Apropriação ou representação na habitação
António Baptista Coelho
Série habitar e viver (melhor), VI: Apropriação ou representação na habitação, mais luxos ou verdadeiros luxos residenciais
Nota: a ilustração privilegia pormenores de habitação de interesse social
Mais apropriação ou mais representação na habitação
A apropriação pode ser até negativa, mas uma vizinhança e uma casa sem capacidade de apropriação não são, nem uma verdadeira vizinhança nem uma verdadeira casa.
A apropriação pode ser activa ou passiva, mas também, neste caso, com sentido positivo, pois, por exemplo, um edifício habitacional formalmente atraente ou inserido num atraente jardim urbano é sempre um edifício bem apropriado, porque bem identificável e estimulante.
Apropriamo-nos assim de algo que nos atrai e que gostamos de mostrar, porque nos marca a memória, de forma positiva e amigável, assim como podemos gostar de algo onde conseguimos introduzir a nossa marca pessoal; ainda que tal marca seja quase um “sinal” de identidade e de presença, ligado a um dado pormenor que nos cativa e que assinala uma entrada, ou uma janela.
E por vezes ao marcarmos algo estamos, realmente, a destruir o equilíbrio formal que aí existia, mas apenas se tal equilíbrio existia. Mas num caso destes estamos, realmente, a contribuir, negativamente, para a destruição de uma essencial estima pública, baseada em pormenores e imagens urbanas gerais e estruturantes que devem conciliar o interesse e a dignidade de uma parte de cidade, que é de todos e que a todos deve agradar, com a força de apropriação de cada edifício e de cada habitação pelos seus próprios habitantes; uma força que pode residir, por vezes, em pormenores tão singelos como uma dada forma geral sóbria mas marcante, ou uma dada marcação do nome de uma pequena praceta ou uma presença de arte urbana estratégica, “surpreendente”, curiosa e sempre marcante de um dado sítio e da sua identidade.
Uma alternativa a este frequente sensível equilíbrio ou desequilíbrio entre apropriação positiva ou destruição do carácter de um dado local, ou, eventualmente, um outro aliado da apropriação pode ser um aspecto representativo, muito digno, de um dado edifício ou troço urbano e habitado. Pode ser que sim, mas será que apropriamos, verdadeiramente, essa “dignidade”, por vezes quase “cerimoniosa”, designadamente, quando ela se liga aos espaços que habitamos com diária intensidade?
Podemos transportar esta dúvida para o interior da nossa casa. Será que aqui apropriamos aqueles espaços de “cerimónia” ou, pelo contrário, são eles que se nos impõem, ou, no mínimo, acabamos por nunca os viver realmente; um pouco como aquelas salas que existiam em certas casas para serem os espaços de recepção das visitas “de cerimónia” e, por vezes, os sítios onde se velavam os finados. E, atenção, estas salas existiam em casas com outras salas, não em casas onde o espaço é relativa ou claramente escasso, e onde, por vezes, só há esse espaço reservado para a “cerimónia”.
Talvez que, desta forma, a representatividade seja, essencialmente, direccionada para átrios comuns e/ou para os espaços de vizinhança. Mas, mesmo aqui, será que não preferimos ambientes calorosos e atraentes, portanto fortemente apropriáveis, em vez de outros onde nos sentiremos sempre um pouco estranhos, um pouco “a mais”, porque o que conta, essencialmente, é o quadro de um cenário urbano feito, muitas vezes, para se valorizar, essencialmente, quando vazio?
Ficará para outros textos o avanço nos caminhos de uma apropriação pessoal e familiar de vizinhanças, de habitações e de janelas sobre a rua, que conviva bem com uma verdadeira, porque sóbria, dignidade urbana da respectiva vizinhança e suas imagens urbanas; e isto sem se envolver estas vizinhanças de uma cerimónia descabida e impessoal, mas também sem se impor aos outros vizinhos apropriações parcelares e pessoais excessivas, porque intrusivas das suas próprias identidades e vontades ou não-vontades de apropriação.
