrada de uma habitação em Malmö, que dava directamente para uma ampla cozinha e sala de família: não havia outra entrada e os visitantes estranhavam, logo na altura, mas as reacções pareciam, depois, globalmente positivas, quando os visitantes começavam a entender a estrutura inovadora daquela habitação.
E será, assim, nesta perspetiva de uma inovação bem fundamentada e referenciada à nossa cultura habitacional e doméstica que procuraremos ir estruturando neste texto e em próximos artigos sobre os espaços domésticos de um “habitar e viver melhor”.





Fig. 02: uma habitação que sirva e se evidencie, designadamente, como “estojo” global e particularizado, mas versátil, devidamente estimulante, agradável e funcional dos espaços, elementos e comportamentos que integram as nossas vidas – uma habitação muito mais feita de relações entre comportamentos do que entre compartimentos.

 


Grandes temas para a revisão dos espaços domésticos

Retomando o excelente parágrafo do arquiteto P. Céleste, acima apontado, é essencial que nos interiores domésticos possamos “estar em sua (nossa) casa (o “nossa” é responsabilidade do autor destas linhas) e numa “habitação calorosa”, sendo que “o contexto é o que nos anima” e, nesse contexto, o “exterior deve fazer sonhar”, e há que privilegiar uma “distribuição simples que proporcione dar um nome a cada peça e que se ligue a comportamentos habitacionais muito flexíveis” e “é preciso encontrar uma certa forma de deambulação, estar atento à arte de colocar uma porta, uma janelaatento aos gestos quotidianos.” (2)

Regista-se que esta “repetição” sincopada das palavras do citado autor parece sintetizar muito daquilo que se tenta sublinhar neste artigo e que se irá procurar desenvolver, mais um pouco, já de seguida e em próximos artigos desta série e salienta-se, desde já, que em 10 aspetos considerados no texto acima (referidos em seguida na mesma ordem usada no referido parágrafo), apenas dois se podem considerar com natureza mais objetiva e mesmo assim a questão de uma “distribuição simples” e da adequação aos “gestos quotidianos” incluem, também, muitos e amplos aspetos menos objetivos:

(i) apropriação geral;
(ii) atratividade e domesticidade;
(iii) integração;
(iv) comunicabilidade e estímulo ao desejo/sonho no habitar;
(v) racionalidade e acessibilidade – “distribuição simples”;
(vi) apropriação específica e reforço da identidade de cada espaço;
(vii) adaptabilidade;
(viii) acessibilidade flexível, adaptável e apropriada.
(ix) criatividade projetual e capacidade de pormenorizar
(x) funcionalidade e adequação à multiplicidade dos “gestos quotidianos”.


Não se trata aqui de aprofundar qualquer conflito/despique entre aspetos mais qualitativos e eventualmente mais subjetivos ou mais quantitativos e objetivos, pois ambos têm natural presença no quadro de uma adequada e ampla qualidade residencial e arquitetónica, mas apenas sublinhar que, quando estamos em presença de uma boa conceção de arquitetura residencial (e sublinha-se expressivamente esta condição), a essencial mistura qualitativa e quantitativa ou mais subjetiva e mais objetiva, referida aos diversos aspetos de projeto e vivência a ter em conta, não parece favorecer os aspetos habitualmente considerados como mais objetivos, funcionais e racionalistas, e, aliás, isto acontece, quer devido à fulcral importância dos outros aspetos, em boa parte responsáveis pelo fazer das habitações de que realmente gostamos e que realmente nos satisfazem – tal como aponta P. Céleste –, quer devido à frequente circunstância de tais aspetos mais funcionais estarem, habitualmente, tão intimamente embebidos no “partido” geral e no quadro de pormenorização da habitação, que acabam por não ser entendidos de forma específica e isolada por quem a habita e mesmo por quem a visita.
Dito isto apontam-se e comentam-se, muito brevemente, em seguida as matérias em que nos propomos dividir, estrategicamente, a abordagem ao grande tema dos “mundos domésticos e pessoais” (que tem sido publicada, ao longo de muitos meses, na Infohabitar na série editorial “Habitar e viver melhor”).
Serão assim tratadas, em seguida muito sinteticamente e, posteriormente, em artigos específicos, as seguintes matérias relativas aos “mundos domésticos e pessoais”.

