segunda-feira, julho 01, 2013

446 - A emergência da dimensão existencial nas cidades - Uma proposta a partir do Centro Histórico de Évora- Infohabitar 446

Infohabitar 446 

É sempre com uma satisfação muito especial que a Infohabitar e a sua edição dão as boas-vindas a um novo autor nas/das nossas páginas; fazemos assim esta brevíssima introdução a um excelente artigo da colega Susana Mourão, um artigo que conjuga e muito bem diversas áreas de conhecimento e de intervenção, que desenvolve uma reflexão, hoje em dia, muito oportuna relativa às temáticas da reabilitação/regeneração urbana e do viver a habitação de cada um (a tal que é ou pode ser uma segunda pele), e o habitar (que é também a vizinhança e o quadro urbano de integração) e a cidade de todos nós e nosso património.
Este artigo introduz, também, uma inovação na Infohabitar, com as ligações a alguns pequenos filmes em que a referida autora teve a colaboração da colega Marta Galvão Lucas.

Deseja-se uma boa leitura e espera-se que este seja o princípio de uma longa colaboração da Susana Mourão na Infohabitar.


António Baptista Coelho
Editor da Infohabitar

A emergência da dimensão existencial nas cidades - Uma proposta a partir do Centro Histórico de Évora


Susana Mourão

Socióloga, Pós-graduada em Design Urbano pelo Centro Português Design e Universidade Barcelona; Técnica Superior na Câmara Municipal de Évora
susmourao@gmail.com
Évora, Portugal

Nota Biográfica

Licenciada em Sociologia (1994l2000); Pósgraduada em Design Urbano pelo Centro Português Design e Universidade Barcelona (2002). Socióloga na Câmara Municipal de Évora desde 1998, tendo colaborado no Plano Estratégico Cultural do Concelho de Évora 1998l 2000, em 2001l2002 integra o Departamento Centro Histórico de Évora, Património e Cultura, na gestão de processos de reabilitação de edifícios, em 2009 colaborou no Plano de Gestão Centro Histórico de Évora, desde 2010, Coordena o Plano Local de Habitação e Reabilitação Urbana para o Concelho de Évora.

Desde 1999 trabalha em video para a produção de documentos em investigação social, nomeadamente em torno das questões do lugar. Em 1999 “Todos os Nomes menos Nacionalismo”, 2007 “Imagens ]ex[clusivas”, 2012 “Participação com rosto” em pós-produção. Desde 2005 com a colaboração de Marta Galvão Lucas, tem realizado práticas documentadas em video, sobre os moradores e a reabilitação das suas casas, no Centro Histórico de Évora. Em 2012 terminou “Henriqueta, uma cartografia íntima 2008l2012” que foi apresentada no Festival Escrita na Paisagem:

http://www.escritanapaisagem.net/event/27

Resumo

O Centro Histórico de Évora é Património Mundial desde 1986, pelo seu conjunto de valor patrimonial que é um elemento primordial de estruturação, caracterização, e identificação da cidade de Évora. Para a Salvaguarda e Valorização Patrimonial do Centro Histórico de Évora foi desenvolvida uma política de preservação do seu carácter patrimonial e dos elementos que constituem a sua imagem adaptando-os à vida contemporânea, e todas as intervenções são condicionadas ao seu valor patrimonial e ao seu espaço envolvente. Neste sentido, com a Classificação de Património Mundial e a sua respectiva política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial, podemos afirmar, que o Centro Histórico de Évora de um lugar de vocação Patrimonial.

Mas, o carácter do Centro Histórico de Évora vai além da sua “imagem” patrimonial ou dos elementos patrimoniais que o constituem, ele é um lugar do dia-a-dia da vida humana, sendo o seu espaço preenchido pelo sentido humano de habitar. Por isso, o carácter deste lugar é significativo e não apenas uma imagem para quem o habita. Assim, sendo o Centro Histórico de Évora um lugar habitado, a sua política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial está distante de quem o habita, sendo emergente a sua dimensão existencial.