E fica também para discussão posterior o como fazer conviver estas intenções, positiva e intensamente, com uma “arquitectura nova”; isto sem qualquer rejeição de regionalismos, sempre estratégicos nestas matérias da apropriação, mas não ficando obrigatoriamente deles reféns.
E atenção que nas vizinhanças dos nossos “habitares” também precisamos de alguma representação, de algum sentido de cenário, pois, numa situação contrária teríamos realmente de habitar ambientes maquinais, crus, “sem sombras”, sem cores, sem sequências, sem fundos e vistas de paisagens próximas ou distantes, sem primeiros planos atraentes de pessoas ou de pormenores. E evidentemente que esta capacidade representativa nem tem de ter apenas a ver com a capacidade de apropriação de cada sítio, nem tem de ser algo suplementar ou descartável, devendo fazer parte integrante da caracterização local e identitária de cada solução; uma representação que deverá estabelecer pontes de grande escala com a paisagem envolvente e outras, de pequena escala com os percursos pormenorizados que “perfurem” curiosamente as vizinhanças e com as sequências de planos que mergulhem nos interiores de habitações e outros espaços da vizinhança.
Mais luxos ou verdadeiros “luxos” residenciais
Seguimos estas ideias associadas à representatividade e à apropriação que devem ser manejadas no fazer de um habitar de vizinhança que “brigue” connosco, positiva e curiosamente, no dia-a-dia, durante muitos anos e há que considerar que talvez estes caminhos de concepção sejam os verdadeiros luxos de que não devemos abdicar nos sítios onde vivemos.
A questão centra-se em imaginarmos podermos viver uma dada vizinhança de um dado bairro de uma dada cidade, numa dada casa ou apartamento, sentindo toda essa série de espaços e ambientes como uma sequência de sítios que realmente usamos em plenitude e com verdadeiro prazer, e isto todos os dias e em todas a horas do dia.
Um lugar comum? Esta possibilidade será um lugar comum? Não de certeza, pois a maioria de nós não tem um tal privilégio, um privilégio que não tem uma razão económica, mas somente uma razão de qualidade de concepção de Arquitectura, seguida, naturalmente, de uma razão de qualidade construtiva e de gestão, razões essas que também não têm exclusivas razões económicas, longe disso.
Viver bem em excelentes condições habitacionais não é um luxo no sentido que damos aos condomínios luxuosos onde vivem os ricos, pois é possível viver, praticamente, tão bem – naturalmente com menos espaço doméstico, menos mármores e menos empresas de vigilância – por um custo perfeitamente adequado a uma bolsa normal. E para quem não acredite, ainda, numa tal realidade juntam-se mais algumas imagens de habitação de interesse social portuguesa, para provar essa possibilidade bem real. Fica a “eterna” questão de, sendo assim, porquê tanta falta de qualidade urbana e residencial?
Talvez que não haja ainda o verdadeiro e bem assumido sentido dessa verdadeira vivência habitacional da cidade das vizinhanças, uma vivência que é fulcral no saborear dessa qualidade sóbria, mas tão efectiva e afectiva e talvez que uma tal qualidade seja realmente o “suplemento de alma” da Arquitectura verdadeiramente bem qualificada, que continuará, sempre, a ser rara; mas de que tanto precisamos, nós habitantes e as cidades que habitamos.
Mas também poderá haver outras respostas, igualmente importantes. Por exemplo, numa perspectiva de divulgação das qualidades residenciais que é possível ter a custo zero, porque embebidas num bom projecto de Arquitectura; e numa perspectiva de simples divulgação comentada de bons casos de referência, daqueles em que esses verdadeiros luxos do bom-viver, sejam claramente associados a soluções económicas, porque simples e citadinamente dignas.
