Qualidade Arquitectónica e Satisfação Residencial - Parte I
António Baptista Coelho
Índice:
Parte I
. Entre qualidade arquitectónica e satisfação
. Rumos de estudo da qualidade arquitectónica residencial
. As avaliações pós-ocupação habitacionais
Parte II
. O objectivo é a vida e o sítio estratégico é a cidade
. Um espaço urbano e habitacional convidativo
. Notas finais
. Notas bibliográficas
Entre qualidade arquitectónica e satisfação
Considerando que importa defender e revalorizar, urgentemente, o nosso património urbano e habitacional e que é fundamental aproximarmo-nos, cada vez mais, de uma clara satisfação para com a habitação e a cidade que cada vez mais habitamos em maior número e com mais intensidade, tem oportunidade estratégica o aprofundamento das ligações entre o fazer de uma habitação urbana convidativa e com valor cultural, numa conciliação de objectivos que, frequentemente, estiveram ausentes e, ainda mais frequentemente, estiveram e estão ainda isolados uns dos outros.
Afinal, com alguma frequência, acontece que aquilo de que os arquitectos gostam é rejeitado, mais ou menos intensamente, pelos habitantes, que não as entendem e têm dificuldade na sua apropriação, enquanto a perspectiva oposta, de satisfação directa dos gostos e desejos de quem habita, está habitualmente associada a intervenções sem interesse e sem valor acrescentado para a cidade – as tais soluções bastardas, que são aqueles de que ninguém assume a sua paternidade, tal como defende o Arq.º José Luís Azkárate.
Fig. 01
Estas reflexões indicam a oportunidade de se poderem seguir opções intermediárias em termos do desenho e da designável “satisfação bruta”, e atentas às boas práticas.
Tais opções implicam alianças estratégicas entre:
- Um desenho que seja arquitectonicamente bem qualificado, e que integre elementos dinamizadores da adesão formal dos habitantes.
- E uma satisfação “bruta” estruturada por aspectos objectivos ligados ao agrado no decurso da ocupação, tais como boas condições de segurança, luz natural, privacidade e funcionalidade.
E eventualmente a aposta num conjunto de alianças de imagem e de conteúdo:
. Que não são exclusivas de determinados desenhos.
. Que não são exclusivas de determinados grupos socioculturais, constituindo valiosas ferramentas de integração cívica.
. E que dependem, frequentemente, de um exterior público com conteúdo e imagem urbanas que possam ser verdadeiramente estimados.
É, assim, necessário um aprofundamento duplo e articulado, da matéria disciplinar da qualidade arquitectónica residencial e dos processos ligados à satisfação do habitante.
E há que fazê-lo tendo presente não haver, na qualidade arquitectónica residencial, uma barreira real entre o mais qualificável e o mais quantificável, mas, essencialmente, como refere o Prof. Klas Tham - coordenador do projecto de uma ainda recente cidade do futuro, a Bo01 em Malmö - , haverá, sim, aspectos de qualidade que são mais dificilmente avaliáveis e, consequentemente, são menos conhecidos e caracterizados.
E talvez que seja possível avançar num aprofundamento da qualidade arquitectónica residencial em perspectivas que tenham forte eco na globalidade dos habitantes, através de uma continuada divulgação de casos de referência, da sua discussão aberta, e de um esforço real para a sua clara interpretação.
Numa continuada sequência de acções verdadeiramente direccionadas para a comunidade e onde se vise, directamente, fazer passar a ideia da urgência do respeito pelos aspectos qualitativos no fazer e no refazer de uma habitação profundamente mais satisfatória e de uma cidade mais humana e mais enriquecedora do nosso património cultural, um património que, afinal, hoje em dia começa a ter uma enorme valia económica.