Palavras-chave

O lugar de vocação patrimonial e o lugar existencial


O lugar de vocação patrimonial

O Centro Histórico de Évora foi classificado como Património Mundial da Humanidade, pela UNESCO em 1986. Esta classificação é delimitada pela muralha "Vauban" construída no século XVII e no seu interior encontra-se a "cidade-museu” (i), que contém 20 séculos de história dos povos e civilizações que habitaram em Évora. O Centro Histórico de Évora "é o melhor exemplo de cidade da idade de ouro portuguesa após a destruição de Lisboa no terramoto de 1755" (ii) e "só a paisagem urbana de Évora permite actualmente compreender a influência exercida pela arquitectura portuguesa no Brasil, em sítios como Salvador da Baía (inscrito em 1985 na lista de Património Mundial)" (iii). Este lugar único com 20 séculos de história, desde a sua romanização “Liberalitas Júlia” que conserva a partir de uma ruína o Templo de Diana. Quanto ao visigótico, a cidade cristã ocupou o espaço amuralhado romano, que sob o domínio muçulmano foi aperfeiçoado o seu sistema defensivo, tendo como vestígio uma porta fortificada e restos da Medina. Quanto à época medieval, temos a Sé Catedral que iniciou em 1186 e concluída no século XIV. Com a idade do Ouro, constroem-se conventos como em 1452 Convento de Santa Clara, 1480 a Igreja Real e o Convento de S. Francisco, 1470 Convento dos Lóios com a Igreja Evangelista em 1485. Com o estilo Manuelino destacam-se o Palácio dos Condes de Basto, a Igreja Santo Antão, de Santa Helena do Monte de Calvário, etc. No século XVI o Aqueduto da Água de Prata e as suas fontes, como a Praça do Giraldo. Em 1553, Évora afirma a sua influência intelectual e religiosa através da Universidade do Espírito Santo, que desempenha o papel análogo à Universidade de Coimbra.

Para além do património monumental, o Centro Histórico de Évora tem uma arquitectura menor de casas térreas, brancas de cal, cobertas de telhas ou terraços, que se situem nas ruas estreitas que definem a estrutura medieval e o crescimento concêntrico do Centro Histórico, dos séculos XVI, XVII e XVIII.

Com a classificação do Centro Histórico de Évora, como Património Mundial, foi o reconhecimento da sua Vocação Patrimonial (iv). Neste sentido, foi desenvolvida uma política de Salvaguarda e Valorização do Centro Histórico, através do Plano de Urbanização, da responsabilidade da Câmara Municipal de Évora. No Plano de Urbanização de Évora, o Centro Histórico é identificado como "um grande conjunto de valor patrimonial" sendo "um elemento primordial de estruturação, caracterização e identificação da cidade de Évora".(v)

A Vocação Patrimonial deste conjunto, não é identificado como "Cidade-Museu" mas sim, "A Cidade Intramuros" (vi) que é delimitada pela “área envolvente, a norte e poente, e pela cerca medieval e, a sul e a nascente, pela muralha do Século XVII/XVIII, coincidindo com o espaço classificado Património Mundial da Unesco em 26 de Novembro de 1986 e considerado o melhor exemplo de cidade da idade de ouro portuguesa pelo ICOMOS. Inclui 35 imóveis classificados por decreto, entre 190 elementos de valor patrimonial.” (vii) O Centro Histórico de Évora é um lugar de 104 hectares, delimitado pela muralha "Vauban" construída no século XVII, que contém edifícios classificados como monumentos nacionais e de elementos de valor patrimonial. Sem dúvida, que o Plano de Urbanização de Évora reforça a vocação patrimonial do Centro Histórico.

Para além da sua Vocação Patrimonial, a Cidade Intramuros "deverá manter a sua plurifuncionalidade com a presença da habitação, do terciário, equipamento, comércio e serviço, hotelaria e indústria artesanal” (viii) e todas as "obras relativas a edificações deverão procurar compatibilizar uma atitude de salvaguarda e valorização do património com o objectivo de dotar todos os edifícios de boas condições de habitabilidade” (ix).