E, às vezes, como bem sabemos até muito do tal “luxo” complexo e tantas vezes de gosto pesado e impositivo, porque medido, frequentemente, numa espécie de luxo quantitativo, medido ao metro ou até ao peso, por exemplo, em metros de mármore e de pormenores plenos de novo-riquismo, pode ser substituído, com evidentes vantagens financeiras, funcionais e mesmo de aspecto por outros tipos de acabamentos, de atribuições funcionais e de cuidados de gestão.
Ainda há pouco tempo, em Junho de 2008, na sequência da comemoração da conclusão de uma obra habitacional cooperativa, “a custos controlados”, na zona tradicional das Fontainhas, no Porto, num artigo de jornal referia-se o conjunto designando-o, no título do artigo, como “de luxo”, e, no entanto, no corpo do artigo associava, e bem, um tal luxo a condições únicas de integração urbana, de enquadramento paisagístico e de qualidade do desenho de Arquitectura; e temos de concordar que é “um luxo” nestes termos, e um luxo que mais ainda o é, por ser “um luxo”, “luxuosamente” disponibilizado a custos acessíveis a muitas bolsas.
Mas entendamos que a referência ao luxo habitacional está ainda muito pouco associada a tais condições, sendo, frequentemente ligada a matérias mais vulgares de acabamentos materialmente dispendiosos e a uma superabundância de espaço, que, tantas vezes, acaba por ser visual e mesmo funcionalmente redundante.
Mas, realmente, na base do verdadeiro “luxo” está a possibilidade de vivermos verdadeiramente bem nas nossas casas, vizinhanças e cidades, até, habitualmente, associando uma tal capacidade de podermos ser um pouco mais felizes com um melhor espaço de habitar e de cidade, a uma expressão pública muito sóbria e contida de um tal conjunto de condições e o que aqui, nesta sequência de artigos, se tem vindo a defender é que para tal nem é preciso gastar mais dinheiro do que o que se gasta em sítios onde nos alojamos, menos bem e com bastante menos felicidade, porque, “do mal o menos”, ou a casa não é má, ou a vizinhança é funcional, ou é agradável, ou a localização urbana é central ou, não o sendo, está bem servida de transportes.
E, assim, não nos esquecendo que precisamos disso tudo para vivermos melhor – uma boa casa, um bom sítio, acessibilidades, capacidade de convívio público, etc. – tais matérias que se ligam ao verdadeiro “luxo”, que só assim é referido por ser ainda relativamente raro, até são suficientemente potentes e adaptativas para poderem equilibrar-se e apoiar-se, mutuamente.
E sobre estas matérias há três questões que deve ser colocadas em cima da mesa, sendo uma delas um conjunto de cuidados de projecto, promoção e execução que marcam uma actividade verdadeiramente profissional, sendo a outra questão a que se liga à, cada vez mais, vital exigência de uma verdadeira qualidade de Arquitectura, e a terceira questão é a urgência de que estas matérias, ligadas ao como habitar com mais satisfação, sejam levadas ao grande público, podendo, tendencialmente, constituir-se em exigências do grande grupo de todos os habitantes. E este livro tem lugar cativo nesta terceira frente da sensibilização para a urgência de um habitar mais feliz …
Concluímos, para já, este novelo de assuntos com uma citação de Monique Eleb (1997), que sublinha que “o alojamento de luxo não oferece hoje em dia um modelo de habitar e que isto acontece há decénios” e que “a diferença entre habitações de luxo e sociais têm menos a ver com aspectos de estruturação e distribuição e mais com a localização, expressão das fachadas ou utilização de certos materiais.” (1)
Muito longe nos pode levar esta ideia, que só em apontamento aqui abordámos e que muito se liga aos aspectos de apropriação e de representação, negativos ou positivos e caracterizadores de sítios de habitar e de vizinhanças urbanas a que nos referimos no início deste texto.
Notas:
(1) Monique Eleb, Anne Marie Chatelet, “Urbanité, sociabilité et intimité des logements d’aujourd’hui”, 1997, p.17.
Edição Infohabitar – Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 19 de Abril de 2009
Edição de José Baptista Coelho
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