É assim urgente sensibilizar habitantes e cidadãos para uma qualidade residencial e urbana que não resulta apenas de números ou de receitas quantitativas a repetir e associadas a uma qualquer satisfação garantida, pois o fazer da cidade e da casa do Homem liga-se, essencialmente, a aspectos qualitativos; e tal como escreveram, há pouco tempo, Leonardo Benevolo e Benno Albretch, “os desafios a enfrentar no mundo de hoje não dizem apenas respeito às quantidades e aos números, mas também, – e sobretudo – à complexidade e à subtileza” (1).
Mas os arquitectos podem e devem facilitar a percepção pública da complexidade e da subtileza que caracteriza o núcleo fundamental da qualidade residencial e urbana, designadamente, através de algumas formas de actuação entre as quais se sublinha:
Uma linha de aprofundamento disciplinar da qualidade arquitectónica residencial, através da investigação dos respectivos rumos qualitativos; e do desenvolvimento de Programas de Qualidade pormenorizados. Salienta-se, por exemplo, que o Programa de Qualidade do novo grande bairro de Malmö vai até ao diâmetro das árvores.
E uma outra linha de aprofundamento da satisfação habitacional, ligada à consolidação dos processos de Análise e Avaliação retrospectiva ou de Pós-Ocupação.
E uma linha de pesquisa e análise do que foi feito de melhor e de pior, linha esta que deve associar, sempre que possível a audição dos autores de casos habitacionais e urbanos de referência e que depende de uma continuada e clara divulgação de tais casos.
Rumos de estudo da qualidade arquitectónica residencial
Naturalmente que o Núcleo de Arquitectura e Urbanismo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil tem avançado no referido aprofundamento da qualidade arquitectónica residencial, desde o avanço de Nuno Portas, cerca de 1969, com o estudo das funções e exigências dos espaços habitacionais e os primeiros trabalhos multidisciplinares associados ao conhecimento da satisfação dos habitantes, e depois de Reis Cabrita, em 1987, ter esquematizado a área da qualidade arquitectónica residencial no seu estudo “O Homem e a Casa”, desenvolvi alguns dos grandes rumos de análise e aprofundamento da qualidade arquitectónica residencial – entre os quais e apenas a título de exemplo (2) refiro aqui a acessibilidade, a funcionalidade, a apropriação, a adaptabilidade e a integração.
Este trabalho – “Qualidade arquitectónica residencial” (2) – foi discutido no âmbito da primeira prova de doutoramento em Arquitectura realizada na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, em 1995, foi editado no LNEC em 2000, e teve, há cerca de dois anos, continuidade com o estudo das principiais linhas de humanização do habitar e da cidade, estudo desenvolvido também no âmbito de nova prova pública, desta feita no LNEC, e que se encontra também editado numa versão ampla e numa outra resumida e de apresentação do tema (3).
E juntam-se, em seguida, algumas imagens ilustrativas daqueles rumos de qualidade arquitectónica residencial, acompanhadas por breves comentários.
A boa acessibilidade é um aspecto que percorre os diversos níveis físicos, criando motivadores encadeamentos, mais urbanos ou mais naturais, que servem as estratégias de ligações urbanas. A acessibilidade é uma qualidade com grande continuidade entre exterior e interior, mudam apenas as escalas e a pormenorização.
A comunicabilidade é matéria extremamente arquitectónica, responsável pela transmissão de conteúdos funcionais e ambientais e, em parte, pela relação entre espaços, conjugando-se com a acessibilidade, a defesa da privacidade e a promoção do convívio, através do desenvolvimento de limiares e transições.
A espaciosidade é um aspecto em parte objectivo, ligado a matérias objectivas como a acessiblidade, mas também a assuntos menos aprofundados, como o convívio. Uma espaciosidade equilibrada, exterior e interior, é muito daquilo que caracteriza uma adequada concepção arquitectónica, salientando-se que espaço a mais não é obrigatoriamente melhor espaço e que espaço e pormenorização são faces da mesma moeda.
A capacidade caracteriza soluções adequadas a certos usos e ocupações. A capacidade de arrumação estrutura os espaços domésticos. A capacidade apoia directamente outras qualidades proporcionando uma reserva funcional de apoio directo, assim como uma reserva para usos futuros.