Com esta recomendação, o Plano de Urbanização de Évora propõe as grandes funções urbanas do Centro Histórico (plurifuncionalidade), como habitar, trabalhar, passear, etc. e todas as intervenções no edificado deverão Salvaguardar e Valorizar o seu Património. Por “Património” entende "todos os espaços, conjuntos, edifícios ou elementos pontuais cujas características morfológicas, ambientais ou arquitectónicas se pretende preservar e como tal sejam identificados" (x) e deverão "ser salvaguardados e valorizados em todas as intervenções a efectuar na cidade" (xi) isto é, a Salvaguarda e Valorização Patrimonial consiste na “preservação do carácter e dos elementos determinantes que constituem a sua imagem adaptando-os à vida contemporânea” (xii) sendo todas as intervenções condicionadas "em função do património, das transformações do seu espaço envolvente".(xiii)

Este conjunto de grande valor patrimonial, onde estão inseridos 35 imóveis classificados e 190 elementos de valor patrimonial, todas as intervenções estão condicionadas à sua função patrimonial, através da preservação das características morfológicas, ambientais e arquitectónicas, isto é, valorizar e salvaguardar o seu carácter (xiv) visual. A preservação das características morfológicas, ambientais e arquitectónicas são de acordo com a classificação dos edifícios e das fachadas. Os edifícios são classificados como Monumentos Nacionais e de valor patrimonial E1, E2 e E3. Quanto aos Monumentos Nacionais apenas poderão ser objecto de “obras de conservação, restauro e eventualmente de reabilitação” (xv), os edifícios com valor patrimonial E1 e E2 apenas serão objecto de “obras de conservação, restauro e reabilitação, com preservação integral da fachada” (xvi), os edifícios com valor patrimonial E3 apenas serão objecto de “obras de conservação, restauro e reabilitação que poderão estender-se à fachada” (xvii).

Assim, os projectos de intervenção deverão cumprir os objectivos gerais de defesa do património, mesmo quando se trate de dotar um edifício de condições mínimas de habitabilidade, isto é, alterar um edifício para dotar de iluminação e ventilação natural ou ampliar o edifício para ter uma dimensão mínima de habitabilidade como um T0, conforme o Regime Geral de Urbanização Urbana, a solução projectada não poderá contrariar as razões que determinaram a classificação do edifício. Por outro lado, caso sejam encontrados elementos arquitectónicos que valorizem o edifício, as regras anteriores não se aplicam.

Para além dos edifícios classificados, também são objecto de salvaguarda e valorização as fachadas de valor patrimonial, sendo classificadas de F1 e F2. As fachadas classificadas de F1 deverão ser preservadas e as F2 poderão sofrer alterações controladas, mas não podem perder o traçado anterior ou o seu perfil de conjunto. Quando às fachadas classificadas que estejam em ruína recomenda-se a sua demolição e consequente reconstrução de acordo com as características da fachada, através de um projecto rigoroso do existente e respectiva documentação fotográfica.

Para além do edificado, existem zonas verdes de valor patrimonial que deverão ser preservadas com as características da época ou épocas de construção. Contudo, todo o Centro Histórico deverá ter acompanhamento histórico/arqueológico nas intervenções no subsolo e nas estruturas dos edifícios, pois caso se verifique a descoberta de elementos patrimoniais arquitectónicos ou achados arqueológicos, o Município de Évora poderá suspender as intervenções, para o respectivo estudo, identificação e registo dos elementos encontrados. Só após o estudo, identificação e registo dos elementos poderão prosseguir as intervenções.

Também existem elementos de valor patrimonial com classificação por P que deverão ser conservados e valorizados, tais como, chaminés, platibandas, reixas, grades de ferro decoradas em varandas, açoteias, mirantes e contramirantes.

Resumindo, todas as intervenções no Centro Histórico de Évora seguem um projecto de arquitectura rigorosamente condicionado às questões patrimoniais, segundo a política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial que corresponde à preservação das características morfológicas, ambientais e arquitectónicas dos edifícios.

Neste sentido, a salvaguarda e valorização do Centro Histórico de Évora pretende criar uma “ideia de permanência” como tentativa de superar a acção do tempo, através de uma política de reabilitação (manutenção, da conservação, da restauração, da reabilitação ou das reconstruções) do seu património. Estas acções de intervenção no seu património arquitectónico revestem-se em torno de um “culto patrimonial”, através da preservação do carácter visual dos seus edifícios adaptando-os à vida contemporânea. Por outro lado, está associada a "ideia de continuidade" do património, para evitar rupturas ou perda de valores patrimoniais. Neste sentido, o Plano de Urbanização de Évora apresenta uma classificação de valores patrimoniais segundo várias categorias: edifícios que são monumentos nacionais e edifícios de valor patrimonial (E1, E2, E3), fachadas de valor patrimonial (F1,F2) etc. Associadas a estas ideias de permanência e continuidade, está subjacente a "ideia de conhecimento" como a mensagem histórica "verdadeira" através dos valores patrimoniais, como o ano de construção, o autor, etc. Segundo as ideias de “permanência, continuidade e conhecimento" do culto patrimonial, a preservação da imagem do Centro Histórico de Évora, é como um “espelho no qual nós, os membros das sociedades humanas do século XX, contemplaríamos a nossa imagem” (xviii). À luz destas ideias, vamos apresentar um projecto de reabilitação de um edifício no Centro Histórico de Évora, segundo a sua política de Salvaguarda e Valorização Patrimonial.

