segunda-feira, abril 06, 2009

241 - Mais espaço ou melhores espaços residenciais - Infohabitar 241

Infohabitar, Ano V, n.º 241

Série habitar e viver (melhor), VI: mais espaço ou melhores espaços residenciais
António Baptista Coelho

Nota: a ilustração é muito genérica e foi centrada em imagens dos Olivais Norte - Lisboa

Não se quer correr o risco de passar a noção de que as questões associadas a uma maior ou menor adequação e satisfação residencial e doméstica se reduzem à “velha” questão do dimensionamento das áreas da habitação e, designadamente, à recorrente matéria das áreas mínimas habitacionais.

A velha questão da quantidade de espaço doméstico interior é, julga-se, uma matéria globalmente ultrapassada, entre quem entenda minimamente os aspectos da qualidade residencial, seja numa perspectiva realista de se encarar o habitar, como tem de ser encarado, estendido sobre a vizinhança e ligado a uma cidade obrigatoriamente viva e estimulante, seja numa perspectiva mais “fina” e obrigatoriamente especializada de um habitar marcado por uma expressiva e sentida qualidade arquitectónica residencial.

Mas antes de comentar um pouco mais o que se acabou de apontar e a respectiva relação com as recorrentes matérias do dimensionamento habitacional, desde já se sublinha que não é essa a ideia-base aqui seguida, mas por não se poder nem querer passar ao lado de um debate que está sempre na primeira linha das questões ligadas à qualificação do habitar, desde já aqui se apontam alguns aspectos que são sintetizáveis na frase “mais área(s) ou melhores áreas”.

Basicamente a ideia que é talvez a mais significativa é que a área doméstica, ou, globalmente, a quantificação da área habitacional privada, não é o factor determinante numa perspectiva de verdadeira satisfação doméstica. Afinal entende-se bem que um dado compartimento, quando adequadamente dimensionado, é verdadeira e potencialmente mais satisfatório do que um outro compartimento marcado por dimensões pouco adequadas – desafogadas e versáteis –, por organizações pouco estimulantes e funcionais e por condições de conforto ambiental negativas; e atente-se que o mau dimensionamento tende a associar-se a uma má previsão de aspectos ambientais, por exemplo, ligados à luz natural, à insolação e à ventilação – parece haver como que um negativo entendimento do projectar do conjunto integrado de condições de bem-estar interior doméstico, condições estas em que se conjugam, realmente, aspectos dimensionais, de conforto ambiental e de variadas e compatíveis utilidades.

E há que sublinhar que este novelo integrado de condições dimensionais, ambientais e de utilidade dá corpo a uma verdade que é quase tão estruturante do interior da habitação, como dos espaços exteriores residenciais, pois num e noutro sítio, mais de que quantidade de espaço vale a respectiva qualidade, uma qualidade que decorre da justeza e riqueza das suas formas e do interesse, estímulo e coerência que caracterize a sua diversidade e a sua conjugação mútua. Só que se não há ainda consenso sobre uma tal realidade no interior doméstico, então o que dizer da fase em que estamos no que se refere à qualificação integrada e apurada de um exterior, quase tão “doméstico” como urbano, que é aquele que nos faz falta em todas as vizinhanças e, depois, disseminadamente, na própria cidade mais animada.

E atenção que nas matérias que estamos a abordar, da relação entre dimensionamento, caracterização em termos de conforto ambiental e aspectos de utilidade e adequação a diversos usos e apropriações, nem estamos a contar com uma outra dimensão, que entra em qualquer boa arquitectura residencial, que é naturalmente o próprio carácter e qualidade do “desenho”aí desenvolvido, e que é uma matéria que ela própria irá retroagir com os outros aspectos de concepção e levar a que estes últimos aspectos sejam vividos, “melhor ou pior”, mas sempre numa apreensão conjugada entre aspectos especificamente “de desenho”, de “partido”, de “carácter” e os outros atrás apontados.

