domingo, fevereiro 17, 2008

183 - Cidades vivas, cultas e criativas I - Artigo de António Baptista Coelho - Infohabitar 183


Fig. 01

 - Infohabitar 183

Cidades vivas, cultas e criativas I

Artigo de António Baptista Coelho

Relações entre revitalização urbana, cultura e criatividade


A ideia que aqui se coloca é que há, hoje em dia, um conjunto de aspectos de intervenção urbana e activa que associam, em si mesmos, capacidades de se avançar na resolução de alguns problemas das nossas cidades e paisagens. E a ideia é que a revitalização urbana, a dinamização da cultura e da arte, e a criação de uma cidade mais cívica, humana e ambientalmente sustentável, são aspectos que mutuamente se conjugam e se influenciam, podendo ser usados em acções de melhoria da qualidade de vida urbana e peri-urbana, hoje em dia, cruciais e urgentes.

Desde já aponto que quando iniciei este artigo não conhecia ainda o teor da “Carta de Leipzig sobre as Cidades Europeias Sustentáveis” (1), sublinhando, desde já, que este conhecimento proporcionou uma maior articulação e, mesmo, fundamentação institucional das matérias aqui apontadas; e o próprio teor da Carta de Leipzig resultou na vontade de a vir a comentar, especificamente, em próximo artigo desta série.

Voltemos, então, às ideias-base que estiveram na origem deste pequeno texto e começando pelo enquadramento e utilizando alguns artigos recentemente editados no jornal Público, poderemos ter em conta alguns aspectos que caracterizam muitas cidades europeias actuais:


Fig. 02


I A criatividade cultural como factor de revitalização urbana


Um desses aspectos é sintetizado no artigo de Catarina Selada e Inês Vilhena da Cunha, intitulado “A criatividade é um «produto» urbano?” (2), e onde numa “caixa” se destaca, entre outros aspectos, que “a fixação de criativos pode ser um factor de desenvolvimento das áreas rurais, zonas de baixa densidade ou pequenos centros urbanos.”

Apetece dizer que o desenvolvimento da criatividade urbana é, por si só, matéria de dinamização e enriquecimento da cidade, e de qualquer “cidade”, desde o pequeno aglomerado urbano onde se localize, por exemplo, um pólo artístico, como é o caso do Centro Cultural S. Lourenço, em Almansil, numa zona semi-rural, perto de Faro, a um caso urbano, e cosmopolita com presença notável numa grande cidade como acontece, por exemplo, com o entusiástico movimento de inovação do tecido comercial, designadamente, através de ateliers, galerias de arte e lojas inovadoras, que está a marcar e a crescer, fortemente, na “cruz” formada pela Rua do Rosário e pela Rua Miguel Bombarda, no Porto (as imagens que ilustram este artigo são destas ruas); e pelo meio temos as igualmente excelentes iniciativas de dinamização cultural que têm marcado pequenos e caracterizados pólos urbanos, entre as quais se destacam, por exemplo, os eventos que regularmente acontecem na medieval vila de Óbidos.


Fig. 03
Há, portanto, um potencial de novidade cultural que se pode tornar, com alguma naturalidade, um potencial económico local com sentido crescente, e vitalizador de um ritmo urbano semanal mais nos dias “úteis”, mais nos finais de semana, ou em certas datas específicas, ou, melhor ainda, variando em conteúdos conforme o desenvolvimento do calendário, bem na tradição de uma cidade viva e caracterizada, acrescentando-lhe uma excelente e sensível dimensão de vida cultural e ambiências e memórias únicas e verdadeiramente de referência; sítios, cenários e actividades onde apetece voltar, uma e outra vez, e isto ajuda muito a fazer cidade viva, variada e estimulante.

Este potencial está aí, para ser usado, em muitos sítios, que há que escolher judiciosamente, mas tem de ser usado: não numa perspectiva amorfa, porque repetida, e até por vezes desagradavelmente uniformizadora e mesmo sem gosto, por exemplo, devido a uma incoerente e maçadora repetição de ofertas de actividades e eventos culturais e conviviais; mas sim e sempre numa opção que em cada sítio deve marcar pela sua originalidade e eventualmente por algumas raízes locais, ou, desejavelmente, por uma afirmada identidade local, que se ligue e tire partido da respectiva paisagem urbana e natural e do respectivo meio socio-ecomómico e cultural e que, mais ainda, tenda a caracterizar-se por uma identidade sociocultural e ambiental específica, associada a um adequado potencial de atractividade e de integração de um equilibrado leque de gostos e actividades.

Ainda relativamente ao potencial de um tal desígnio importa aqui citar, de forma sintética, os aspectos apontados no artigo referido como “pontos fortes” das indústrias criativas em áreas rurais, mas que, aqui, queremos generalizar a qualquer outro espaço territorial urbano ou semi-urbano onde se detectem carências de vitalização e que possua algumas condições básicas estratégicas que possam apoiar o desenvolvimento de um núcleo de indústrias criativas.