Em 2006, o edifício situado na Rua do Cano 75, está em mau estado de conservação e não tem condições de habitabilidade: não tem casa de banho, não tem condições de higiene e salubridade mínimas, sendo necessária uma intervenção profunda.

O edifício está inserido em zona de protecção contígua ao Monumento Nacional "Aqueduto da Água de Prata" e a sua fachada é Classificada de F1, sendo que deverá ser preservada. Apesar de ter 2 pisos, edifício é de influência rural, com 70 m2, ocupando um lote de 3,5 m de largura e 10 m de comprimento. A fachada tem poucas aberturas, apenas a porta de entrada e uma janela no 1º piso, sendo marcante a chaminé alta situada à face da rua, sem elementos decorativos.

O projecto de arquitectura direcciona-se na criação de um saguão para a criação de luz natural e ventilação do edifício, para a construção de uma casa de banho e de uma cozinha, e alterou a escada de acesso ao piso 1. Neste sentido, propõe manter a estrutura do edifício, e propõe adaptar a cobertura de forma a criar o saguão e melhorar as condições de isolamento térmico, conservando o tipo de telha existente e com particular preocupação com a inclusão de rulos e caleiras. Quanto à fachada é mantida na sua essência, mas propõe a construção uma janela no piso 0, idêntica à existente no piso 1.

existente .... proposta




Figura 1 – Plantas com o existente e proposta de reabilitação da Rua do Cano 75, em Évora
Fonte: Arquitecto Pedro Marques, autor do projecto

No interior do edifício mantêm-se os arcos de suporte da estrutura à vista, e as paredes serão revestidas a gesso cartonado com isolamento. A nova escada será em estrutura metálica e forrada a madeira. Os pavimentos serão substituídos por mosaico no piso 0 e no piso 1 será de madeira flutuante. As canalizações serão construídas assim como os esgotos, e a instalação eléctrica será alterada. Com esta intervenção, pretende-se ao nível do piso 0 as áreas comuns, sala e cozinha e arrumo, ao nível do piso 1 a área privativa, o quarto, a casa de banho e um pequeno espaço multifuncional.

Ao longo deste projecto de arquitectura verificamos que se pretende preservar o carácter patrimonial, ao mesmo tempo, que propõe a adaptação deste edifício à vida contemporânea da função habitar. Resumindo, este projecto tem como ponto de partida um espaço “vazio” (figura 1: existente) para projectar uma habitação condicionada pelo carácter visual do património arquitectónico (figura 1: proposto), isto é, “o culto patrimonial”.

A descoberta da dimensão existencial

Este edifício está inserido no Centro Histórico de Évora que é, sem dúvida, um centro urbano único, pela sua beleza, homogeneidade e dimensão, e pelo valor do seu património cultural e arquitectónico, mas entre os 35 imóveis classificados por decreto e 190 elementos de valor patrimonial, nomeadamente na "arquitectura menor, dos sécs. XVI, XVII e XVIII que se exprime globalmente num conjunto de casas térreas, brancas de cal, cobertas de telhas ou terraços, apertadas ao longo de ruas estreitas que seguem a estrutura medieval no núcleo antigo e ilustram o crescimento concêntrico até séc. XVII" (xix) habitam pessoas. Em 2011, a "cidade intramuros" tem 4326 (xx) alojamentos, dos quais 2426 (xxi) são alojamentos de residência habitual, isto é, 56% dos alojamentos são habitados, mas habitar, não é de lógica matemática ou quantitativa de concretizar uma das multifuncionalidades do Centro Histórico de Évora: a habitação.

