Infohabitar, Ano X, n.º 471
Diversidade na organização habitacional
Artigo XLVI da Série habitar e viver melhor
António Baptista Coelho
Mais do que tudo o que, em seguida, se
aponte sobre as matérias associáveis à organização doméstica e à sua influência
numa expressiva satisfação dos habitantes, na fruição doméstica há aspectos que
importa sublinhar por se considerarem determinantes num tal resultado.
Organização espacial habitacional e qualidade arquitetónica
O primeiro
aspecto é que a qualidade da organização espacial e da pormenorização se ligue,
intimamente, a uma adequada ideia de habitar e de viver a casa, por outras
palavras é fundamental que a função siga a forma, não perdendo, naturalmente,
eficácia, porque nós habitantes vivemos as casas, intensa e profundamente e,
portanto, a forma interior das casas tem de ser algo fortemente coerente e
equilibrado; matéria que importa vir a desenvolver.
Adaptabilidade habitacional passiva
O segundo
aspecto é a enorme importância que tem a adaptabilidade passiva numa habitação,
uma condição que lhe permite satisfazer um significativo leque de funções nos
mesmos espaços e, tão importante como isso, um amplo leque de ocupações
específicas por mobiliário em cada espaço, condições estas que estão associadas,
quer a uma organização significativamente neutral, embora bem afirmada, quer a
condições de espaciosidade e dimensionais cuidadas; e tanto mais cuidadas
quanto menor for a quantidade de espaço que esteja disponível – o que obriga a
um grande cuidado por exemplo quando tratamos de habitação de interesse social.
Funcionalidade habitacional
O terceiro
aspecto tem a ver com a maximização das condições funcionais associadas a
instalações e equipamentos, à capacidade de arrumação e a uma grande facilidade
de execução das tarefas domésticas mais intensas e mais exigentes, como é o
caso da preparação de refeições, do tratamento de roupas e da limpeza
doméstica. Realmente é hoje em dia fundamental que todo este leque de condições
seja garantido de uma forma maximizada e não há desculpa para que isso não
aconteça pois todas essas funções estão já exaustivamente estudadas e existem
documentos claros que as elucidam.
Acessibilidade habitacional
O quarto e
último aspecto, desta reflexão, decorre em boa parte do terceiro e tem a ver
com a disponibilização de condições globais de acessibilidade no interior da
casa, tema este sobre o qual há também já muito dos elementos de apoio técnico
necessários; e, afinal, a funcionalidade essencial para pessoas com dificuldade
na movimentação é sempre uma funcionalidade acrescida para aqueles que não têm
tais limitações, uma matéria frequentemente esquecida quando se trada deste
assunto.
Importância da organização habitacional
Salinta-se,
ainda, que os primeiros dois aspectos, que acabaram de ser apontados, englobam,
claramente, os últimos, pois é afinal de uma organização espacial bem
estruturada e adaptável que pode resultar uma casa adequada, e sobre isto basta
dizer que há muitas casas realmente adequadas que cumprem essas duas primeiras
condições e não as últimas. Afinal, e tal como se tem apontado, a função não é
tudo, acaba mesmo por ser muito pouco, designadamente, quando estamos em
presença de uma boa Arquitetura habitacional, mas se pudermos respeitar este
leque de objectivos é, naturalmente, preferível, e será mesmo essencial quando se trate de uma
habitação nova.
Fig.
01: Habitação como espaço distinto e imaginável
Habitação como espaço distinto e imaginável
Lembrando uma
frase já citada de Christian Norberg-Schulz, afinal, a casa não é um refúgio
funcional, um "não lugar" uniforme, mas exige um espaço distinto e
uma cena que se possa imaginar (1).
E este espaço
"distinto e imaginável", portanto, base de algum sonho de como se
deseja habitar, tem já uma longa história a registar, pois já passaram mais de
10.000 anos do início de uma sua construção mais premeditada em termos de
espaços e ambientes comésticos, e sobre estes tantos anos de evolução, que como
em tantas outras áreas tiveram uma enorme dinâmica no passado Século XX ,
podemos citar uma síntese de Claude Lamure que aponta ter acontecido uma
diferenciação progressiva do espaço, e uma evolução genérica de um único
compartimento multifuncional até ambientes muito compartimentados e
funcionalmente especializados, ou mesmo espacializados (podemos nós comentar).
(2)
Da unidade à diferenciação do espaço habitacional
Será,
portanto, esta base funcional, do espaço doméstico único, amplo e indiferenciado,
onde se passam todas as funções e outras matérias domésticas das pequenas casas
de terra de Çatal Huiuk, na actual Turquia, há cerca de 10.000 anos, que fomos
evoluindo, consoante as nossas culturas, as nossas paisagens de habitar e os
nossos meios financeiros e outros, até à enorme casa altamente diferenciada nos
mais diversos tipos de compartimentos e outros espaços domésticos e
para-domésticos, tecnológicos e “inteligentes” que se diz terem integrado uma
grande casa que Bill Gates desenvolveu para seu uso pessoal, já há alguns anos.
Mas esta
evolução traz-nos, hoje, também a redescoberta de um certo novo sentido de
amplo espaço pouco diferenciado ou muito comunicante que carateriza, por
exemplo, a recente corrente dos lofts
habitacionais, que acabam, afinal, por recriar o tal espaço único mas agora com
uma enorme amplitude de volume de ar interior e com todas as mais recentes
tecnologias.
