sexta-feira, agosto 14, 2009

259 - Cidade melhor: o peão – parte I - Infohabitar 259

Infohabitar, Ano V, n.º 259



Cidade melhor, desígnios fundamentais numa cidade positivamente renovada: o habitante peão – parte I

artigo de António Baptista Coelho

Label: Urbanismo de pormenor, cidade, peões


Espaços, cenários e ambientes citadinos adequados e motivadores para o peão
A cidade habitada, das vizinhanças e dos bairros, a cidade viva das pracetas e das avenidas e a cidade atraente, seja pelas mais diversas actividades económicas e culturais, seja pelas suas paisagens urbanas estimulantes e caracterizadas, constituem, na prática, como é evidente, uma única realidade física e ambiental.

Uma tal realidade tem como base essencial o serviço funcional e a qualificação do dia-a-dia dos habitantes da cidade, e, portanto, tudo o que se faça ou que se privilegie deve confluir nesse sentido: tornar a vida na cidade mais funcional, mais agradável, mais positivamente caracterizada e mais enriquecedora, em termos das mais diversas experiências e com natural destaque para as socioculturais.

Neste sentido a cidade, os seus bairros e as suas vizinhanças devem ser (re)concebidas visando-se uma “cidade melhor” para os seus habitantes – “próprios e visitantes –, e neste objectivo é possível identificar um desígnio essencial que é facultar espaços, cenários e condições citadinas que sejam realmente adequados e motivadores para a pessoa e designadamente para a pessoa independentemente do seu “invólucro” ou meio mecânico de deslocação.

Este desígnio favorecedor da pessoa a pé tem várias justificações, destacando-se a razão básica de sermos peões, naturalmente, e não haver qualquer obrigatoriedade de uso dos veículos privados, mas também a razão fundamental de uma boa parte da população, os mais novos e os mais idosos, não ser tendencialmente uma população “automobilizada” e precisar, mesmo, de condições claramente positivas para uso pedonal da cidade, para poder ter um adequado desenvolvimento pessoal – no caso dos mais jovens – e adequadas condições de conforto, de animação urbana e de saúde – no caso dos mais idosos.



Fig. 01: um pormenor da cidade oferecida aos habitantes peões em Hamburgo.


Ainda uma outra razão para uma cidade que privilegie o peão é que a cidade feita para o automóvel é um cenário sem escala, sem humanização e sem capacidade de estímulo para a interacção social, havendo que se escolher entre funcionalidade veicular e agradabilidade e coesão humana, e a esta reflexão é fundamental juntar a ideia da cidade vivida a 50 km/h – ou mesmo a mais –, que nunca poderá ser uma cidade do convívio e do estar nos seus espaços públicos, uma cidade que, mais do que vivida é um sítio onde sobrevivemos refugiados nas células domésticas e com “breves” incursões aos centros comerciais, onde cada vez mais tudo se passa num “regime” de grande autonomização, isolamento e padronização de acções.

E a esta questão da velocidade e do isolamento no interior dos veículos privados, num prolongamento do referido isolamento doméstico, está ligada a perspectiva de uma cidade vivida ou consumida com pressa, onde parte do tempo se some nas deslocações, onde em casa a televisão bombardeia com uma programação sem-sentido e que faz dormir, e onde acaba, sempre, por não haver, realmente, tempo para se poder percorrer e, verdadeiramente, viver as vizinhanças e os espaços urbanos.

Mas a cidade pode e deve ser feita de espaços urbanos estrategicamente animados, que suportem uma cidade do vagar, que possa trazer o habitar, verdadeiramente, para o espaço exterior comum e público, transvasando, agradável e complementarmente das células privadas, estimulando, naturalmente, a observação, o passear, o lazer urbano “sem destino”, e, naturalmente, o convívio, numa outra fundamental dimensão do habitar com inúmeras e estimulantes nuances, que vão marcando as essenciais e dinâmicas sequências desde as vizinhanças aos centros urbanos.

Um pequeno ponto de situação: a convivência entre peão e automóvel
Neste momento em Portugal temos já algumas das nossas zonas predominantemente pedonais a serem utilizadas em continuidade há algumas décadas e seria a altura de se fazer um estudo técnico aprofundado sobre os aspectos identificados como mais negativos e mais positivos nessas intervenções, considerando-se a eventual desvitalização do tecido urbano próprio e envolvente, ou, pelo contrário, a sua dinamização e a melhoria da qualidade vivencial própria e indirecta induzida nas respectivas cidades e partes de cidades.

