E ainda o problema da habitação, em Portugal no início do século XXI – parte I, oferta e procura
artigo de António Baptista Coelho
Label: habitação, política habitacional, habitação de interesse social, urbanismo habitacional
Razões para se voltar ao “problema da habitação”
O estímulo para a escrita deste série de artigos sobre o tema do problema da habitação, considerado um problema que persiste, de forma crítica, embora em outros moldes, após 60 anos de este mesmo problema ter sido tema-chave no 1.º Congresso Nacional de Arquitectura (1), é a ideia que o problema se mantém, num sentido amplo, pois considera-se que nem as necessidades quantitativas habitacionais foram devidamente garantidas, em Portugal, e numa perspectiva de garantia expressivamente sustentada, nem se deu ainda, entre nós, um passo firme e claro no caminho urgente de se considerar a qualidade residencial como um aspecto fundamental da qualidade de vida de todos nós; desenvolvendo-se, portanto, uma perspectiva qualitativa que esteja directamente ligada a uma qualidade arquitectónica residencial composta por alguns aspectos mais mensuráveis e por outros mais qualitativos, afectivos e de “desenho”, estando este segundo grupo de aspectos muito ligados a uma aprofundada satisfação habitacional, e a estas matérias voltaremos em seguida.
Um outro estímulo específico à abordagem do “problema da habitação” aqui no Infohabitar, e, naturalmente, no âmbito das acções promovidas pelo Grupo Habitar, é a ideia de que esse problema continua, infelizmente, muito distante das preocupações políticas nacionais, pelo menos no sentido acima sumariado e que em seguida se pretende desenvolver e esclarecer. E este olhar mal ou não olhar o problema da habitação, tanto nas suas críticas consequências negativas como nas suas potencialidades, designadamente, no que se refere à revitalização urbana, é uma situação que não se entende quer pela influência directa que a sua resolução ou tentativa de resolução sempre terá para a melhor vida diária dos cidadãos, quer pela positiva e expressiva influência económica que será sempre induzida por uma política activa de melhoria das condições habitacionais/urbanas dos mesmos cidadãos – e nunca é excessivo relembrar a potência que a promoção habitacional – construção nova e reabilitação – induz, directa e indirectamente, na actividade económica.
E assim iremos, em seguida, falar um pouco sobre a evolução das carências habitacionais quantitativas e qualitativas, seja do lado da oferta seja do da procura.
Depois e de forma mais sintética, pois iremos voltar a estes temas com mais calma, noutros artigos, será apontada a temática da qualidade residencial como aspecto fundamental da qualidade de vida, seguindo-se, numa sequência lógica, uma breve consideração sobre o protagonismo do bom desenho para uma boa habitação.
Finalmente, lança-se a ideia que a oposição entre fazer de novo e reabilitar habitação é uma falsa questão, designadamente, no âmbito da habitação de interesse social, e termina-se o artigo com algumas considerações sintéticas sobre a oportunidade desta aproximação ao “problema da habitação”.
Fig. 01: . Bairro de Alvalade, projecto urbano de Faria da Costa, anos quarenta do século XX, uma pequena cidade feita com grandes “miolos” de habitação de interesse social, provavelmente, o único plano verdadeiramente integrado.
Sobre a evolução das carências habitacionais quantitativas e qualitativas: o lado da oferta
Há ainda, hoje em dia, em Portugal e no “mundo ocidental” menos desenvolvido evidentes carências habitacionais quantitativas, e de total urgência, relativas a pessoas que habitam sem um mínimo de condições de salubridade e saúde física e mental.
Tais carências quantitativas devem ser objecto de uma reformulação em termos de critérios de cálculo e de medidas de enquadramento.
Não é mais aceitável qualquer “cedência” de habitação que não corresponda a um contrato exigente em termos de regras de bom uso e de contribuição para a amortização da habitação por parte dos seus habitantes. Este é um imperativo cívico directamente associado ao “direito a ter habitação” e que ganha expressão ainda mais evidente em tempos de crise económica. Há direitos e há deveres e terá de haver actuações eficazes quando os respectivos contratos não são cumpridos, pois haverá sempre outros cidadãos que precisam de habitação e querem cumprir esses contratos.
Também não é mais aceitável, ainda do lado da oferta de habitação de interesse social que existam habitações “sociais” devolutas ou manifestamente subaproveitadas ou ainda mal aproveitadas porque servindo pessoas que manifestamente delas não precisam, e o que parece é que as há, e em número significativo, sendo, portanto, urgente desenvolver medidas que façam voltar esse parque público, sem uso ou deficientemente usado, a uma ocupação eficaz e socialmente justa.