Habitar implica preencher um espaço pelo sentido humano, e neste sentido, um espaço não é “vazio” mas sim “extensivo” e o seu carácter não é apenas uma imagem, mas sim, um carácter significativo pelos seus habitantes. Assim, este lugar habitado, o Centro Histórico de Évora é fenómeno do dia-a-dia da vida humana, e o seu espaço e o seu carácter não podem ser reduzidos à sua estrutura física, isto é, às suas características morfológicas, ambientais e arquitectónicas, mas como, a sua estrutura física se relaciona com a estrutura psicológica de quem o habita enquanto envolvente significativa. (xxii)

Neste sentido, vamos partir novamente do projecto de reabilitação do edifício situado na Rua do Cano 75, que sumariamente sabemos a sua localização, as condicionantes patrimoniais, o mau estado de conservação e as más condições de habitabilidade. Para além disto, o espaço deste edifício apresenta-se como “vazio”, e a partir deste espaço “vazio” projecta-se um desenho rigoroso condicionado às questões patrimoniais e às condições contemporâneas da função habitar. Mas este espaço apresentado como “vazio” no projecto de arquitectura está cheio de "coisas" como móveis, roupas, utensílios e objectos.


Vídeo 1 – uma casa cheia de “coisas”
http://vimeo.com/68550730
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Nesta casa, em 5 de Junho de 1931 nasceu Henriqueta Vieira Santos. Desde o dia do seu nascimento, Henriqueta vive nesta casa. Em 2007, com 77 anos de idade, ela vai mudar-se pela primeira vez da casa onde nasceu e sempre viveu, porque, como sabemos pelo projecto de arquitectura, a sua casa não tem condições de habitabilidade e vai ter obras de reabilitação profunda, conforme o projecto apresentado.

A sua casa está cheia de “coisas” como móveis, de roupas, de utensílios e de objectos. O espaço desta casa não é “vazio”, mas sim “extensivo”, preenchido pelo sentido humano de Henriqueta. Em cada móvel, Henriqueta recorda pessoas e momentos da sua vida. Abrem-se gavetas e portas e encontramos “coisas” como roupa, utensílios e objectos que são antropomórficos (xxiii). A estrutura deste lugar não é apenas de ordem funcional e quantitativa pelo acumular de “coisas” como móveis, roupas, utensílios e objectos. A estrutura deste lugar é de ordem simbólica e qualitativa que revelam o carácter personalizado de Henriqueta, porque apenas ela se orienta e se identifica neste lugar. (xxiv) Assim, este edifício na Rua do Cano 75 em Évora, que está em mau estado de conservação e não tem condições de habitabilidade, que está inserido na zona de protecção ao Monumento Nacional “Aqueduto da Água de Prata” com fachada classificada F1, que deverá ser preservada, é um edifício habitado, que protegeu e foi protegido por Henriqueta. Ela tem que seleccionar e empacotar as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos, para levar para a habitação temporária. É difícil … através de Henriqueta, as suas “coisas” como os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos, descobrimos a dimensão existencial deste lugar. (xxv)


Vídeo 2 - A descoberta da dimensão existencial
http://vimeo.com/68640949
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Ao seleccionar e empacotar as suas “coisas” como os móveis, utensílios, roupas e objectos a levar para a "habitação" temporária, Henriqueta lembra, refaz, reconstrói e repensa a sua vida. Ela é idosa e não sabe se um dia vai regressar à sua "casa". Apesar do mau estado de conservação e da falta de condições de habitabilidade do edifício na Rua do Cano 75, esta casa foi um lugar estável na vida de Henriqueta desde que nasceu até hoje. Ela recorda os momentos passados na sua casa, através das suas “coisas”, dos seus móveis, das suas roupas, dos seus utensílios e dos seus objectos, que são verdadeiros lugares da sua dimensão existencial (xxvi), sendo a sua casa o equivalente simbólico ao corpo de Henriqueta. (xxvii)

Ela ao recordar a sua vida através das suas “coisas”, dos seus móveis, das suas roupas, dos seus utensílios e dos seus objectos, ela fica triste, ansiosa, melancólica, desorientada… o lugar estável que sempre cuidou, se orientou e identificou vai desaparecer. Este comportamento físico revela sentimentos de perda que são equivalentes ao sentimento de luto. A perda do lugar, onde Henriqueta nasceu e sempre viveu, fragiliza a sua “estabilidade existencial” e com ela a sua “estabilidade emocional”. (xxviii) Neste sentido, ela necessita de apoio psicossocial que é essencial para a sua “estabilidade existencial”. Este apoio é ao nível emocional, que começa pela tentativa de criar uma “estabilidade de lugar” na habitação temporária através da selecção das suas “coisas”, dos seus móveis, das suas roupas, dos seus utensílios e dos seus objectos com os quais Henriqueta tem uma ligação emocional muito forte.


