Infohabitar, Ano X, n.º 470
Infohabitar a
revista semanal na WWW sobre o
habitat humano
Artigo XLV da Série
habitar e viver melhor
António Baptista Coelho
Novas formas de habitar
Organização da habitação
A
organização e a caracterização de um espaço doméstico pode seguir determinados
hábitos de funcionalidade doméstica, e aqui tanto há hábitos que decorreram da
evolução da vivência doméstica ao longo de alguns milénios, como outros que,
praticamente, acabaram de nascer pois podemos dizer que foram, de certo modo,
“inventados” em finais do séc. XIX e,
designadamente, no séc. XX.
Alternativamente,
a organização e a caracterização de um espaço doméstico pode passar por uma
verdadeira reinvenção bem fundamentada das
respectivas funções, ambientes, associações espaciais e simbólicas e condições
específicas de desenvolvimento de diversos espaços de actividade e de cena,
numa perspetiva de aplicação discutida do que podemos designar, aqui, como
“Grandes Opções Domésticas”- matéria que abordaremos em vários artigos desta
série editorial.
Cidade e habitação
Esta
possibilidade muito ampla de diversidade no interior doméstico é, realmente, a
base do enorme interesse de que se pode, ainda, vir a revestir o acto de habitar,
um interesse potenciado, hoje em dia pela noção de que é a habitação que faz
cidade adequada, condição essencial no nosso século das cidades e das
mega-cidades frequente e criticamente caóticas; e daí se retira a crítica
oportunidade que têm e terão, por exemplo, as exposições habitacionais e os
amplos fóruns de discussão sobre estas matérias.
Relativamente
a esta clara abertura de perspectivas e de liberdade na organização e nos
conteúdos domésticos importa salientar que boa parte, se não a totalidade, dos
regulamentos que enquadram, por vezes rigidamente, a concepção do espaço
doméstico privativo nasceram devido a justas e vitais preocupações ligadas à
higiene, à saúde, à segurança e à defesa dos habitantes relativamente à sua
frequente exploração económica através do seu alojamento em condições
dimensional e ambientalmente patológicas; condições estas que muito se ligam
aos respetivos quadros urbanos.
Regulamentação da habitação – novos caminhos
Ora,
hoje em dia, é possível proteger os habitantes de boa parte, ou mesmo da
totalidade, dessas negativas condições urbanísticas e de habitar através de
outras medidas técnicas, construtivas e normativas que não aquelas que definem uniformemente
e quese “milimetricamente” a organização doméstica, compartimento a
compartimento e espaço a espaço.
E
todos sabemos que as diversas instalações que servem o habitar, incluindo as
sanitárias, conheceram enormes avanços nos últimos 100 anos, assim como as
estratégias de ventilação, as prescrições relativas a condições de higiene e
saúde associadas aos acabamentos e, naturalmente, todo o enorme compêndio de
novas soluções construtivas e de pormenorização; e portanto o que aqui se
defende é que para garantir as apropriadas e necessárias condições de higiene e
de saúde no habitar doméstico não é hoje necessário seguir, como regra única,
prescrições justificadas por condições por vezes até já relativamente
ultrapassadas, por proporcionarem, em alguns casos, soluções espaciais e
técnicas alternativas e eventualmente mais adequadas à crescente diversidade de
modos e desejos de habitar casa, cidade e paisagem.
Novos modos e desejos de habitar e velhas soluções recuperadas
Mas,
para além desta perspetiva, talvez seja chegada a altura, numa altura de tantas
inovações e possibilidades tecnológicas em termos de climatização, ventilação,
isolamentos e instalações, de poder começar a re-equacionar as próprias opções
básicas de organização doméstica; ou, pelo menos, é bem a altura de acabar com
modelos quase-únicos e de começar a disponibilizar uma verdadeira e atraente
diversidade de grandes opções domésticas.
E
a título de exemplos, que se julgam simples e atraentes, aponta-se a
reinterpretação da ideia de “hall”,
no sentido de espaço de entrada e de reunião mais ampla, uma ideia/função que
depois se pode desdobrar numa pequena saleta – o velho “parlour” – e numa cozinha e zona de refeições, cuja duplicidade
funcional possa ser, eventualmente, graduada conforme a dimensão da habitação e
até a ocasião de vivência – mais formal ou mais familiar/informal.
E
entenda-se que este exemplo é, isso mesmo, apenas um exemplo, embora fundado
numa tradição de viver doméstico que passou de um único espaço de habitar, ou
de dois espaços sendo um privado do casal e outro comum aos restantes
habitantes da casa, para uma especialização e respectiva espacialização fundada
essencialmente nos aspectos da privacidade dos quartos e da função social – e
eventualmente convivial – do receber (um receber que implica convívio), isto
ainda na alta idade média e referido às grandes casas, para, depois, se
desenvolver uma funcionalização de todas as habitações, incluindo as mais
pequenas.