Ainda do lado da oferta, e naturalmente numa perspectiva “gémea” das que acabaram de ser apontadas, há que garantir um serviço habitacional eficaz, através de uma gestão de proximidade funcionalmente adequada e socialmente sensível, uma ideia que quer associar critérios correntes de gestão urbana e habitacional a uma perspectiva de apoio social e habitacional que esteja positivamente “em cima do acontecimento” de forma a ser útil a quem habita, por exemplo acorrendo rapidamente a problemas sociais críticos, e a assegurar a melhor manutenção do parque de habitação de interesse social público, garantindo assim a sua melhor capacidade de “volante” na prestação do serviço habitacional, tal como foi atrás referido.
Um prolongamento deste tipo de cuidados tem a ver com o acabamento e equipamento dos espaços públicos exteriores quando estes se encontrem abandonados ou deficientemente mantidos, mas sempre uma perspectiva de gestão que assegure o mais possível condições de continuidade de manutenção, pois não é possível nem socialmente aceitável continuar-se a financiar ciclicamente intervenções que são, depois, ciclicamente deterioradas.
A esta matéria se voltará em outros artigos desta série, referindo-se, desde já, que certos conjuntos habitacionais preexistentes e, designadamente, certos edifícios e conjuntos de “habitação social”, podem ser considerados como inviáveis nesse caminho de vivência sustentada de edifícios e espaço público e, portanto, terão de ser significativa ou totalmente reconvertidos, havendo, aqui, naturalmente, lugar à ponderação da opção pela demolição total ou parcial de um dado edifício ou conjunto urbano; mas sublinha-se que esta “última” opção tem de ser um caminho entre vários caminhos, que será escolhido apenas quando as outras opções se revelem inviáveis em termos da intervenção inicial e da respectiva manutenção, e quando haja lugar a riscos evidentes de retorno à situação inicial de degradação social e física.
Novamente do lado da oferta há que ter o maior rigor, seja no apertar da malha de análise sobre as necessidades habitacionais detectadas, reduzindo-se, ao máximo, as situações de abuso no acesso a habitação de interesse social e actuando-se eficazmente na reposição da legalidade sempre que se detecte uma situação desse tipo. Neste perfil de actuação parece ser também de favorecer as medidas existentes associadas à perda de direito a habitação quando se detectem actuações ilegais por parte de quem teve direito a habitação de interesse social; e será de ter em conta as formas de actuação aplicadas noutros países europeus no sentido de um crescendo de rigor no enquadramento habitacional e de disponibilização de realojamentos específicos em situações de manifesta criação de instabilidade e violência nos conjuntos de realojamento por parte de grupos e pessoas que sejam identificados – afinal, como se sabe, uma única família pode arriscar a paz social de um grande conjunto habitacional, uma situação que parece não dever ser tolerável.
E, finalmente, e ainda do lado da oferta de habitação de interesse social considera-se que não mais se deve disponibilizar uma solução física com qualidade eventualmente duvidosa, mas sim um verdadeiro serviço habitacional e urbano, associado a um excelente desenho arquitectónico, pois só assim se disponibiliza habitação e habitar numa perspectiva expressivamente sustentada, tendo em conta quem habita e aí encontra uma solução o mais possível “à medida”, ou pelo menos não formatada para o inexistente “cidadão médio”, e tendo em conta a urgente (re)vitalização das nossas cidades, com mais habitantes, com mais pequenas e diferentes intervenções “mistas” de habitações tipologicamente variadas e equipamentos de proximidade, com habitantes mais diversificados, com mais vida “na rua” e com mais serviços urbanos. Chega de bairros sociais segregados, de periferias mortas e de centros urbanos vazios.
Sobre a evolução das carências habitacionais quantitativas e qualitativas: o lado da procura
Sobre a procura de habitação, com especial enfoque numa procura justificada por significativas carências socioeconómicas e culturais há que ter em conta, em primeiro lugar, a existência de um grande número de pessoas e famílias mal alojadas, ainda que não habitando nas tradicionais barracas, que, em Portugal, foram há poucos anos objecto de um plano específico de erradicação.
São pessoas que vivem em casas sem quaisquer condições, em casas abarracadas, e em péssimas condições de sobreocupação e/ou de falta de privacidade e de condições mínimas de funcionalidade e de expressão da sua identidade em pequenos quartos e em partes de casa.