Grandes Opções Domésticas

A organização e a caracterização de um espaço doméstico pode seguir determinados hábitos de organização domésticos, alguns dos quais decorreram da evolução da vivência doméstica ao longo de alguns milénios, e outros que, praticamente, acabaram de nascer pois foram inventados em finais do séc. XIX e no séc. XX, ou então a organização e a caraterização de um espaço doméstico pode passar por uma verdadeira reinvenção bem fundamentada das respectivas funções, ambientes, associações espaciais e diversos espaços de actividade e de cena, numa perspetiva de aplicação discutida do que podemos designar como “Grandes Opções Domésticas”. 
Opções estas que, evidentemente, não são ou não devem ser rígidas, condição esta que desde logo evidencia a importância de se aplicar/prever uma importante “reserva” de adaptabilidade doméstica.

Espaços de ligação habitação-edifício e habitação-rua

Sobre a ligação habitação-rua importa aprofundar as possibilidades vivenciais e arquitetónicas que uma diversidade de relacionamento entre esses dois mundos de privacidade e convivialidade pode e deve proporcionar com o duplo objectivo de uma cidade mais variada, atraente e mesmo equilibradamente surpreendente, e de uma habitação marcada pelas identidades próprias e de cada família.
E um outro importantíssimo aspeto deste sentido de relação da habitação com o seu exterior joga-se na essencial relação entre os diversos espaços domésticos (construídos) e os espaços e elementos naturalizados, existentes, quer em espaços privados exteriores, quem na vizinhança pública ou comum; e afinal desta relação sairão valorizados tanto os espaços interiores como os exteriores.

Viver ao nível térreo

A existência de residências térreas, dispondo de espaços exteriores privativos, liga-se a uma oferta, directa, de condições de vida diária potencialmente muito semelhantes ao viver em edifícios unifamiliares e pode, até, ser conveniente para potenciar a continuidade da presença humana e a animação urbana.
Nesta perspectiva podemos considerar que “viver ao nível térreo” será um dos principais passaportes para poder viver em outras tipologias residenciais que não apenas as mais normais ou habituais e por aqui chegaremos, entre outras, às estimulantes tipologias intermediárias entre edifícios multi e unifamiliares; e de tais misturas sairão as vizinhanças e a cidade enriquecidas, para além de se obter a importante satisfação de um amplo leque de desejos habitacionais privados e familiares, pouco consentâneos com o pobre leque tipológico habitacional habitualmente existente.

Sobre a adaptabilidade doméstica

Sobre a importância, hoje em dia crucial, da adaptabilidade das soluções domésticas salientam-se alguns aspectos que são considerados essenciais tendo em vista, essencialmente, o desenvolvimento de habitações adequadas a diversos tipos de famílias, modos de vida e de uso e apropriação, e o combate a "layouts" e configurações pormenorizadas com características funcionais e ambientais "rígidas" (pouco adaptáveis e versáteis); de certo modo e mais uma vez é apagar, de vez, a ideia de que as habitações podem ser concebidas, apenas, como soluções funcionais, e/ou que essa possibilidade é algo que pode ser, até, considerado como um aspeto positivo na conceção – numa espécie de “normalização” da vida doméstica, habitualmente logo expandida à normalização de (pseudo)vizinhanças e até, por vezes, de (pseudo)cidades.





Fig. 03: uma habitação que acabe por ser, muito mais, um amplo conjunto de versáteis microespaços para-domésticos, dinamicamente agregáveis, do que um simples mostruário de compartimentos quase monofuncionais.

