Série habitar e viver (melhor), IV: uma cidade diversa, feita de bairros e limiares
Artigo de António Baptista Coelho
Redescobrir uma cidade diversa
Nuno Portas escreveu, já há alguns anos, que a cidade tem sido dilacerada entre "a continuidade e a diversidade, entre a metrópole e a comunidade, o grande e o pequeno", e a propósito destas escolhas o mesmo autor defende que: "Nem uma cidade de comunidades, hoje, substitui a metrópole, nem a metrópole, ... pode passar sem os outros níveis de relação que não são os bairros transformados em equivalentes a aldeias tradicionais... a cidade não é mais igual, não pode ser igual”; e na mesma intervenção Nuno Portas conclui que “a procura é diversa. A procura cultural é diversificada, não há consenso no modelo para fazer isso”. (1)
E, por fim, o mesmo Nuno Portas remata explicando que, por assim acontecer, lhe “parece estratégico falar no espaço comum. Tentar encontrar mais depressa o consenso sobre o espaço comum, em vez de ter uma grande preocupação sobre o consenso quanto ao edificado".
Julga-se ser este um pedaço de texto muito rico pois nele se sublinham aspectos de diversidade urbana, de diversidade cultural urbana e de se poder privilegiar o espaço comum, ou público, no sentido de se servirem, hoje em dia, estas diversidades, reganhando-se com isso uma cidade mais verdadeira.
A ideia que fica é que esta possibilidade de se poder voltar a ter uma cidade mais diversa e mas culturalmente fundamentada, é uma saída muito importante na aproximação a um espaço urbano mais amplamente satisfatório e mais eficaz, até em termos económicos; e, nesta perspectiva, o consenso sobre os espaços públicos, será o caminho para que todos os respeitem e se considerarmos que o espaço público marca o chão e as paredes da cidade –os “cenários” vivos da cidade – então teremos aqui uma parte significativa da matéria do fazer uma cidade verdadeira e contemporânea.
Fig. 01
É ainda interessante ter presente que uma perspectiva que, como esta, defenda uma cidade renovada com base numa diversidade cultural bem fundamentada é uma perspectiva bem associável ao aproveitamento da cultura como elemento chave de uma desejável revitalização económica das cidades europeias, e sobre estas matérias muito se tem escrito ultimamente.
A ideia que se quer sublinhar é que a conquista de uma adequada diversidade urbana, se ganha essencialmente numa intervenção no espaço público e pode ser um trunfo, quer para um habitar a cidade com satisfação e entusiasmo, quer para a economia da própria cidade.
Uma cidade de bairros e de limiares
A cidade sempre foi feita de bairros, que eram e são, frequentemente, pequenas cidades com as suas características próprias que identificam cada bairro, nos seus aspectos sociais, formais e funcionais. Hoje em dia poderia pensar-se ser questionável a manutenção de uma tal estruturação, mas afinal, a cidade que temos é a mesma cidade, não outra, e as partes da cidade que temos de que mais nos orgulhamos são aquelas feitas de bairros.
Podemos, portanto, defender que uma cidade de bairros é um objectivo hoje muito válido, mas devemos, naturalmente, encarar o termo “bairro” com um sentido muito flexível, que terá pouco a ver com aspectos dimensionais e quantitativos de grandes zonas urbanas, e terá muito mais a ver com a ideia da caracterização de verdadeiros conjuntos de edifícios e espaços públicos com identidade positiva e bem integrados nas respectivas vizinhanças urbanas.
Fig. 02
Poderemos depois, naturalmente, especificar, que um dado conjunto é um “pequeno bairro”, ou que um dado conjunto se integra, em harmonia, num dado espaço urbano de um dado bairro, mas a ideia é sempre esta da contribuição para a constituição de unidades urbanas e residenciais caracterizadamente positivas em termos de identidade e de integração na paisagem urbana.