Vídeo 3 – Os primeiros objectos da mudança para a habitação temporária
http://vimeo.com/68554733
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12


Após a mudança para a habitação temporária, a casa fica vazia, isto é, este lugar protegido já não tem as “coisas”, os móveis, as roupas, os utensílios nem os objectos, este lugar apenas existe na memória de Henriqueta. Ela nunca viu nem sentiu a sua casa vazia. Ela sabe que a sua casa vai ser demolida. Ela precisa de se despedir. Ela precisa de tempo e de espaço existencial (xxix), pois não se orienta e não se identifica no espaço, apenas se orienta e se identifica através da memória daquele lugar, agora vazio.


Vídeo 4 – A despedida da casa
http://vimeo.com/68844274
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Enquanto projecto, é necessário transmitir à Henriqueta uma ideia de futuro, quanto à reabilitação da sua casa, para ela começar a ter uma imagem mental do futuro da sua casa, in loco.


Vídeo 5 – A casa no futuro
http://vimeo.com/68556997
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

O realojamento temporário é próximo da sua casa em reabilitação. Para o apoio psicossocial, esta proximidade permite que a moradora mantenha as suas relações de vizinhança, mantendo de certa forma a sua “estabilidade social”, ao mesmo tempo que acompanha o processo de reabilitação da sua casa. Manter esta ligação com a reabilitação da sua casa é essencial, porque reabilitar é sinónimo de habitar (xxx).


Vídeo 6 – Visita à obra
http://vimeo.com/68642524
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Em 2012, Henriqueta regressa e reabita a sua "casa" e trouxe as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos, que a acompanharam durante o processo de reabilitação da sua “casa”.

Henriqueta também comprou “coisas” novas, como móveis, roupas, utensílios e objectos. A sua “casa” ficou com novas funcionalidades como uma cozinha nova com equipamento fixo, uma casa de banho completa, um roupeiro novo e ela comprou “coisas” novas para as novas funções e uso do dia a dia.

Por outro lado, deitaram fora as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos que perderam a sua função e o seu uso, como o lavatório de ferro, o toalheiro improvisado, um armário de apoio à casa de banho improvisada, uma estrutura de pendurar panelas, uma meia porta de entrada, um tapete na parede, etc.

Após 6 meses da mudança definitiva, para a sua Casa na Rua do Cano 75, Henriqueta fala da sua vivência. A idosa está em adaptação às novas funções da sua casa. Ela fala das suas “coisas”, dos seus móveis, dos seus utensílios, das suas roupas e dos seus objectos que não fazem parte da sua “casa” reabilitada. Com 81 anos, Henriqueta todos os dias recorda histórias passadas na sua casa. Ela recorda estas histórias passadas da sua vida porque deixou de ver as suas “coisas”, os seus móveis, as suas roupas, os seus utensílios e os seus objectos que foram deitados fora. Ela sente falta. Por isso, podemos deitar fora as “coisas” como os móveis, as roupas, os utensílios e os objectos que perderam a sua função e o seu uso, mas não perderam a sua função emocional, de recordar, de viver, de sentir a sua dimensão existencial. Assim, o apoio psicossocial através de um processo de reabilitação emocional foi essencial para o acompanhamento do projecto de reabilitação deste edifício, porque permitiu a descoberta da dimensão existencial deste lugar.


Vídeo 7 – Reabitar a casa
http://vimeo.com/68858065
Fonte: Mourão, S., Lucas M. em “Henriqueta, uma cartografia íntima” Prática Documentada, 2007l12

Conclusão

Após a análise, da política de Salvaguarda e Valorização do Centro Histórico de Évora, e a sua implementação através do rigor de um projecto de reabilitação de um edifício, condicionado às questões patrimoniais, podemos afirmar, que esta competência de reabilitação apoia-se num planeamento prospectivo que parte do seu património físico e projecta a preservação da sua imagem para o futuro, e esquece a sua dimensão existencial, isto é, o modo como se vive e como se sente no Centro Histórico de Évora.

