domingo, fevereiro 24, 2008

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Paisagem I: sobre a natureza da paisagem

Artigo de António Baptista Coelho


Vamos começar este primeiro número da série sobre paisagens com uma pergunta, e iremos terminá-lo com uma certeza.

“O que é uma paisagem? Uma noção mal dominada da qual o conteúdo varia com os modos de apreensão; um espaço sem escala nem geografia precisas que o homem compõe e recompõe segundo s seus meios e as suas aspirações; um local, um sítio remarcável único pela sua beleza e majestade.

A paisagem pode também compreender-se como uma arquitectura susceptível de ser racionalizada pois, como todas as arquitecturas, aquela dos paisagistas é, simultaneamente, ciência, técnica e arte …”

Foram palavras de Marc Emery (1) no editorial do n.º218 da revista L’ Architecture D’ Aujourd’hui , designada com o título Paysages, e o editorial intitula-se “Uma certa ideia de paisagem”, voltaremos a esta pergunta, assim como ficaremos, no final deste artigo com a excelente resposta de Alexandre Chemetoff, a uma ideia de paisagem, mas desde já se faz um esclarecimento, é que quando aqui falarmos de paisagistas nos referimos a todos aqueles que ajudam a fazer paisagens.



Fig. 01 – paisagem da Beira Alta

Sobre a questão do que é uma paisagem diz-nos Burle Marx (2) que há “duas paisagens: uma natural e dada, a outra humanizada e, portanto, construída”, e avança, ainda, sobre a natureza e a importância da paisagem afirmando que “além das implicações decorrentes das exigências económicas, não nos esqueçamos de que a paisagem também se define por uma exigência estética, que não é nem luxo nem desperdício, mas uma necessidade absoluta para a vida humana e sem a qual a própria civilização perderia a sua razão de ser.” Uma afirmação crucial de Burle Marx, um dos grandes paisagistas do Século XX e um verdadeiro homem de renascimentos e de cultura, que aliou a concepção e a acção directa à reflexão sobre estas matérias.

Burle Marx deixa-nos assim o caminho estruturador neste nosso avanço sobre a natureza da paisagem ao apontar duas paisagens: uma natural e dada, a outra humanizada e, portanto, construída, mas iremos aqui trocar, um pouco, as cartas pensando também, quer sobre como amparar a inelutável humanização de grandes partes de paisagem natural, quer sobre como naturalizar e suavizar a paisagem construída.

Nesta série de artigos, que poderão incluir, espera-se, participações de outros autores, iremos abordar alguns aspectos essenciais numa perspectiva de uma paisagem que se quer recuperada e regenerada e verdadeiramente qualificada pelo e para o homem. Muito há a fazer, grande é o desafio, mas grande também é o prémio que poderemos vir a ganhar com cidades formal e funcionalmente regeneradas em si próprias e na sua integração na natureza e no ambiente natural.



Fig. 02: Alfama, Lisboa

Nestas matérias da paisagem, o desenho da paisagem urbana ou natural é um elemento fundamental.

Sobre o desenho da paisagem urbana nunca é demais lembrar os trabalhos de Cullen e de Lynch (1960) e e sua defesa de uma cidade que tenha uma forte “imagibilidade”, (3) pois “quem sabe se tenha falado muito de forma e pouco de forma na cidade, daquela forma que vai da imagem urbana à imagem doméstica”, tal como defende Gonçalo Byrne (2000) (4):

Já há alguns anos Cullen e Lynch trataram aprofundadamente o tema do desenho da paisagem urbana, Kevin Lynch, repetida e diversificamente, numa perspectiva mais estruturada, que fez a ponte com o desenho urbano que vai até ao desenho do bairro integrado na cidade, assim como vai até aos tempos que se podem e devem expressar nas paisagens urbanas, enquanto Gordon Cullen, essencialmente num magistral pequeno tratado de como ler a paisagem urbana do pormenor (5), reinventou o desenho da imagem urbana verdadeiramente considerado na sua verdadeira importância urbana e de cidade habitada e portanto marcada pelo homem e pelas obras e actividades humanas, uma cidade percorrida a pé, fruída nas suas múltiplas dimensões e assim conhecida nos seus meandros e nas suas múltiplas e ricas variantes.