Defende Sidónio Pardal que "cada bairro precisa de desenvolver a sua identidade física, que é componente fundamental da sua identidade cultural” (2) e Kevin Lynch faz-nos avançar na caracterização de uma tal identidade apontando que "a homogeneidade das fachadas, o material, a decoração, a cor, o recorte no céu e, especialmente, os vãos, são todos indicadores fundamentais que servem a identificação dos principais bairros." (3)
Num trabalho que editei no LNEC em 1998 (4) saliento que ao chegarmos ao nosso bairro ou à nossa Área Residencial ou quando saímos de casa com a intenção de ir até ao centro urbano mais próximo, frequentemente atravessamos um determinado espaço urbano bem conhecido, que envolve o sítio específico onde moramos, até chegar à porta de casa, à paragem do transporte público ou às principais rodovias de acesso à zona; todo esse espaço que cruzamos diariamente é a nossa Vizinhança Alargada, um espaço de equilíbrio entre um animado anonimato urbano e um sentido de ambiente bem conhecido e seguro, marcado por equipamentos de uso diário e pelo encontro frequente de caras conhecidas e de algumas pessoas que saudamos como vizinhos.
Fig. 03
Propõe-se, assim, um novo conceito de “vizinhança alargada”, perfeitamente assimilável ao de uma parte de bairro ou de um pequeno bairro, e que pode e deve ser um domínio privilegiado do peão, permitindo uma vivência urbana física e diária que nos enriqueça pessoalmente pelo convívio e pelo contacto com o exterior e que contribua para a nossa saúde física e mental, enquanto simultaneamente constitua um factor de vitalização desse exterior residencial.
Mas sublinha-se que, para que assim aconteça, são essenciais continuidades físicas com as zonas urbanas envolventes, transportes colectivos funcionais e agradáveis e uma estrutura urbana local muito cuidada e equipada; estrutura esta bem marcada por uma estimulante caracterização de percursos pautados por equipamentos conviviais de uso diário, e desenvolvidos no respeito de uma tradição urbanística marcada por exemplos encontrados em bairros consolidados e vivos.
Não se trata de inibir a inovação urbana, mas apenas de a caldear com os exemplos de sucesso que é possível percorrer e viver; e, naturalmente, aqui é sempre possível e desejável uma opção pela modernidade nos edifícios.
O que não é admissível é corrermos o risco de alienar a possibilidade de habitar também o bairro ou a vizinhança alargada, ficando, assim, “refugiados”, praticamente, quase só no nosso mundo doméstico; esta será sempre uma opção de habitar extremamente insatisfatória, redutora e naturalmente geradora de depressões e de sentimentos socialmente negativos.
no limiar entre o habitar e a cidade e vice versa
"As cidades são algo mais do que conjuntos de edifícios ladeando ruas e praças. São organismos vivos. Os edifícios, as ruas e as praças formam com as pessoas que ali habitam, transitam, trabalham e passeiam, unidades coerentes e características... e as cidades morrem mesmo sem terem sido destruídas. Basta quebrarem-se os elos que ligam, num todo harmonioso, os edifícios e as pessoas; basta que o modo de vida deixe de corresponder à feição e ao carácter das edificações" (5).
E para as cidades viverem as casas da cidade têm de dialogar com as ruas da cidades e inversamente, também, as ruas têm de ir até às habitações e vitalizá-las, caracterizá-las, vitalizando-se e caracterizando-se. Será assim, que, portanto, no princípio e no fim do habitar a cidade terá de estar, sempre e sempre viva.
No princípio, na articulação das referências urbanas, no princípio da esquematização de bairros e de vizinhanças, a cidade funcional, viva e caracterizada deverá marcar a razão de ser dos espaços do habitar, foi até por essa razão de ser que a cidade nasceu, talvez há mais de 10.000 anos, numa sua forma mais reduzida – a cidade-povoação, conjunto de casas concentradas e grupo social naturalmente marcado pela solidariedade.