Esta é a parte mais quantitativa das carências habitacionais ainda existentes em Portugal, que se refere a uma problemática muito difícil de “levantar”, mas muito crítica. E, de qualquer modo, importa ter em conta que as barracas continuam a surgir, em quantidades significativas e nos sítios mais inesperados – é por exemplo evidente o que tem vindo a acontecer em zonas periféricas ruralizadas onde tantas vezes por trás de sebes e junto a propriedades abandonadas se começam a acumular tendas e barracas num iniciar de um processo bem conhecido e que rapidamente ganha dimensões de actuação muito complicadas, e aqui haverá também um esforço fundamental a pedir à gestão municipal com apoio directo das forças de segurança, caso contrário qualquer dia teremos de ter um novo plano de erradicação de barracas.
Mas a procura de habitação por quem não pode aceder ao mercado habitacional está também, hoje em dia, a sofrer uma alteração e uma diversificação de características em termos de tipo geral de habitação que é pretendido. São os casais jovens e os jovens e adultos que vivem sós, são os numerosos idosos que pretendem viver em variadas condições de autonomia e comunidade, é o amplo leque de problemas de saúde que exigem internamento em residências assistidas e com cuidados específicos e por vezes muito exigentes, e é o muito amplo leque de tipos habitacionais que é desejado, associado a modos de vida específicos, mais rurais ou mais urbanos, mais “portugueses” ou culturalmente diversificados.
Atenção que não se tem em mente fazer habitação e especificamente habitação de interesse social praticamente à medida de cada pessoa e família, mas tem-se em mente a ideia firme de que não é possível continuar a aplicar soluções iguais e frequentemente mal concebidas para resolver os distintos problemas habitacionais atrás sintetizados – ainda há pouco tempo observei uma solução de habitação de interesse social em estudo para um país africano de língua oficial portuguesa em que nos pequenos “prédios” as cozinhas estavam ligadas às salas e estavam longe das janelas, podendo imaginar-se o que será cozinhar com processos tradicionais numa tal situação, e imaginar que tipo de ambiente seria produzido na respectiva sala-comum (este é apenas um exemplo entre muitos possíveis).
E não tenhamos qualquer dúvida que toda essa enorme e rica variedade de leques de exigências e desejos habitacionais e urbanos se reflecte num expressivo acréscimo dos “tradicionais” cálculos de carências de habitação de interesse social – pois quantas serão as pessoas hoje mal alojadas ou inadequadamente alojadas?
E atenção que faz todo o sentido que o acesso à habitação apoiado pelo Estado seja gradual e claramente “democratizado” e diversificado pois há muita gente que, de facto, deve ter direito a ser apoiada com uma habitação mais adequada e económica, pois esta faceta do apoio social pode ser determinante no alavancar de uma sua vida melhor, por estar verdadeiramente mais satisfeito com o seu habitar – da casa à vizinhança. E este é um tema fundamental neste retomar da discussão sobre “o problema da habitação”.
Ainda do lado da procura importa referir que, por um lado, só o Estado parece poder garantir essa melhor qualidade vivencial a quem não pode pagar a habitação de luxo ou a periferia tantas vezes “manhosa”, que, por outro lado, este papel estatal pode e deve ser desmultiplicado, e com muitas vantagens, através da actuação de cooperativas habitacionais e empresas – há excelentes exemplos desta prática –, e que, por outro lado, o apoio do Estado ao referido leque, muito amplo, de um habitar razoavelmente “à medida” pode e deve ser formatado e doseado de formas muito diversificadas de modo a que se apoiem melhor mais pessoas e mais famílias, e por acréscimo ganha-se a fundamental diversidade e mistura social, aquela que faz verdadeiras partes de cidade.
E não seria adequado rematar, para já, esta temática do que é hoje em dia a procura de habitação de interesse social sem referir que o espaço habitacional interior e exterior sofreu significativas mudanças nas últimas dezenas de anos, considerando-se que o principal valor de uma habitação, hoje em dia, se liga à sua capacidade de adaptação a diversos modos de vida e formas de ocupação, sendo de evitar todas as soluções excessivamente hierarquizadas e funcionalmente determinadas, e, naturalmente, esse valor habitativo tem também tudo a ver com a relação com a cidade viva e estimulante, pois tem de estar “morta e enterrada” qualquer ideia de fazer habitação apenas da porta de entrada para dentro.
Fig. 02: Faro, Alto de Santo António, uma pormenor do exemplar quarteirão da Cooperativa. Coobital, Arq.º José Lopes da Costa e Arq.º pais. José Brito; em finais do século XX e a ideia é que se aprendeu a fazer habitação de interesse social que realmente satisfaça quem a habita e integre o habitante na cidade.