   

Bons espaços e ambientes domésticos

A ideia que se quer aqui sublinhar é a importância determinante do conforto ambiental, com destaques específicos para a insolação, a luz natural, a ventilação, o isolamento de ruídos e o isolamento térmico, para uma verdadeira satisfação com o espaço doméstico.
Os espaços e, essencialmente, os microespaços domésticos valerão muito mais como elementos relacionais e até de transição ambiental, do que como células quase auto-enclausuradas.

Zonas domésticas: (novas) ideias organizativas

Provavelmente, há alguns anos, esta parte do trabalho seria das mais importantes em termos de um apoio prático ao desenvolvimento de melhores soluções habitacionais; tratava-se, então, afinal, de um relativo culminar de toda uma tradição de zonamentos funcionais ou funcionalistas, zonamentos estes que, infelizmente, ajudaram a destruir bairros de cidades e a uniformizar espaços domésticos no sentido do serviço a uma pessoa “média” e a uma família “média”, que raramente existem.
Propõem-se, como essencial modelo de revisão, um apurado, sensível e adaptável modelo de microfuncionalidades, aliás já bem preparadas nos bons estudos funcionais como os de Nuno Portas, no LNEC (“Funções e exigências de áreas da habitação”), de Sven Thiberg e de Claude Lamure; e em mútiplos e excelentes estudos de arquitectos projectistas e autores de livros, como, por exemplo, Herman Hertzberger.


Equilíbrios dimensionais e de privacidade

Procura-se desenvolver, neste tema, considerações sobre o equilíbrio com que se distribui o espaço na habitação e as respectivas consequências na adequação a variados tipos de família e a diversos modo de vida.
Trata-se, evidentemente, de matéria básica na concepção residencial, mas infelizmente muito mais presente nas respectivas memórias descritivas do que na realidade dos espaços construídos.

Opções domésticas de compartimentação

Trata-se de desenvolver a matéria da junção e divisão de compartimentos e espaços, da escolha entre ter mais compartimentos mais pequenos ou menos compartimentos maiores e da separação entre zonas mais sociais ou mais íntimas.
E neste “capítulo” fica bem evidenciada a rica possibilidade de se habilitar o espaço doméstico para uma ampla e complexa constelação de microfunções e microcomportamentos; muito mais rica do que a simples normalização “compartimental”.

“Libertar” a habitação das instalações.

A ideia que quer aqui evidenciar é que tudo o que se faça para favorecer uma maior capacidade de apropriação e de adaptabilidade dos espaços domésticos relativamente aos seus habitantes, pode ser extremamente afetado, por redes e padrões de serviço de instalações rígidos e pouco adaptáveis.
Trata-se de assunto que tem a sua complexidade, mas que merece aprofundamento, também, quando vivemos uma situação que faz evidenciar, por exemplo, a importância de uma maximização da privatização de casas de banho.


Oferta diversificada de espaços domésticos específicos

Nesta parte da temática abordam-se, globalmente, os compartimentos, cantos e recantos domésticos e os espaços tendencialmente intimistas onde se processa a vida diária das famílias, um leque variado de espaços habitualmente com funções específicas, mas desejavelmente com uma equilibrada flexibilidade funcional, que devem ser espaços privilegiados da apropriação familiar e individual.
E lá voltamos à insuspeita importância de uma adequada proposta de uma amplíssima panóplia de microespaços domésticos; matéria esta que, sem dúvida, coloca em evidência a importância de um excelente projeto de Arquitectura.


Notas:
(1) e (2) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997, p. 238.


Uma primeira versão, mais resumida, deste artigo foi publicada nos números 468 e 469 da Infohabitar, em 20 e 27 de Janeiro de 2014.

Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é, igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado tal e qual foi recebido na edição.


Infohabitar, Ano XVI, n.º 729

Mundos domésticos e pessoais: habitação e espaços da habitação, aspetos gerais e temas de desenvolvimento (edição revista e aumentada) – Infohabitar # 729


Infohabitar
Editor: António Baptista Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa.


Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativa de Habitação Económica (FENACHE).

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