E no fim, no reverso da chegada a casa, quando de casa olhamos a rua, quando em casa nos sentimos bem, protegidos e entre os nossos e as nossas coisas, que nos marcam, e olhamos a rua e imaginamos e vemos nessa rua os sítios onde ela nos leva, nesse fim, que é, afinal, um outro princípio, sempre num ciclo de vida e de interesse renovados, está e devera estar, sempre, a cidade, também.
E acreditem que nada disto, nem esse princípio, nem esse fim, existem naqueles tristemente famosos subúrbios onde, pouco mais do que, se dorme.
Talvez que esse princípio e esse fim, nessa cidade, existam, também, de uma forma diferente, em certas casas que, sendo, sós, são, elas próprias, pequenas cidades de memórias e de pormenores que são também outras pequenas cidades, mas isso é, provavelmente, uma outra história.
Fig. 04
Ao aproximarmo-nos da nossa casa podemos e devemos ter a noção de estarmos a entrar num pequeno mundo que conhecemos bem e que, mesmo ainda a uma boa distância da nossa porta, nos envolve, protege e de certa forma nos saúda.
Para isso é necessário que existam referências "familiares", marcações físicas e humanas amigáveis que marquem os postos avançados e o recheio citadino e habitável do sítio que habitamos, abrindo-se, assim, percursos que já fazemos descontraída, agradável e "automaticamente", sentindo-nos, por um lado, já em casa, seja por conhecermos tais percursos “como os nossos dedos”, seja por serem, aí, possíveis e, eventualmente, bem-vindas, situações de reconhecimento mútuo e mesmo de algum convívio espontâneo, mas sendo sítios onde, por outro lado, ainda predomina um salutar e “casual” anonimato urbano.
Este princípio e este fim da cidade, e este prenúncio ou mesmo esta expansão do nosso sítio de habitar, deve ser formado por um estimulante agregado de espaços de vizinhança, estes sim mais directamente ligados aos espaços habitacionais privados, mas para tal é necessário Arquitectura: é necessário que esta escala urbana mais “fina” e mais íntima seja verdadeiramente desenhada seja em termos de linhas de projecto estruturantes, seja em termos de uma sensível pormenorização, seja, naturalmente, em termos de uma expressiva identidade, ligada a uma forte adequação a cada sítio e a uma leitura destes objectivos de vivência urbana marcada pela diversidade e pela surpresa, qualidades estas bem radicadas nas cidades que são mais atraentes e estimulantes – diversidade esta que deve resultar numa disciplina urbana de hierarquias de funções que seja atraentemente quebrada por uma expressiva teia de situações excepcionais, negando-se toda e qualquer regra geral, monotonamente hierarquizada.
Um tal estimulante agregado de espaços de vizinhança, marcado, aqui e ali, por estimulantes situações de excepção – como lojas em esquinas, largos conviviais, passagens pedonais, árvores estrategicamente situadas, etc., etc. – constitui, por uma lado, a verdadeira fundação da cidade e, por outro, o limiar da passagem para os pequenos reinos do habitar.
Nesse mesmo agregado de vizinhanças encontram-se, também, os limites naturais da acessibilidade predominantemente pedonal – atenção, que não exclusivamente pedonal – onde encontramos os principais pequenos pólos de acesso rodoviário público aos principais centros urbanos, pólos esses que se devem caracterizar como atraentes zonas de charneira entre diferentes vizinhanças, variadamente caracterizadas e só parcialmente conhecidas; esta caracterização tem a ver com as respectivas soluções de Arquitectura urbana, que poderão revelar, apenas, uma pequena parte dos seus espaços “interiores”, reservando, assim, boa parte da sua realidade para uma gradual descoberta, o que, sem, dúvida, aguçará uma estimulante curiosidade a quem por ali passe (e, inversamente, todos conhecemos arquitecturas que praticamente tudo revelam a quem por elas passa ao lado, até de automóvel).