Um tal estudo seria estratégico para a eventual replicação de tais experiências de uma forma mais afinada e eficaz, seja em aspectos funcionais seja na criação de verdadeiras ambiências de vivência da rua com intensidade e continuidade. E um tal estudo ganha, hoje em dia, uma importância acrescida com a actualidade da implementação de meios de acessibilidade mais amigos do ambiente e mais compatíveis com a fruição do espaço urbano pelo habitante a pé e com vagar.

Finalmente, a oportunidade de um tal estudo também decorre de se estarem, provavelmente, a desenvolver operações de pedonalização e de introdução de novos meios de deslocação potencialmente mais amigáveis, mas com problemas de concepção por vezes críticos e que acabam por poder colocar em risco, a prazo (até por vezes curto), a opção pela predominância pedonal; um risco que é sem dúvida extremamente crítico, pois há, naturalmente, muito a ganhar em termos de uma cidade mais agradável, humanizada e viva com aquelas intenções de pedonalização.

Nesta perspectiva de ponto de situação cabe fazer, aqui, uma brevíssima referência à história das zonas pedonais no mundo, e nesta linha de actuação técnico-política, tal como refere Spiro Kostof, em “The City Assembled” (1), em cerca de dez anos, na Alemanha, entre 1966 e 1977, passou-se de cerca de 60 áreas centrais urbanas pedonais para 370, e a grande rua Sröget em Copenhaga, que se desenvolve entre a Câmara Municipal e a principal praça da cidade, foi um grande êxito, tendo sido gradual e continuamente acrescentada no apoio a um uso que ele próprio foi também mudando, desde um início mais “circulatório”, até um presente claramente de efectivo estar no exterior público – e estas são informações retiradas de vários recentes artigos do urbanista Jan Gehl sobre o assunto.

E lembremos, por exemplo, o que parecem ter sido as boas experiências de muitas ruas centrais de cidades portuguesas, assim como o extraordinário uso que têm os espaços pedonais dos “calçadões” de cidades brasileiras.



Fig. 02: uma imagem do “calçadão” de Fortaleza

Mas também não podemos esquecer que a pedonalização teve grandes fracassos em todo o mundo: na parte referida da obra de Kostof este autor refere que nos USA o Mall pedonal suburbano foi um semi-fracasso, mas muitos de nós já tiveram a oportunidade de viver o problema existente, por exemplo, nos espaços pedonais do centro de São Paulo; eu diria, os problemas, ou pelo menos a ausência de qualidade de uso pedonal, e mesmo em Portugal há intervenções pedonais que não resultaram ou resultaram apenas de forma muito deficiente. E, portanto é necessário aprender com todas estas experiências, tendo todo o cuidado na sua apreciação, designadamente, quando se trata de escalas e envolvências urbanas e sociais extremamente distintas.

Kostof, no referido estudo, oferece-nos uma excelente síntese, com sentido positivo/construtivo, da evolução das zonas mistas de peões e veículos que servem conjuntos residenciais, e aqui se localizará provavelmente outra linha de estudo com grande oportunidade, em termos da desejada aliança entre humanização do tráfego e humanização do habitar (2).
De certa forma podemos considerar que a pedonalização deve poder ter fortes raízes numa vivência próxima entre “casa” e espaço público amigável para o peão, numa condição que não nega, nem pode negar, a sua aplicação em espaços urbanos mais comerciais e animados, mas que exigirá, provavelmente, que nesses espaços haja influência directa de alguma habitação, que tenderá, sempre, a apropriar-se com intensidade e afectividade dos “seus” exteriores contíguos. E, complementarmente, talvez que o bom hábito da predominância pedonal ao “começar” na proximidade de grande número de espaços de residência possa predispor o habitante para encarar de forma mais natural e positiva o prolongar dessa predominância nas zonas centrais urbanas.

O grave erro de considerar o automóvel como "inimigo público"
Já há bastantes anos numa interessante acção técnica de discussão destas questões e depois de um responsável político ter aberto os trabalhos referindo qualquer coisa como “o automóvel é um inimigo público”, saindo, depois, como é habitual, por ter outro compromisso, um técnico estrangeiro, começou por comentar que tinha pena de não poder referir, directamente, àquela individualidade que ela estava errada, porque não faz qualquer sentido atribuir as culpas dos múltiplos problemas de congestionamento e deficiente qualidade ambiental aos veículos privados, actuando numa perspectiva “repressiva” sobre o mesmo, sem, antes e concertadamente se desenvolverem condições melhoradas e mesmo estimulantes de uso da cidade em bons transportes públicos e a pé, visando-se soluções coerentes e articuladas desde a escala “micro” das vizinhanças à macro das regiões.