A “velha” funcionalidade cruza espaço urbano, vizinhança, edifício e espaço doméstico. Mas há que considerar quais são as exigências funcionais hoje em dia e localmente determinantes de uma melhor qualidade residencial e vivencial. Boas condições funcionais devem articular múltiplas actividades, mas não podem ser espartilhos associados a previsões monofuncionais em espaços por vezes abaixo de mínimos.
A agradabilidade quer fazer as pontes de ligação com a arquitectura a partir das várias áreas do conforto ambiental. Fazer uma arquitectura residencial sensível ao conforto deveria ser condição obrigatória, mas há ainda que trabalhar e clarificar essas pontes. Hoje em dia domina-se bem o conforto no interior do edificado, mas, como se referiu, tal conhecimento é ainda pouco aplicado, e começamos a aprofundar o conforto no exterior público. E em tudo importa atender à importância da presença do verde urbano nas suas diversas formas.
A durabilidade deve servir com fidelidade e ampla margem de segurança as condições ambientais mais rigorosas e os usos críticos esperados, depende de uma adequada programação dos processos de manutenção periódicos e especiais, e de eficazes e participados processos de gestão.
A segurança é, em grande parte, uma qualidade objectiva, no que se liga a aspectos físicos correntes e especiais do habitar e, naturalmente, aos regulamentos a eles associados. Mas os aspectos menos aprofundados da segurança ganham um peso cada vez maior. Trata-se, aqui, de uma adequada configuração urbana dos edifícios e espaços públicos que lhes estão associados (criando-se vizinhanças visualmente protegidas).
A convivialidade urbana e doméstica, em espaços alternativos, é importante para a coesão familiar. O convívio no edifício é mais complexo, mas um número reduzido de fogos e a possibilidade de uma ou outra actividade comum, que pode ser até a conversa breve de circunstância, serão sempre aspectos positivos. Finalmente, o convívio público é uma qualidade essencial para a garantia de espaços urbanos vitalizados e motivadores.
A privacidade no recanto pessoal é uma necessidade básica, prolongada por idêntica exigência em cada habitação, e depois por uma gradação de privacidades de grupo caracterizando o edifício, o espaço de vizinhança – por exemplo o quarteirão – e até o desejado pequeno bairro residencial e intimista. Privacidade e convivialidade são complementares e interagem numa rica gradação de territórios e limiares.
A adaptabilidade trata da adequação dos espaços a determinadas condições de contexto e da sua capacidade de mudança de configuração e conteúdo funcional. A adaptabilidade é vital para o fortalecimento do carácter e do protagonismo de espaços urbanos vivos, para a sua grande longevidade de adequação à mudança dos modos de vida, e para o aprofundamento da apropriação de cada habitação.
Quanto à apropriação salienta-se a sua importância numa realidade urbana e habitacional marcada por negativas condições de anonimato e massificação. A apropriação é também determinante quando se procura, ao nível do agrupamento das habitações e nos próprios espaços domésticos, servir melhor diversos grupos socioculturais, vários tipos de famílias e variados tipos de usos domésticos.
Quanto à atractividade, ela é condição importante para a satisfação residencial e, designadamente, para a criação de laços positivos, de identidade e de estima, entre o mundo habitacional e os seus habitantes. A ideia actual é que temos muitas questões a colocar sobre a capacidade de atracção do espaço público, enquanto já nos aproximamos de algumas certezas sobre o que se pode privilegiar no edificado.
A domesticidade é, basicamente, envolvência e conforto, será também uma bem equilibrada intimidade, por vezes difícil de caracterizar, mas bem aparente. Ao nível público fica, em aberto, a questão da muito provável importância do desenvolvimento de ambientes de vizinhança caracterizadamente residenciais como factores de dinamização da apropriação e da identificação com o sítio que habitamos.