Falta, talvez, reflectir um pouco mais sobre a ideia de um espaço de habitar que se integra na cidade e que, de certa forma, dela se “esconde”, reservando –se de olhares e de usos mais alheios, proporcionando aos seus habitantes sossego e mesmo algum agradável mistério, mas mantendo, logo ali, bem perto, a possibilidade de acesso aos centros urbanos mais animados, através de percursos e pequenos pólos equipados, bem conhecidos, mais de quem aí habita do que de quem por lá passa.
Fig. 05: a nova Arquitectura também faz, naturalmente, bairros e vizinhanças – conjunto em Alcântara, projecto de Frederico Valsassina
Sobre estas matérias do poder ter o sossego e o intimismo, logo ali ao lado do urbano e, nos limiares entre tais mundos, espaços de relação diversificados e estratégicos, importa dizer, desde já, que se considera ser esta uma matéria essencial para uma expressiva agradabilidade residencial. E importa também, sobre este assunto, sublinhar, desde já, que na própria génese desta ideia está a necessidade de ela não ser aplicável como regra, pois muitas pessoas querem viver nos próprios espaços da cidade bem viva e animada, porque as verdadeiras cidades são compostas de múltiplas misturas formais e funcionais, porque não há verdadeiros pólos de animação urbana sem uma forte componente habitacional e, afinal, porque, a própria vontade de viver um pouco mais afastado da animação pressupõe a possibilidade de se viver junto a essa mesma animação; e uma coisa é certa, é que nada do que aqui se acabou de referir é possível com enquadramentos urbanísticos marcados pela normalização, que não reflictam expressivamente a identidade de cada local e que não sejam servidos por verdadeiros projectos de Arquitectura urbana, qualitativamente muito exigentes.
Pois, afinal, a envolvente da nossa área residencial, seja ela um bairro ou um conjunto coeso de edifícios e espaços exteriores, é sempre uma zona de limiar e de ligação, um espaço de partida e de chegada, um lugar estratégico de trechos de animação e de equipamento convivial, assegurando à cidade continuidades de relações e de imagens, mas marcando essa área residencial com um carácter formal e funcional próprio e expressivo.
E é neste limiar entre o habitar e a cidade que importa assegurar pequenos pólos/enlaces de transportes públicos (6) : rodeados de locais de trabalho e de habitações para pessoas que dependam especialmente desse tipo de transportes; com continuidades viárias e pedonais claramente afirmadas e penetrando nas vizinhanças contíguas; e com unidades comerciais estimulando os fluxos de circulação. Poderemos, deste modo, consolidar ou reconsolidar as mais finas rótulas de coesão urbana, proporcionando-lhes um verdadeiro estatuto de entidade urbana viva de vizinhança própria e ao serviço das vizinhanças que ali estão bem próximas, uma opção que se considera ser, hoje em dia, estratégica, pois dele dependerá boa parte da urgente re-coesão citadina; e uma opção que terá de ter em conta aspectos de densificação estratégica, que são fundamentais em termos da estruturação de qualquer vizinhança socialmente sustentável.
Notas:
(1) Nuno Portas, in "Colóquio Viver (n)a Cidade", LNEC, ISCTE, Comunicações, p. 9.
(2) Sidónio Pardal; P. Correia; M. Costa Lobo, "Normas Urbanísticas, Vol II", p. 76.
(3) Kevin Lynch, "L'Image de la Cité", p. 79.
(4) “Do bairro e da vizinhança à habitação”, ITA 2.
(5) Francisco Keil Amaral, "Lisboa uma Cidade em Transformação", p. 31.
(6) Christopher Alexander, S. Ishikawa, M. Silverstein, et al, "A pattern Language/Un Lenguage de Patrones", p. 183.
Edição Infohabitar
Lisboa, Encarnação – Olivais Norte, 4 de Janeiro de 2009
Edição de José Baptista Coelho
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