A primeira acção a desenvolver é cativar o habitante para usar a sua vizinhança, o seu bairro, a sua cidade e mesmo a sua região, preferencialmente, a pé e em transportes públicos ou colectivos e só depois, então, actuar do lado das sanções e estimular, por diversas formas, a redução do uso dos veículos privados e designadamente dos automóveis e mesmo, quem sabe de determinados tipos de tráfego automóvel (exemplo, mais poluidor, menos útil, de atravessamento, etc.).

Naturalmente que esta sequência “de antes e depois” será sempre um pouco relativa e tem mais a ver com uma coordenação de acções do que com um ordem específica, mas lembro que o referido técnico sublinhava mesmo ser necessário cativar o habitante para usar a cidade em transporte público através de um serviço de elevada qualidade, designadamente, em termos de conforto e de segurança e só então, posteriormente e tendo-se ganho novos hábitos, então passar para acções específicas de redução do tráfegos de automóveis privados.

E pode-se juntar a esta matéria a ideia que será também só depois de se tornarem várias partes da cidade mais humanizadas, mais agradáveis para se circular a pé e se estar, mais “verdes”, mais mutuamente conjugadas, mais sossegadas e estrategicamente mais animadas e úteis, que se deverá passar para a referida fase da acção directa sobre a redução da circulação dos automóveis privados; e atenção que essa fase de “pedonalização preparatória” nunca poderá ser nem fundamentalista nem “cega”, por exemplo, às fundamentais funcionalidades de quem ainda habita a cidade mais central.



Fig. 03: numa vizinhança em Lubeck, mesmo um clima relativamente agreste não reduz a importância do desenvolvimento de uma afirmada vizinhança pedonal.

Sublinha-se, finalmente, que tudo isto só poderá ser viável numa perspectiva de cuidadoso faseamento e encadeamento das intervenções, numa retroacção de acções e avaliações e numa estratégia activa de constante desenvolvimento do espaço assim intervencionado, sem estagnações desmotivadoras; só assim os habitantes poderão ter a necessária paciência para esperar “pela sua vez”, vendo que o processo está realmente em curso.

Problemas de uma cidade automobilizada e virtualidades de uma cidade mais amiga do peão
Lançou-se já o que se julga ser um conjunto razoável de reflexões para este primeiro artigo, no Infohabitar, sobre o que tem de ser, urgentemente, uma cidade melhorada com base num conjunto de desígnios marcados pela ideia da predominância do “habitante peão” e conclui-se esta reflexão com uma citação do referido estudo de Spiro Kostof, na qual este autor cita alguns dos mentores do “novo urbanismo” sobre esta temática.

“O tráfego automóvel tornou-se a experiência central e incontornável do reino do espaço público ... e a regulamentação ao enfatizar o tráfego rápido e a abundância de zonas de estacionamento ... nas palavras de Duany e Plater-Zyberk «cria receitas virtuais de desintegração urbana». ... Duany e Plater-Zyberk propõem uma arma contra mais avanços do automóvel em território do peão: a TND a Traditional Neighborhood Development ordinance (código de Desenvolvimento Tradicional das Vizinhanças, DTV), um código genérico de urbanidade, consolidador da sabedoria vernacular de determinadas zonas urbanas preexistentes, desenvolvendo novos standards e dimensões para ruas. A habitação animadora da rua é reinventada no DTV como tipologia habitacional standard, o andar a pé é encorajado pela localização de lojas a distância flanante de casa, os passeios têm um mínimo de 3,7m quando há lojas e as árvores de arruamento são obrigatórias”. (3)

Afinal, como se entende, até parece que muito de tudo isto terá a ver com o aprofundar de um habitar mais adequado, cuidado e agradável, um aprofundar onde há aspectos dimensionais e outros, sendo que os dimensionais estão directamente ao serviço dos desígnios da conformação de uma cidade do habitar e do vagar.

Notas:([1]) Spiro Kostof, “The City Assembled – The elements of urban form through history”, Londres, Thames & Hudson, 2004 (1992), p. 240-242.
(2) Idem. Ibid.
(3) Idem. Ibid.

Label: Urbanismo de pormenor, cidade, peões
Infohabitar, Ano V, n.º 259
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 14 de Agosto de 2009
Edição de José Baptista Coelho

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