Assim, é necessário que esta política de salvaguarda e valorização patrimonial ultrapasse este impasse de “culto patrimonial” que está distante do fenómeno do dia a dia da vida humana: o Centro Histórico de Évora é um lugar habitado.

Enquanto lugar habitado, o Centro Histórico de Évora não é um espaço “vazio” e com um carácter meramente visual, mas sim um espaço preenchido pelo sentido humano e revela um carácter significativo por quem o habita. Para tentar sair deste “culto”, temos que tentar olhar o corpo patrimonial do Centro Histórico de Évora como equivalente simbólico ao corpo humano, e reabilitar este corpo patrimonial é sinónimo de reabilitar o corpo de quem o habita. Assim, a partir desta experiência no Centro Histórico de Évora propõe-se a emergência da dimensão existencial nas cidades, porque “as cidades actuais vivem em função de um passado, presente e futuro através do seu planeamento prospectivo. Este planeamento prospectivo é fruto de uma cultura tecnológica, que valoriza o tempo futuro e operatório das mudanças nas cidades, e esquece o tempo existencial de como as cidades vivem e sentem o seu tempo.” (xxxi)


NOTAS:

(i) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986, para consulta em: www.cmevora.pt/pt/conteudos/areas%20tematicas/centro%20historico/Patrim%c3%b3nio%20da%20Humanidade.htm

(ii) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986

(iii) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986

(iv) “The Basic act of architecture is therefore to understand the “vocation” of the place” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 23

(v) Plano de Urbanização de Évora, artº8, nº1, para consulta em:

http://www.cm-evora.pt/NR/rdonlyres/000111bb/hraqqnkjwlnqivbxvuttbevkqypkpdev/PlanodeUrbanizacao.pdf

(vi) Plano Urbanização de Évora, Capítulo III

(vii) Plano Urbanização de Évora, artº8, nº1

(viii) Plano Urbanização de Évora, artº62

(ix) Plano Urbanização de Évora, artº66, nº1

(x) Plano Urbanização de Évora, artº5, nº1

(xi) Plano Urbanização de Évora, artº7, nº1

(xii) Plano Urbanização de Évora, artº7, nº2, a)

(xiii) Plano Urbanização de Évora, artº7, nº2, b)

(xiv) “Character” is at the same time a more general and a more concrete concept than “space”. On the one hand it denotes a general comprehensive atmosphere, and on the other the concrete form and substance of the space-defining elements…We have pointed out that different actions demand places with a different character. A dwelling has to be “protective”, an office “practical”, a ball-room “festive” and a church “solemn”. When we visit a foreign city, we are usually struck by its particular character, which becomes an important part of the experience…In general we have to emphasize that all places have a character, and that character is the mode in which the world is “given.” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 14

(xv) Plano Urbanização de Évora, artº13

(xvi) Plano Urbanização de Évora, artº14, nº1

(xvii) Plano Urbanização de Évora, artº14, nº2

(xviii) “Por outras palavras, a observação e o tratamento selectivo dos bens patrimoniais não contribuiria para fundar uma identidade cultural dinamicamente assumida. Eles tenderiam a ser substituídos pela autocontemplação passiva e o culto de uma identidade genérica. Ter-se-ía reconhecido aí a marca do narcisismo. O património teria assim perdido a sua função construtiva em benefício de uma função defensiva que asseguraria o recolhimento de uma identidade ameaçada” in, Choay, Frabçoise, A Alegoria do Património, 2000: 212

(xix) Declaração de Valor do Centro Histórico de Évora, UNESCO 1986, para consulta em: www.cmevora.pt/pt/conteudos/areas%20tematicas/centro%20historico/Patrim%c3%b3nio%20da%20Humanidade.htm

(xx) Censos 2011, Instituto Nacional de Estatística

(xxi) Censos 2011, Instituto Nacional de Estatística

(xxii) “Man dwells wen he can orientate himself within and identify himself with an environment, or, in short, when he experiences the environment as meaningful” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 5

