sexta-feira, outubro 06, 2006

107 - Desenhar com a natureza: a Cidade e o Equinócio de Outono II– artigo de Celeste Ramos - Infohabitar 107

 - Infohabitar 107

Artigo de Celeste Ramos

O país inteiro, de vilas e aldeias, e cidades tão antigas, sempre foi uma grande lição de design with nature (relevo, fisiografia, clima, luz, cor das paisagens, materiais naturais locais, produção de espécies naturais), sabedoria que se perdeu ou se despreza há tão poucos anos apenas por mera arrogância intelectual, não se negando a importância da evolução da modernidade, e mesmo arrojo urbano e arquitectónico, mas sem ter de destruir nem o passado histórico e identitário da civilização que somos e fizemos e pelo mundo espalhámos.

Porque negar a história e a sabedoria antiga é entrar em degradação, pois são valores cósmicos e primordiais que estão em causa, é a vida e saúde colectivas que estão em causa, a cultura, a natureza das coisas, e não esqueçamos a que cotas se situam todas as aldeias à volta da secular cidade da Guarda com uma das Sés-Catedrais mais antigas do mundo, sendo a cidade mais alta do país, rodeada de aldeias às altitudes onde "existia" o castanheiro, que não pára de arder ao longo de décadas e era a riqueza maior, para além dos seus vales cuja agricultura a UE foi obrigando a "abater" ao longo de 20 anos, tendo ainda nesta "rentrée política europeia" sido anunciado pela comissária europeia da agricultura que terão de ser arrancadas, ainda, mais de 400 mil pés de videira.

O que me faz perguntar, "ao vento que passa," se, de novo, a UE vai financiar "tabaco africano", que financiou e mandou arrancar em 2005, financiando agora talvez "cultura" que nada tem a ver (como habitualmente), com as características edafo-climáticas (solo+clima) do país que, mesmo numa região com os solos mais pobres, produz o famoso e tão invejado vinho do Porto, que se pretende "imitar" cultivando-o por aí pelo mundo americano e sul-africano, região por sua vez, a primeira do mundo a ser "demarcada" há 250 anos, tempo em que não existiam ainda muitos países de hoje, ou estavam em guerras intermináveis.



Fig. 1 –Depois da chuva no Porto e em Lisboa (2006.09).

As áreas agrícolas são, para além de independência nacional que não existirá sem independência alimentar, matéria prima de agro-indústria e serviços derivados, são razão de "povoamento" e de descentralização de actividades económicas e, por fim, áreas de turismo rural ou não importa que outra designação, porque é turismo também histórico e cultural e manutenção do património natural e edificado e das paisagens e razão de viver de quem ama a terra e os bens que produz e oferece a mais alta qualidade de alimentos saudáveis.

Alimentos saudáveis estes, que hoje começam a estar na primeira linha das preocupações de muitas pessoas, mais informadas, e que muitos países já não podem recuperar, mas de que França é exemplo positivo de "voltar atrás" à produção ecológica, como era há pouco tempo boa parte da produção agrícola portuguesa, que, ainda em 1986 correspondia a 75% das nossas necessidades, e agora não passa de 20 %, obrigando a importar lixo-comestível, e mais caro – porque tanto em Paris como em Munique, quem for à praça adquire todos os alimentos muito mais baratos do que nos mercados nacionais.

Mercados nacionais que quase só têm produtos importados de vários países e continentes, como se os "produtos agrícolas" e a alimentação pudessem ser passíveis de constituir alguma vez moeda-de-troca-política, situação que tem produzido muita infelicidade nacional, desemprego, miséria e fome, e despovoamento dos nossos lugares, aumentando a alienação das cidades-metrópole e a dimensão anárquica das regiões metropolitanas, sendo que, ao longo do litoral, tão rico em sal, um dos mais preciosos produtos do mar, as salinas foram dizimadas por betão, betuminoso e pontes; e trata-se de uma indústria que é uma das mais velhas do mundo e iniciada em Portugal ainda no Paleolítico.

Valeria a pena aprender – e ensinar – História de Portugal - nas vertentes em que dá, também, dimensão do "país-civilizado" e produtivo, e de variabilidade de manifestações da grandeza da terra-e-dos-homens.

Em 24 de Setembro de 2006, num noticiário televisivo, foi mostrado o aluimento de um talude sobre casas de habitação, devido à queda pluviométrica, em Vila Nova de Gaia. Mas porque se permitiu construir habitação num talude de declive de 30%? Estimativa feita, na reportagem, por um bombeiro, que logo comentou ser o aluimento natural numa área construída em tal declive.

No Outono, graças ao céu e equinócio, é tempo de chuva, bem-vinda para regar a terra e preencher toalhas freáticas no espaço rural e urbano, para alimentar os rios e barragens, chuva que reclama sempre o lugar que lhe convém, e deita abaixo o que estiver, erradamente, no seu caminho e, como é sabido, maior rigor é cada vez mais necessário para planear e construir, já que as alterações climáticas mundiais não são "balelas dos alarmistas ecologistas", mas vivemos num país de total ignorância e desprezo intelectual das coisas da terra e do clima, e do ordenamento do território, um país que confia completamente na engenharia do muro de suporte de betão, dos espigões e pontões, e, assim, as inundações e os aluimentos serão cada vez mais frequentes e mais graves.

Se o Outono poderá ser o "tempo-de-exame" do que o homem faz relativamente ao espaço que a água reclama, se a água não entrar na terra nos seus lugares naturais, logo virá o Verão que reclamará outro "exame" aos actos dos homens que, tendo aumentado por suas mãos as razões de maior secura da terra, em que o calor responderá com fogo devastador porque onde há fogo é porque não há água na terra, sejam quem forem os "incendiários.”