Fig. 04


E é do referido artigo de Catarina Selada e Inês Vilhena da Cunha que se citam, como pontos fortes de uma tal incitava os seguintes aspectos: criação de empregos qualificados (e outros complementares); desenvolvimento de novas empresas; activação da ligação aos centros urbanos; promoção de outros sectores com destaque para a o turismo, a hotelaria e a restauração (criando-se interessantes novelos ambientais e funcionais caracterizadores do respectivo espaço urbano e paisagístico); revitalização local com reduzidos impactos ambientais; enriquecimento do tecido social e cultural local por criação de “novas amenidades culturais” e pela (re)activação das “redes sociais e culturais” – sublinha-se que a citação do referido artigo é muito livre e informal e que, aqui, se opta pela possibilidade de aplicação deste tipo de iniciativas não exclusivamente em áreas rurais, tal com atrás se disse.

Ainda numa leitura generalizadora do que Catarina Selada e Inês Vilhena da Cunha referem serem os efeitos das indústrias culturais no meio rural, e, portanto, pensando na influência dessas indústrias em meios urbanos e semi-urbanos, importa citar: a indução de efeitos multiplicadores para o desenvolvimento das economias locais; e o excelente papel “«da criatividade» nas medidas de combate à desertificação e ao despovoamento dos territórios”, que as autoras localizam em meio rural e que aqui se toma a liberdade de aplicar de forma genérica e designadamente a meios urbanos e semi-urbanos desvitalizados e/ou descaracterizados – e esta matéria da influência da “criatividade” na recaracterização de determinadas zonas de cidade e de determinadas paisagens é algo que merece desenvolvimento específico, que se pretende fazer em futuro artigo desta série.

Finalmente, e ainda aproveitando algumas ideias do citado artigo, é claro que determinadas condições preexistentes, designadamente, ao nível da acessibilidade pedonal estratégica e da história local e respectivo potencial de identificação/identidade e de valia patrimonial de espectro razoavelmente amplo, serão, sem dúvida, trunfos importantes no êxito de cada “jogo”, em cada sítio.


Fig. 05


II A cultura como elemento de dinamização da sustentabilidade urbana

Um dia antes do artigo que se acabou de referir e comentar, no mesmo “Público”, um excelente artigo de Abel Coentrão, intitulado “Quando a economia falha, sobra a cultura” (3), abordou uma recente intervenção no Porto de Tom Fleming, onde se apresentaram variadas linhas de saída da crise urbana e social que se vive em muitos pólos urbanos europeus, através do desenvolvimento criativo e mesmo premeditadamente pouco regulado – portanto vivo e expontâneo – de uma grande variedade de pequenas indústrias criativas em meio urbano, mais ou menos denso.

E entende-se aqui a relação directa entre os temas tratados nos dois artigos, e, de certa forma, o reafirmar da ideia que a cultura é um meio excelente e prático de desenvolver a regeneração funcional e social de meios urbanos social e fisicamente deprimidos; e a este importante novelo temático também voltaremos em próximos artigos desta série.

Antes de fazer alguns comentários finais gostaria ainda de realizar uma conexão destas matérias da redinamização cultural como meio de revitalização dos espaços vividos e marcados pelo homem (espaços urbanos e semi-urbanos ou semi-rurais) com as candentes temáticas da sustentabilidade citadina.

Esta relação será objecto de futuro desenvolvimento, no entanto, é muito interessante e há que destacar, desde já, o potencial de ligação entre as matérias da redinamização do tecido urbano e semi-urbano por pequenas indústrias culturais e a implementação de objectivos de sustentabilidade ambiental, social, convivial e mesmo cultural, num novelo de ideias marcadas, entre outros aspectos de qualidade urbana, por: dominância do tráfego pedonal; vitalização e segurança públicas; integração de actividades diversificadas e não-poluentes; desenvolvimento verde urbano; diversidade e interesse arquitectónico; integração de vários grupos socio-culturais; convivência de vários modos de viver a casa e a cidade; e acentuação das formas suaves e eficazes de transportes públicos.

Há que interiorizar que uma coisa é a (re)dinamização cultural de zonas estratégicas das cidades e dos territórios semi-urbanos e outra coisa é a implementação de medidas amplas de sustentabilidade, mas, no entanto, a sustentabilidade cultural é também matéria fundamental e a (re)dinamização cultural é basicamente amiga de espaços pedonalizados, vitalizados por habitação, acessíveis e ambientalmente agradáveis. Portanto há que estabelecer pontes fortes e eficazes entre estes dois tipos de desígnios.