(xxiii) “Seres e objectos estão aliás ligados, extraindo os objectos de tal conluio uma densidade, um valor afectivo que se convencionou chamar a sua “presença”. Aquilo que faz a profundidade das casas de infância, sua pregnância na lembrança, é evidentemente esta estrutura complexa de interioridade onde os objectos despenteiam diante de nossos olhos os limites de uma configuração simbólica chamada residência. A cesura entre o interior e o exterior, sua oposição formal sob o signo social da propriedade e sob o signo psicológico da imanência da família faz deste espaço tradicional uma transparência fechada. Antropomórficos, estes deuses domésticos, que são objectos, se fazem, encarnando no espaço os laços afectivos da permanência do grupo, docemente imortais até que uma geração moderna os afaste ou os disperse ou às vezes os reinstaure em uma actualidade nostálgica de velhos objectos”in Baudrillard, Jean “O sistemas dos objectos”, 2002: 22

(xxiv) “When man dwells, he his simultaneously located in space and exposed to a certain environmental character. The Two psychological functions involved, may be called “orientation” and “identification.” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 19

(xxv) “we have used the word “dwelling” to indicate the total man-place relationship. To understand more fully what this word implies, it is useful to return to the distinction between “space” and “character”. When man dwells, he is simultaneously located in space and exposed to certain environmental character. The two psychological functions involved, may be called “orientation” and “identification”. To gain en existential foothold man has to be able to orientate himself; he has to know where he is. But he also has to identify him self with the environment, that is, he has to know how he is a certain place.” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 19

(xxvi) “…the things themselves are the places, and do not only “belong” to a place” in Schulz, Christian Norberg, Genius Loci, Towards a phenomenology of architecture, 1984: 176

(xxvii) “Os objectos têm assim - os móveis especialmente - além de sua função prática, uma função primordial de vaso, que pertence ao imaginário e a que corresponde a sua receptividade psicológica. São portanto o reflexo de toda uma visão do mundo onde cada ser é concebido como um “vaso de interioridade” e as relações como correlações transcendentes das substâncias – sendo a própria casa o equivalente simbólico do corpo humano, cujo poderoso esquema orgânico se generaliza em seguida em um esquema ideal de integração das estruturas sociais.” in Baudrillard, Jean “O sistemas dos objectos”, 2002: 34

(xxviii) Mourão, Susana, Do projecto de reabilitação de edifícios habitacionais ao projecto de reabilitação emocional - REHABITA, in actas do 2º Congresso Internacional da Habitação em Espaço Lusófono, 2013

(xxix) “Contudo, ter substituído a questão do património na perspectiva antropológica que é a sua, não coloca mais isso por à nosso disposição os meios de reapropriação da competência de edificar, que dizer, de empreender a travessia concreta e prática do espelho patrimonial, que resta agora evocar. Esta travessia não pode ser tentada senão através da mediação do nosso corpo. Ela passa, precisamente, por um corpo a corpo, o corpo humano com o corpo patrimonial. Ao primeiro, cabe mobilizar e recolocar em alerta todos os sentidos, restabelecer a autoridade do toque, da cinestesia, da cinética, da audição e do próprio odor e recusar, conjuntamente, a hegemonia do olhar e as seduções da imagem fotográfica ou numérica. Ao segundo, incumbiria um papel propedêutico: fazer aprender ou reaprender as três dimensões do espaço humano, as suas escalas, a sua articulação, a sua contextualização, na duração das travessias, de voltas e percursos comparáveis aos par couer (de cor) da memória orgânica, doravante negligenciados pela instituição escolar e que permitiam aos académicos de outrora que se apropriassem do seu património literário.” in Choay, Françoise, A Alegoria do Património, Edições 70, 2000: 224

(xxx) Segundo Heidegger, “construir é, em seu ser, fazer habitar. Realizar o ser do construir é edificar lugares mediante a agregação de seus espaços. Só quando podemos habitar é que podemos construir”in Choay, Françoise, O Urbanismo, Utopias e realidades, Uma Antologia, 2005: 348

(xxxi) Mourão, Susana e Lucas, Marta in http://www.escritanapaisagem.net/event/27


Notas editoriais:

(i) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.




Editor: António Baptista Coelho abc@lnec.pt
INFOHABITAR Ano IX, nº446
A emergência da dimensão existencial nas cidades - Uma proposta a partir do Centro Histórico de Évora
Edição de José Baptista Coelho
LNEC-Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais (NUT) e

Lisboa, Encarnação - Olivais Norte


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