Só que não há regra sem excepção e há, infelizmente, ainda muitas excepções desenvolvidas noutros locais por outros promotores, caracterizadas seja pelo mau desenho, ou pelo número excessivo de habitações, ou pela ausência de uma gestão adequada, ou pela inadequação das soluções aos habitantes, ou pela segregação relativamente à cidade.
Para além da oferta e da procura há outros aspectos determinantes para a resolução do “problema da habitação”.
Em seguida apontam-se, muito sumariamente, alguns aspectos considerados igualmente determinantes nos caminhos da resolução do “problema da habitação”. Estes aspectos são aqui, desde já, apenas brevemente registados, e serão objecto de desenvolvimento em futuros artigos desta série.
A qualidade residencial é um aspecto fundamental da qualidade de vida, mas não se deu ainda, entre nós, um passo firme e claro no caminho urgente de se considerar a qualidade residencial como um aspecto fundamental da qualidade de vida de todos nós, portanto, numa perspectiva qualitativa que está directamente ligada a uma qualidade arquitectónica residencial composta por aspectos mais e menos mensuráveis; e isto é considerando-se uma perspectiva racionalista desta quantificação, perspectiva esta que parece estar já em rápida e radical alteração.
O protagonismo do bom desenho para uma boa habitação é um dado que deveria estar já bem adquirido, mas, infelizmente, tal não acontece e, portanto, estamos ainda longe de poder viver uma cidade mais amigável, humanizada e eficaz, servida e produzida por condições afectivas e de “desenho”directamente associadas a uma aprofundada satisfação habitacional e aliadas à tão urgente e fundamental revalorização da imagem urbana.
A eventual oposição entre fazer de novo e reabilitar no âmbito da habitação de interesse social é uma falsa questão pois afinal o que conta é a intervenção “certa” no sítio “certo”, produzindo os melhores efeitos para os seus moradores e para a respectiva cidade. Neste sentido as acções de preenchimento, requalificação, regeneração, e inclusão de “pequenas” adendas ao tecido urbano parecem ser, hoje em dia, as mais adequadas e urgentes, mas não se deve fazer passar esta ideia através de uma deliberada redução da importância da construção nova e do esquecimento das necessárias acções de substituição radical de construções deterioradas e sem valor arquitectónico.
Há que ser coerente e diversificado no apoio a todo o leque de medidas necessárias para uma cidade melhor e mais viva e aqui tem de haver todo o lugar para o novo e para a reabilitação e, frequentemente, para a respectiva e mútua conjugação; mas cuidado que o novo em zonas centrais urbanas e a reabilitação não podem estar obrigados aos mesmos quadros reguladores exigidos ao novo em zona desafogada, pois os condicionamentos são extremamente diferentes.
Breves considerações complementares, sempre parcelares, sobre esta aproximação ao “problema da habitação”
Uma das ideias fundamentais nesta série de artigos estava já consubstanciada na dupla temática que foi abordada em 1948, no 1.º Congresso Nacional de Arquitectura, e refere-se a uma forte e íntima aliança entre a importância da Arquitectura no Plano Nacional e o Problema Português da Habitação, que constituíram, respectivamente, os dois únicos temas do referido congresso. Avançamos, assim, para a reafirmação da importância da Arquitectura habitacional, seja como desígnio arquitectónico, seja como objectivo cívico, numa perspectiva que recoloca ou reafirma a Arquitectura ao serviço da sociedade.
Outra das ideias a desenvolver nesta série de artigos refere-se ao sublinhar da importância da Arquitectura e da sua qualidade ao serviço de quem habita e da sua satisfação, como verdadeira ferramenta para uma vida melhor tanto no plano individual, como no nível familiar, vicinal e urbano. Uma arquitectura habitacional e, naturalmente, urbana, com verdadeiro interesse social, porque ao serviço de cada habitante, apoiando-o económica e eficazmente, satisfazendo os seus desejos habitacionais, mas também ao serviço da cidade que é de todos, numa opção por introduções de habitação duplamente úteis para quem as habita e para a cidade que por elas deverá ser melhor vitalizada e que com elas deverá ser mais agradável e atraente.
Notas:
(1) Em 1948, o 1.º Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, tratou, essencialmente dois temas: o “Tema I – A Arquitectura no Plano Nacional”; e o “Tema II – O Problema Português da Habitação”.
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 31 de Agosto de 2009
Edição de José Baptista Coelho
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