O último rumo qualitativo deste leque que aqui apresento é a “velha” integração (tão velha na justificação da concepção arquitectónica como a funcionalidade). A integração refere-se ao desenvolvimento de conjuntos residenciais completos e coerentes na unidade de todos os seus elementos, e em bom diálogo com os espaços de acolhimento urbanos e naturais; diálogo este de que deve resultar um efeito final que seja uma mais-valia cultural e funcional para o sítio e para a sua envolvente.
As Avaliações Pós-ocupação habitacionais
No que se refere à avaliação pós-ocupação, portanto ao desenvolvimento do conhecimento de como nós habitantes gostamos de habitar, sublinham-se dois campos de actuação.
O primeiro refere-se ao conhecimento pormenorizado do último quarto de século de habitação de interesse social portuguesa ligado, em boa parte, às 18 edições anuais do Prémio INH, de 1989 a 2006, e aos Prémios promovidos pelo IHRU em 2007 e 2008, e seguindo idêntica metodologia.
Os conjuntos habitacionais analisados no âmbito destes Prémios constituem cerca de um terço de toda a promoção de habitação de interesse social financiada, correspondendo a cerca de 600 intervenções municipais, cooperativas e privadas. E sublinha-se que estes conjuntos foram pormenorizadamente visitados e localmente discutidos em cerca 600 reuniões de análise multidisciplinar; e por isto se considera que o Prémio assegurou, nos últimos 20 anos, um verdadeiro observatório da habitação feita em Portugal com apoio do Estado (4).
O segundo campo de actuação nesta matéria refere-se ao desenvolvimento no LNEC de uma metodologia de avaliação pós-ocupação, que foi já aplicada em três grandes campanhas, em 42 conjuntos residenciais, em diferentes localizações, com diferentes tipologias de edifícios, de promoção cooperativa, municipal e privada, realizados entre 1986 e 1998, e com cerca de 3.300 habitações.
Neste processo de avaliação estão envolvidas três especialidades - Arquitectura, Engenharia, Construção e Ciências Sociais - e o processo de análise incluiu o estudo dos respectivos projectos, a discussão com os respectivos promotores, projectistas, construtores e gestores e uma visita pormenorizada aos conjuntos, incluindo entrevistas a habitantes e o lançamento de um nquérito postal, que foi respondido por cerca de um quarto das famílias.
As ferramentas de APO aplicadas no LNEC, têm dado interessantes resultados, salientando-se, apenas a título de exemplo, que:
. Na habitação a qualidade é frequentemente associada a aspectos de iluminação natural e de privacidade;
. No edifício detecta-se, em alguns casos, satisfação com a respectiva imagem urbana, mas continuam a destacar-se negativamente as matérias com âmbito construtivo.
. E no que toca às soluções de arquitectura urbana, é de salientar a boa aceitação de vizinhanças reforçadas e atraentes, considerando o seu conteúdo funcional e a sua gestão integrada, e dirigindo à gestão do espaço público uma atenção redobrada.~
Entre as duas faces da moeda – aprofundar a qualificação arquitectónica residencial; e melhorar a avaliação pós-ocupação – é ainda vital assegurar fundamentados e oportunos processos de análise do projecto.
Notas bibliográficas:
(1) Leonardo BENEVOLO e Benno ALBRETCH, As Origens da Arquitectura, Lisboa, Edições 70,2004 (2002), pp.10-13.
(2) António Baptista COELHO, Qualidade arquitectónica residencial: rumos e factores de análise, Lisboa, LNEC, ITA 8, 2000.
(3) António Baptista COELHO, Habitação humanizada – uma apresentação geral, Lisboa, LNEC, Memória 836, 2007.
(4) António Baptista COELHO, Instituto Nacional de Habitação, 1984 – 2004: 20 anos a promover a construção de habitação social, Lisboa, INH, LNEC, 2006.
Na próxima semana será editada a parte II deste artigoEdição Infohabitar, 26 de Abril de 2009
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Edição de José Baptista Coelho
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