E é assim que se avança com a noção da secundarização da espaciosidade “bruta” residencial relativamente a um caminho de qualificação em que diversamente de uma opção, “simplesmente”, por “mais área”, uma opção pouco qualificada e de certa forma “a granel”, é muito mais importante a noção de melhor espaço, e designadamente de melhor espaço doméstico e residencial, uma noção que tem naturalmente a ver com a quantidade da área, mas que tem também muito a ver com aspectos de dimensionamento pormnorizado, de funcionalidade e de adequada caracterização da solução residencial integrada, de vizinhança e urbana que foi visada e desenvolvida.





Fig. 01

Não se nega, evidentemente, a importância que tem uma área desafogada numa dada rua e num dado compartimento doméstico, assim como, globalmente, no conjunto dos espaços que garantam a funcionalidade de uma dada vizinhança urbana e o desafogo de uma habitação; apenas se chama a atenção para que mais área, por si só, não é “automaticamente” factor de mais qualidade residencial e urbana ou doméstica, e as provas estão, aí, em soluções residenciais e urbanas tradicionais e espacialmente exíguas e em soluções domésticas espacialmente acanhadas, mas muito bem dimensionadas e organizadas, que, hoje em dia, continuam a servir bem os seus habitantes (ex., dos bairros históricos às soluções mais económicas da antiga “habitação social” que foram realizadas, por exemplo, em Olivais Norte, Lisboa).

E nesta matéria há ainda que comentar que, tal como ficará evidente em muitas visitas, infelizmente, bem fáceis de fazer, a disponibilidade de muito espaço, qualitativamente mal projectado e tratado, é mesmo, frequentemente, um muito negativo factor urbanístico, com terríveis influências em termos de insatisfação, desapropriação, redução crítica do convívio vicinal e urbano e condições de insegurança resultantes de pouco uso do espaço público, de afastamentos críticos entre utentes do espaço público e, naturalmente, de falta de estima pelo mesmo espaço público, diria mesmo claro desamor pela vivência exterior.

Anteriormente, nesta série de artigos, abordámos um pouco as matérias da densificação estratégica do espaço urbano residencial e citadino, uma densificação que mais não é do que uma opção por proporcionar apenas aquele espaço urbano de vizinhança que é o necessário para diversos vectores funcionais, não “alargando” exageradamente as dimensões de tal forma que os laços de coesão urbana, de convivialidade e animação por proximidade e as relações que constroem as sequências de imagens que compõem a imagem urbana de proximidade e com escala humana, possam exercer-se, desenvolver-se, afirmar-se e possam caracterizar, notoriamente, cada vizinhança, como “única”, atraente e verdadeiramente habitável; tudo isto, naturalmente, ao nível de um mundo predominantemente pedonal.

Nesta perspectiva, hoje em dia crucial e crítica, do habitar-se com intensidade, agrado e continuidade os nossos espaços urbanos de vizinhança residencial e urbana, a questão do mais espaço não ser, directamente, melhor espaço, é uma verdade que tem de ser bem evidente e que pode até traduzir-se numa afirmação, bem verdadeira, da disponibilização de mais espaço urbano “a granel”, traduzir-se, habitualmente, em pior espaço, podendo constituir-se, frequentemente, num verdadeiro factor de desagregação urbana.




Fig. 02

Ao nível dos interiores domésticos a realidade é significativamente diferente, pois, aqui, um pouco de espaço a mais é sempre condição de maior adaptabilidade e desafogo. No interior doméstico a existência de um sentido de espaciosidade acaba sempre por ser um significativo factor de qualificação, ainda que esse espaço possa ter muito pouco utilidade funcional e um reduzido protagonismo arquitectónico (ex., simbólico, representativo, caracterizador), como acontece frequentemente.

Mas, no entanto, se considerarmos a habitação realizada com apoio do Estado, importa trabalhar muito bem, ao nível do espaço doméstico, garantindo-se como que uma estrutura espacial extremamente bem dimensionada e desenvolvida, baseada nas áreas e nas dimensões ergonomicamente adequadas para as diversas actividades, embora associadas, quer a um “suplemento” dimensional capaz de garantir uma essencial adaptabilidade a diversos usos e formas de habitar, quer a uma solução doméstica específica, cuja caracterização proporcione uma fundamental unidade, ou “partido” em termos de solução e de oferta de um dado leque de formas de habitar a “casa”; um leque que, tal como refere a palavra, propicie uma ampla diversidade de formas de habitar, mas que seja distinto de muitos outros “leques” de formas de habitar “casas”, proporcionados por muitas outras soluções domésticas.