Fig. 03: azinhaga em Tavira

Lynch estabeleceu bases de estruturação, Cullen preencheu o campo de leitura do tecido urbano com múltiplas, lógicas e sensoriais referências de leitura e de vivência directa. E, já agora, há nesta leitura de proximidade tão cara a Gordon Cullen, uma leitura feita à escala do peão, uma grande e renovada actualidade nas cidades de hoje, que visam tantos critérios de sustentabilidade cívica e ambiental.

E, assim, no caminhar encontramos o “jogo” dos objectos urbanos, tão caro a Cullen e tão afectivo e efectivo, em que, tal como refere Vera Pallamin “cada um dos objetos é tudo o que deles os outros «vêem», pois coexistem num sistema... Ver um objeto, para Merleau-Ponty é vir a habitá-lo e, a partir dele, captar as coisas sob as faces que se lhe apresentam” (6).

Sobre a paisagem natural não falaremos aqui apenas de jardins, mas também falaremos de jardins na cidade, apontando a sua enorme importância em termos de um maior equilíbrio ambiental com reflexos numa cidade que tem de ser marcada por oásis de agradabilidade moderadores do ambiente urbano, mas também em termos de um papel próprio do jardim urbano como local de fuga positiva, de sonho e de aproximação íntima e pessoal à natureza que sempre está em nós, ainda que por vezes longe na memória, mas também local e ambiente de contraponto que nos faça, até, apreciar melhor o meio urbano intenso.

Nesta sequência de artigos falaremos de paisagem urbana e natural, de casos de jardins urbanos que são oásis de natureza numa cidade agreste, oásis inexplicavelmente irreplicados, e falaremos do natural na cidade e talvez da cidade no natural, abordando neste caso um pouco de tipologia do edificado, pois há, realmente, soluções de habitar e urbanas que se caracterizam por assinaláveis capacidades de integração de elementos naturais, enquanto que há casos, quase opostos, de grande dificuldade de integração mútua entre as referidas “duas paisagens: uma natural e dada, a outra humanizada e, portanto, construída”.

E não faz sentido qualquer tipo de antagonismo ou fundamentalismo, nem isso é natural, nem nunca dará bom resultado, ma reconhece-se que exige adequada e exigente capacidade de desenho/concepção, pois correm-se riscos seja de faltas, seja de excessos.




Fig. 04: Amoreiras, Lisboa

Outra coisa que aqui se fará, nesta pequena série sobre paisagens, é citar alguns autores quando falam de paisagens, mais publicas ou mais íntimas e pessoais, mais urbanas ou mais amplas e rurais ou marinhas, e tentar ilustrar essas palavras.

E outra coisa que se fará é mostrar algumas imagens de paisagens e comentá-las com rigor e com sentimento, pois rigor e sentimento fazem parte das paisagens do homem e têm de ser aliados numa paisagem harmonizada.

Será com um duplo exemplo destes que se concluirá este primeiro artigo da série.

Mas antes de um tal remate apetece dizer que esta preocupação com a paisagem e designadamente com a paisagem urbana, num sentido lato e que, portanto, tem de incluir a natureza na cidade, é hoje em dia uma preocupação fundamental para que se possa reatribuir verdadeira atractividade às nossas cidades, uma atractividade culturalmente consistente e sóbria, mas que também possa ser sentida por qualquer cidadão como uma atractividade sua, pois a cidade é provavelmente a mais rica construção do homem e nela ele tem de se rever todos os dias e em vários importantes momentos de cada dia.