E
o que se quer deixar aqui apontado é que, hoje em dia, talvez seja a altura de
retomar algum desse “caos” equilibrado em termos de funções domésticas.
Importa,
no entanto, sublinhar que tais novos caminhos não podem seguir o mau exemplo do
anterior funcionalismo organizativo, rigidamente hiereraquizado e de “modelo
único”, mas sim têm de ser aplicados adequada e cuidadosamente em relação e ao
serviço dos tais novos modos e desejos de habitar, ou de formas específicas de
viver a habitação; e quem projeta tem de ter a capacidade de julgar da
adequação ou inadequação destes caminhos, considerando as caraterísticas dos
moradores conhecidos ou prováveis.
Funções habitacionais renovadas e novos espaços habitacionais
Centrando-nos,
agora, na referida reinvenção das funções, dos ambientes, das associações e dos
espaços de exercício do habitar doméstico há que sublinhar que esta ideia se
liga quer a uma nova espacialização de determinados compartimentos,
transformando, por exemplo, a cozinha num amplo espaço multifuncional e
convivial e a sala-comum num pequeno complexo de áreas de actividade distintas
e convertendo outras áreas em espaços inovadores, porque concretizam a
associação de funções e de ideias diversificadas; por exemplo, uma semi-cave
que se transforma numa sala familiar, de trabalho e para dormir de convidados e
um lavabo social que é tratado muito mais como um espaço de recepção e
representativo, do que como uma vulgar e pequena casa de banho.
O
que se acabou de apontar tem a ver, por um lado, com a ideia que se tem
apontado, nesta série editorial, sobre a função não ser tudo, quando abordamos
o habitat humano, e revelar ser mesmo bastante pouco; uma ideia que se julga
ser bastante adequada seja na própria cidade e nos seus bairros, seja nas
vizinhanças residenciais e urbanas, seja nos edifícios habitacionais e,
finalmente, e naturalmente, de forma destacada, nos interiores domésticos.
Fig.
02: apontamento de Braga - zona do Arco da Porta Nova -, espaço urbano vivo, diverso e multifuncional
Funcionalismo no habitar – passado criticável e realidade a alterar
E
lembremos como o funcionalismo fez e faz sofrer os habitantes das cidades,
tentando “impingir-lhes” tipos de organização e conteúdos funcionais por vezes
aberrantes, porque tão distintos das misturas funcionais diversificadas que são
as mais humanas e que se ligam aos núcleos e novelos funcionais diversificados,
que são os verdadeiros motores e caracterizadores de cidades vivas e
estimulantes.
E
se tal aconteceu à escala da cidade o que dizer da escala do edificado,
abandonada à fúria especulativa do “pronto-a-habitar”, feito “à medida” de
famílias-tipo cada vez mais inexistentes e sempre “à medida” de uma indústria
da construção habitacional, que, naturalmente, preferiu um produto estandardizado;
num processo uniformizador que, por exemplo, nos oferece o famoso leque
tipológico do T0 ao T5, com eventuais e pouco frequentes soluções intermédias,
marcado pela omnipresente zona íntima e por uma estruturação funcional rigidamente
hierarquizada e repetida.
Habitar e inovação – habitar e adequação
Tal
realidade, marcada verdadeiramente pela consideração da habitação e do habitar
como produtos de consumo, foi apenas “combatida” em opções, ais ou menos,
experimentalistas e/ou de extremo bom-senso e grande qualidade arquitetónica,
associadas, frequentemente, a intervenções de habitação de interesse social e,
por vezes, a habitação para os grupos sociais mais favorecidos e/ou em
habitações feitas realmente à medida dos seus futuros habitantes; em ações que
privilegiam o desenvolvimento de um mundo familiar e pessoal que deve e pode
ser uma realidade feita para servir e estimular as necessidades e os sonhos de
habitar, bem como a mutação dos mesmos, através de soluções, que por vezes
parecem tão simples, como fusões e separações de espaços e de estruturas de
circulação, caraterizações ambientais marcantes, designadamente em termos de
sentido/”adn” doméstico, e de inovadoras integrações de instalações que
potenciem essa mesma capacidade de mutação e adequação.
Afinal
e tal como escreveu Christian Norberg-Schulz, a casa não é e não pode ser um
refúgio funcional, um "não lugar" uniforme, mas exige um espaço
distinto e uma cena que se possa imaginar (1).
Notas:
(1)
Christian Norberg-Schulz, "Habiter", p. 105.
Notas
editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Editor: António Baptista Coelho
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