É esta outra ideia-base que aqui se quer deixar sublinhada: que é essencial haver muitos leques de soluções domésticas disponíveis para se escolher como se quer habitar a “casa” e não, como infelizmente, acontece soluções repetidas tantas vezes até à náusea, como se organizar uma habitação fosse uma tarefa com uma única solução possível e na qual a única variação possível, ou a mais significativa, fosse a maior ou menor disponibilização de espaço “a granel”, e, “vá lá”, a maior ou menor “quantidade” de luxo que “enfeite” essa mesma quantidade de espaço.

Voltaremos a este tema, que consideramos fundamental, nas suas dimensões, também estruturantes, das opções tipológicas por edifícios, em que também se repete esta opção, sem sentido, sempre pela mesma solução, neste caso de esquerdo/direito, sem se entender todo o enorme leque de opções de agregação de fogos e de espaços comuns capazes de oferecer um modo de viver e de habitar a cidade e a casa, muito mais entusiasmante e mesmo emocionante, matérias que naturalmente têm também tudo a ver com melhor espaço, em vez de mais espaço.

Toda esta fundamental abertura de campos de criatividade no desenvolvimento e, depois, na vivência de um melhor espaço residencial tem, evidentemente, a ver com uma melhor Arquitectura, numa opção que tem de ser desenvolvida em várias frentes: a das entidades públicas com responsabilidades na matéria; a dos promotores residenciais; a dos investigadores e dos projectistas; e a dos próprios habitantes, que têm de exigir tal diversidade e qualidade.
Mas os arquitectos têm de avançar activamente nestas matérias e exemplificar que se está aqui a tratar de assuntos que têm tudo a ver com qualidade residencial e urbana e que nada têm a ver com quaisquer fantasmas de custos acrescidos, e afinal estamos hoje numa fase das preocupações sobre o habitar que evidencia a necessidade da diversificação e da adaptabilidade das soluções.

A título de exemplo muito significativo desta grande batalha por melhores espaços residenciais, no sentido de espaços melhor “arquitectados”, cita-se um estudo de Jacqueline Palmade e M. Perianez no qual estes autores referem um empreendimento francês de habitação de interesse social multifamiliar, em Rex Hermet-Biron, com 47 fogos e no qual se desenvolveram 23 aspectos "originais" relativos a diversas características dos vários espaços e compartimentos habitacionais e aos relacionamentos entre eles (1).

Nesta intervenção as características de originalidade, ou menor convencionalidade, na organização e na espacialidade doméstica agrupavam-se diversamente em cada habitação, variando entre fogos com um único aspecto menos habitual, até outros em que se concentravam até oito aspectos mais originais.

Na apropriação que se desenvolveu deste conjunto residencial, em Rex Hermet-Biron, detectou-se uma tendência de escolha das habitações mais “clássicas”, porque incluindo um menor número de inovações, por parte das famílias social e economicamente mais favorecidas; famílias estas que também demonstraram maior gosto pelas habitações mais pequenas do que as famílias consideradas como mais desfavorecidas (2). Embora se trate, aqui, apenas de um caso, estes aspectos podem querer significar para os agregados mais favorecidos uma vontade mais tradicional na solução da habitação, que depois é ambientalmente compensada/aproveitada por arranjos pessoais mais fortes, livres e caracterizados; enquanto que para os outros agregados talvez que a vontade de ter mais espaço pessoal e familiar seja ainda determinante, o que não deixa de ser natural, quer pela situação de evolução de piores para melhores condições habitacionais, quer pela muito reduzida oferta de opções habitacionais que caracteriza, quase sempre, essa transição qualitativa.