Influência da habitação no habitante
Esta é uma
matéria à qual iremos tentar voltar e aprofundar, um dia, porque ela o merece,
mas a ideia desta referência nesta entrada temática às matérias dos aspectos
domésticos que poderão ser mais indutores de verdadeira adequação e satisfação
residencial, tem a ver com a ideia, que defendemos, de a organização doméstica,
ou o layout doméstico, ser uma
matéria crucial, quer numa forte adequação a modos de vida, quer numa
caraterização da habitação que parece ser determinante nessa influência que se
julga que a casca do caracol tem sobre o caracol humano; e neste jogo de
relações a ideia que se julga pode ficar é que os aspectos funcionais têm a sua
importância, mas há muito mais para lá, ou ao lado, dos aspectos estritamente
funcionais. E por isto se dá, aqui, algum desenvolvimento a estas matérias.
Organização doméstica: opções básicas
Claude Lamure
oferece-nos algumas linhas de reflexão nesta perspectiva de preocupações com
uma organização doméstica verdadeiramente satisfatória e diz-nos que: (3)
- "podemos distinguir, frequentemente, espaços que agrupam diversos compartimentos e que se diferenciam de formas várias" (ex., várias funções, características mais conviviais ou mais íntimas, etc.);
- que "inversamente, num mesmo compartimento, diversos espaços ou cantos/recantos podem ser caraterizados por diversos critérios: apropriação por este ou aquele membro da família, tipo de actividade, ou de decoração".
- E que, "mais globalmente, as zonas bem diferenciáveis são aquelas acústica e visualmente isoláveis".
Ora temos,
assim, um caminho que parece ser agradavelmente simples e coerente numa
estruturação de espaços domésticos: zonas mais, ou menos, conviviais ou
“sociais”, possibilidade de desenvolver subespaços caracterizados, dentro de
outros espaços maiores, e eleição dos isolamentos visual e acústico como
elementos fundamentais na criação de diferentes zonas domésticas.
Fig.
02: opções de organização da habitação
Várias opiniões sobre as opções de organização da habitação
A ideia que
fica é que, sinteticamente, estará, talvez, quase tudo nesta reflexão de
Lamure, no entanto, nestas matérias tão sensíveis, que muito têm a ver com os
aspectos específicos de cada intervenção e de cada ideia de habitar a cidade, a
vizinhança e o edifícios, haverá muito a ganhar com a integração de outras
reflexões de outros projectistas e estudiosos nestas matérias e por isso, a
seguir, se integram e comentam, com brevidade, algumas outras ideias sobre a
organização dos mundos domésticos, numa ordem que tenta dar relevo aos aspectos
julgados mais importantes no objectivo de aproximação a uma casa que possa
ajudar a uma vida doméstica mais adequada, agradável e estimulante.
Da casa que estrutura formas de habitar à casa adaptável
E, assim, se
evidencia a questão básica de uma ideia de casa que é gerada por quem a
projecta e que pode entrar em conflito, e frequentemente entra, com a ideia de
casa do próprio habitante e neste balanço entre ideias de casa, e na opinião de
Harald Deilmann (4), quem projecta pode seguir duas vias distintas:
·
ou
comunica ao habitante as suas ideias de "habitabilidade" de uma forma
positiva e convincente, clarificando o interesse de certas soluções,
eventualmente, menos frequentes e salientando a mais-valia de uma solução mais
caracterizada e plena de identidade;
·
ou
avança numa estratégia de adaptabilidade doméstica dos espaços previstos a um
amplo leque de modos de vida e de usos da habitação, adaptabilidade esta que
pode jogar quer numa ideia de neutralidade organizativa (espaços com condições
dimensionais e de acessibilidade adequadas a diversos usos), quer em soluções
activas de ligação e de separação entre diversos espaços, quer, naturalmente,
numa aliança entre os dois tipos de soluções.
Opções domésticas e adequação aos modos de vida
E
nesta matéria da adaptabilidade doméstica Claude Lamure, interpretando vários
trabalhos franceses e, nomeadamente, os estudos de Chombart de Lauwe sobre a
adaptabilidade das habitações aos modos de vida, propõe um conjunto de
possibilidades que elas, habitações, podem/devem oferecer às famílias
("Adaptation du Logement à la Vie Familiale", pp. 43 e 44): (5)
(i) de arranjo
e apropriação de um espaço que seja suficiente;
(ii) de
independência de grupos humanos no interior das habitações;
(iii) de uma
graduação da privacidade no interior de cada alojamento;
(iv) de
repouso e descontracção;
(v) de
separação operacional das funções;
(vi) de
atenuação das limitações materiais;
(vii) de
prestígio (social);
(viii) de
adaptabilidade da estrutura do fogo e dos seus arranjos às estruturas
familiares;
(ix) e de
relações sociais exteriores.
Em próximas
edições desta série apresentaremos e comentaremos, então, outras reflexões de
outros projectistas e estudiosos nestas matérias sobre aspetos que consideram
estruturantes nas opções de organização dos espaços domésticos, numa perspetiva
que tenta aprofundar a grande diversidade de soluções que se oferecem e que
propiciam uma vida doméstica mais adequada, agradável e estimulante.
Notas:
(1) Christian Norberg-Schulz, "Habiter", p.
105.
(2) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la
Vie Familiale", p. 106.
(3) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la
Vie Familiale", p. 105.
(4) Harald Deilmann; J. Kirschenmann; H. Pfeiffer,
"The Dw elling / Dwelling-types, Building-types", p. 32.
(5) Claude Lamure, "Adaptation du Logement à la
Vie Familiale", pp. 43 e 44.
Notas editoriais:
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Editor:
António Baptista Coelho - abc@lnec.pt
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Habitar (GH)
Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional e Núcleo
de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) do LNEC
Edição: José
Baptista Coelho - Lisboa, Encarnação - Olivais Norte.
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