De facto, poder viver num ritmo mais humano, em ambientes mais saudáveis e conviviais, e marcados por perspectivas de sustentabilidade ambiental, tal como é descrito num artigo assinado por Inês Vilhena da Cunha e Kathrin Calhau, intitulado “Vauban e Ballard são realidades de comunidades sustentáveis” (4), ajuda, sem dúvida, a uma predisposição para a cultura e para a arte, e provavelmente o contrário também é verdadeiro e um ambiente marcado pela arte e pelas indústrias culturais será um meio sensibilizador para a adopção de formas de vida e de ambientes globalmente mais sustentáveis.

Fig. 06


III Outros aspectos da aliança entre cultura e regeneração/sustentabilidade urbana

Para desenvolvimento noutras oportunidades apontam-se, ainda, outros dois aspectos importantes: o primeiro é que em tudo isto e designadamente quando se trata de uma inserção de elementos e eventos ligados à arte e ao artesanato, numa perspectiva mais urbana ou mais integrada nos mundos domésticos, é fundamental tudo fazer para se visar e se obter a máxima qualidade global e específica dos conteúdos culturais e artísticos oferecidos, pois não tenhamos qualquer dúvida que uma qualidade “ímpar” e a disponibilização de eventos e conteúdos “únicos” – portanto adequados e criativos e, portanto, não necessariamente dispendiosos e difíceis de assegurar – são condições que caracterizam o único caminho potencialmente marcado pelo sucesso nestas áreas; o segundo aspecto, que se liga, estreitamente com esta matéria é que a opção pela cultura é também, hoje em dia, na nossa Europa, um investimento que já está a resultar e que cada vez mais dará resultados económicos, e sobre esta matéria lembra-se o sub-título do citado artigo sobre Tom Fleming e as suas pequenas indústrias culturais e criativas, que aponta: “Quando a economia falha, sobra a cultura”.

E não é possível deixar aqui de lembrar, bem a propósito, que na União Europeia a cultura contribui mais para a economia do que os automóveis e que, mesmo em Portugal, a cultura é já o terceiro contribuinte para o nosso PIB, tal como é apontado no belíssimo artigo de Joana Gorjão Henriques significativamente intitulado: “É a cultura, estúpido!”
E, claramente, há aqui todo um potencial de crescimento relativo ao multifacetado aproveitamento da cultura europeia em termos de fonte de recursos económicos, que só depende da referida e exigente opção pela qualidade e de uma aliança entre tal opção e uma perspectiva de gradual mas efectiva melhoria da qualidade de vida nas cidades e nas zonas periféricas; pois não fariam qualquer sentido, nem teriam quaisquer resultados sustentados, quer uma qualidade fingida, quer uma qualidade direccionada para os turistas e que esquecesse os habitantes.

Na sequência desta última preocupação termina-se com a indicação da uma abertura, essencial, a uma preocupação de abordagem desta matérias sempre com os habitantes numa perspectiva de grande eficácia participativa, e aqui há que lembrar o enorme potencial oferecido pela cooperação e pelas cooperativas, e, finalmente, conclui-se este texto com uma citação, “de síntese”, retirada da referida “Carta de Leipzig sobre as Cidades Europeias Sustentáveis”, e onde se diz:

“Entendemos que as nossas cidades têm qualidades culturais e arquitectónicas únicas, uma forte capacidade de inclusão social e excelentes oportunidades de desenvolvimento económico. São centros de conhecimento e fontes de crescimento e inovação. Mas, ao mesmo tempo, debatem-se com problemas demográficos, desigualdade social, exclusão social de grupos populacionais específicos, falta de alojamento adequado a preços acessíveis e problemas ambientais. A longo prazo, as cidades não poderão desempenhar a sua função de motor de progresso social e crescimento económico descrita na Estratégia de Lisboa se não conseguirmos manter o equilíbrio social no interior de cada uma e entre elas, preservando a diversidade cultural e fixando elevados padrões de qualidade para o planeamento urbanístico, a arquitectura e o ambiente.”



Notas:
(1) “Carta de Leipzig sobre as Cidades Europeias Sustentáveis – adoptada na reunião informal dos Ministros responsáveis pelo Desenvolvimento Urbano e Coesão Territorial, em 24 e 25 de Maio de 2007, em Leipzig (CdR 163/2007 EN-EP/hlm, 9 págs.).

(2) Catarina Selada e Inês Vilhena da Cunha (colaboração Inteli, Inteligência em Inovação), “A criatividade é um «produto» urbano?”, Público, 4 de Fevereiro 2008.

(3) Abel Coentrão, “Tom Fleming - Quando a economia falha, sobra a cultura”, Público, 3 de Fevereiro 2008.

(4) Inês Vilhena da Cunha e Kathrin Calhau (colaboração Inteli, Inteligência em Inovação) – “Vauban e Ballard são realidades de comunidades sustentáveis”, Público, 11 de Fevereiro 2008.

(5) Joana Gorjão Henriques - “É a cultura, estúpido!”, Público, 16 de Novembro 2006.
Artigo concluído e editado em 17 de Fevereiro de 2008, Encarnação – Olivais Norte, Lisbo

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