Fig. 03

Em Olivais Norte, Lisboa, um dos conjuntos de habitação de interesse social portugueses que foram realizados (cerca de 1965) de forma mais integrada, nas relações entre interiores e exteriores, e num evidente e exigente apuro em termos de grande qualidade arquitectónica, assiste-se, ainda hoje, passados quase 50 anos, à continuidade de uma positiva apropriação de soluções habitacionais extremamente “económicas” em termos de áreas domésticas, extremamente inovadoras, à época e ainda hoje em dia, em termos de propostas de organizações domésticas e, por vezes, marcadas por soluções igualmente inovadoras na oferta de espaços comuns espaçosos e caracterizados por expressivos elementos de apropriação e identificação, com destaque para as intervenções artísticas.

Esta é uma temática que não se esgota nesta simples abordagem, sob o tema do mais espaço ou dos melhores espaços, mas há aqui aspectos com importância determinante no pensar o habitar. E nestes aspectos destaca-se, desde já, quer a clara complementaridade que se respira, em Olivais Norte, entre soluções com espaços domésticos e comuns mínimos e espaços exteriores residenciais de vizinhança extremamente cuidados e “habitáveis”, quer a idêntica complementaridade entre espaços domésticos relativamente mínimos e excelentes e conviviais espaços comuns, quer o grande apuro que foi investido no estudo aprofundado das organizações e relações dos espaços domésticos – não se optando por quaisquer “dados adquiridos” em termos de soluções preexistentes –, quer, finalmente, a qualidade comum a todas estas soluções, que é a do excelente desenho de Arquitectura, um desenho feito tanto numa sensível relação com a própria matéria do desenho e da arte, quer numa igualmente sensível e pormenorizada relação com quem habita, quer, finalmente, numa igualmente sensível e envolvente relação com a natureza.

Fiquemos, então, com a ideia de que chega de pensar que qualidade e quantidade são aspectos afins, que é chegada a hora de interiorizar que a oferta habitacional tem de responder, o melhor possível, a muitos gostos distintos de habitar e a diversas exigências habitacionais, que uma tal opção não implica, obrigatoriamente, gastos suplementares e que, para tal, há que melhor arquitectar o habitar, do exterior urbano e residencial ao interior doméstico; e afinal há bastantes bons exemplos a seguir ou com os quais é possível aprender, mais do que soluções específicas, um caminho específico de conciliar desenho, adequação de usos e gostos residenciais e integração entre cidade e natureza.





Fig. 04

E, afinal em tudo isto, há sempre que sublinhar que não estamos a tratar de números ou de receitas a repetir e associadas a uma qualquer satisfação garantida, porque o fazer da cidade e da casa do Homem liga-se, essencialmente, a aspectos qualitativos, e, tal como escreveram, há pouco tempo, Leonardo Benevolo e Benno Albretch, “os desafios a enfrentar no mundo de hoje não dizem apenas respeito às quantidades e aos números, mas também, – e sobretudo – à complexidade e à subtileza” (3).

E é nesta complexidade e subtileza que actua a melhor Arquitectura residencial e urbana, manejando os diversos aspectos quantitativos e qualitativos e realizando, quer pequenas habitações económicas bem integradas em vizinhanças acolhedoras e onde, provavelmente, pouco sentimos uma eventual exiguidade espacial pois habitamos uma solução integrada e equilibrada onde há complementaridades entre casa e rua e onde os espaços, embora reduzidos, são adaptáveis e apropriáveis, quer grandes habitações cuja caracterização arquitectónica espacialmente pormenorizada reduz, de certa forma, o seu expressivo dimensionamento a uma escala de uso agradavelmente humanizada e envolvente

Notas:
(1) Jacqueline PALMADE; Manuel PERIANEZ, "Des HLM à la Conquete de l'Espace", pp. 50 e 51.
(2) Jacqueline PALMADE; Manuel PERIANEZ, "Des HLM à la Conquete de l'Espace", p. 182.
(3) Leonardo BENEVOLO e Benno ALBRETCH, As Origens da Arquitectura, Lisboa, Edições 70,2004 (2002), pp.10-13.

Infohabitar
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 6 de Abril de 2009
Edição de José Baptista Coelho

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