Fig. 05: Zona Leste do Parque das Nações, Lisboa

Vamos então dar uma primeira resposta à pergunta feita, no início do artigo, sobre o que é uma paisagem:

“A paisagem não é uma arte. A paisagem não é uma teoria. A paisagem não é uma técnica. Não há paisagem, há paisagens, há jardins, há parques, há pracetas, há pátios, há avenidas com árvores, há praças, há colinas, há vinhas e campos de lavanda.

Há a casa onde nascemos e a língua que falamos. Há uma cultura ao mesmo tempo frágil e tenaz … aquela das paisagens.”


Palavras sábias de um outro grande projectista de paisagens, Alexandre Chemetoff (7).
E vai-se concluir este primeiro artigo sobre as paisagens, um artigo um pouco e premeditadamente caótico sobre um tema tão importante nas cidades de hoje, desde as pequenas cidades ou semi-cidades meio adormecidas, que precisam de vida e de carácter, às megacidades tantas vezes confusas que precisam de alguma paz e sossego e de urgentes elementos de reconciliação com a escala humana e com a natureza.

Falámos um pouco da natureza da paisagem, em geral, e especificamente de alguns aspectos de paisagem urbana e de paisagem natural humanizada, e fecha-se este exercício com a ideia de que mais do que paisagem há paisagens e que estas são muito decididamente paisagens afectivas, sentimentais, radicadas nas memórias e na(s) cultura(s).

Sendo assim temos realmente um verdadeiro “bico de obra” à nossa frente, para tentarmos uma certa refundação do papel e da importância das paisagens numa sociedade que favorece, quase exclusivamente, as avaliações racionais, materialistas e objectivas, todas elas muito pouco adequadas a um tal desígnio, pois: “A paisagem não é uma arte. A paisagem não é uma teoria. A paisagem não é uma técnica.”
E no entanto é tudo isso, e mais, porque:

“... Na cidade tranquila, há um jardim que só os namorados sabem” – Daniel Filipe, em “Discurso sobre a cidade”



Fig. 06: um pormenor do Jardim Botânico na Ajuda, em Lisboa.

E na relação directa com esta imagem e usando a memória da vivência do respectivo sítio e da respectiva ocasião em que este sítio foi vivido, pode-se afirmar que há realmente espaços de jardins urbanos onde, em certas horas do dia, quando conseguimos estar apenas nós e a natureza que ali está, encontramos algo cuja definição é difícil, mas que tem facetas de alegria profunda e calma, de relação com tudo o que vive e é visível e nos rodeia, e tem também aspectos de verdadeira paragem aparente do próprio tempo no sentido de conseguirmos viver plenamente todos aqueles ricos e longos segundos, que acabam por ser muito mais do que instantes; e não é só a natureza viva que nos toca, é também o sentido da beleza da natureza humanizada e ordenada que nos satisfaz intimamente.

Talvez nestes caminhos de verdadeira satisfação natural e estética possamos encontrar boas pistas para a crucial melhoria das nossas cidades e outras paisagens, e sem dúvida que são caminhos fundamentais na batalha urgente que há que começar a ganhar pela re-humanização do nosso grande espaço de habitar.

Notas:

(1) Revista L’ Architecture D’ Aujourd’hui , n.º 218, Paysages, Dezembro 1981.
(2) Jacques Leenhardt, org., “Nos Jardins de Burle Marx”, 1994.
(3) Kevin Lynch, “L'Image de la Cite”, 1976 (1960), p.12.
(4) Ricardo Carvalho, “Estou cansado de falar de forma – entrevista com Gonçalo Byrne”, Público, 16 Agosto 2000.
(5) Gordon Cullen, “El Paisaje Urbano – Tratado de estética urbanística”, Barcelona, 1977 (1971). (6) Vera Maria Pallamin, “Forma e percepção – Considerações a partir de Maurice Merleau-Ponty”, 1996, (p.34).
(7) Revista L’ Architecture D’ Aujourd’hui , n.º 218, Paysages, Dezembro 1981.

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