É preciso saber "desenhar" permitindo "guardar", ao máximo, a chuva que se preveja possa cair na terra, na estação da chuva, e construir onde não se põe em perigo a vida, os bens privados e públicos, as economias, a beleza das paisagens e o trabalho dos que sabem o que fazem, porque as más consequências que começam, sempre, por atingir os mais desvalidos. E passou há pouco tempo na SIC, depois do noticiário, uma interessante série sobre as consequências das alterações climáticas mundiais em vários países do mundo, incluindo "civilizados" e como "já se lamentam" alguns dos que acharam que "isso de desgraça que cai do céu é coisa de pobre."

Outono é tempo de respeito pela água da chuva e pelos lugares que lhe pertencem naturalmente e pelas formas de a "receber", em vez de lhe tentar "fechar a porta"; tentativa esta que acaba por a abrir, implacavelmente.

Outono é tempo do planeta manifestar o respeito pelo direito a formas e fases de morte das coisas da terra e seus habitantes naturais, uns que morrem porque acabou o seu ciclo de vida, outros que iniciam a segunda das suas grandes migrações anuais, nos rios e nos mares, na terra e nos céus, anunciando a entrada do silêncio e do descanso da natureza que vai culminar no solstício de Inverno.

Já todas as plantas se esgotaram na sua dádiva faltando muito poucas as que irão ainda dar fruto no Outono e Inverno como as romãs e as castanhas, os citrinos lá mais para o fim do ano, e mesmo as rosas ou as camélias rainhas-do-inverno, pois que cada espécie tem o seu tempo cósmico de maturação biológica e de manifestação para regalo do homem, repetindo o tempo de novas sementes para caírem na terra para despertarem na estação própria para que foram programadas.

E, nesta matéria, embora os cientistas tenham recriado artificialmente tempos e velocidades de cultivar e de fazer amadurecer plantas e mesmo animais – a forçagem e mais recentemente a clonagem –, através de processos derivados da engenharia genética e de utilização de novos produtos químicos – paralelamente com a criação de espaços físicos e técnicas de aceleração da produção, contudo conduzindo a qualidade altamente duvidosa, incluindo os sabores que são quase exclusivamente químicos, afectando a saúde dos homens, em França, como se referiu, já se começou a "voltar atrás" ao processo ecológico de produção, sobretudo dos produtos alimentares, por já se terem percebido as consequências desastrosas, em saúde pública, a que aqueles caminhos conduzem.

No Outono a terra já está exausta e seca porque o verão a secou, e, como os homens e animais, precisa de descansar para ser preparada para as sementeiras de Outono, sem no entanto nunca dar descanso ao jardineiro e ao semeador logo que apareçam as primeiras chuvas outonais que tudo limpam e amaciam os solos que anunciam avidez de água e de vida.

Agora é outro tipo de omnipresença das forças da natureza – força da noite – que se vai manifestar em outra luz e outra cor, e outros perfumes, e a pouco e pouco vai prevalecendo a noite até que calor e frio sejam iguais em temperatura, para finalmente predominar o frio que anuncia o pleno Inverno no solstício, e dar lugar a novo virar de ano civil e sideral e "nascer outro ano", nascer "outro Sol" pelo Natal, que significa exactamente "novo sol."


Fig. 2 – Depois da chuva em Vouzela e em S. Pedro do Sul (2006.09).

E logo que alguma chuva caia, cheira a terra molhada que ainda quente exala perfumes diferentes provocados por tudo o que a terra ainda e sempre contém, renovando para nós outras memórias dos sentidos que a natureza continuamente acorda e recorda em ciclos constantemente repetidos, para que o homem não se distraia.

Acabaram as férias dos homens que culminam quando culmina o sol e o calor, embora a pouco e pouco as sociedades evoluam também no sentido de fazer férias repartidas porque a natureza é de tal modo diferentemente bela ao longo das estações, que se iniciou, igualmente, o hábito das férias de Inverno e de neve – ou mesmo as férias ao longo das quatro estações do ano, bem como férias para aqueles que, como as aves migradoras, têm possibilidades económicas de perseguir a rota do sol e do calor, onde quer que haja por todo o Planeta ao longo das 4 estações, onde as há, ou nos locais onde só há duas estações climatéricas – a das chuvas e a do cacimbo como em África – porque é ainda outro o clima na Ásia das Monções.

E porque foi generalizado e democratizado o acto de se ter direito a férias não importa para que classe social ou etária, ajudado pela criação do subsídio de férias de invenção francesa (1936), todos os lugares estão no Verão cheios de multidões a ponto de reverter em tempo de stress o que deveria ser tempo de prazer.

E começa assim um novo ciclo de usar as paisagens para o prazer (loisir) e aquisição de cultura sem esforço, partilhado pelas classes etárias que já têm outra velocidade de viver e mais tempo para tudo contemplar mais profundamente, até porque alguns já estarão reformados, e também no "outono da vida", que valorizam melhor o que a vida dá, que já não têm pressa e não correm à procura da vida, descobrindo um ritmo de viver em que o interior e exterior se harmonizaram no prazer e sabedoria de viver em espécie de tempo-interior-equinocial e por isso a sua pele envelhece, mas não o brilho e luz do seu olhar.


Fig. 3 – Depois da chuva em Copenhaga (2004.08)

E porque todos os actos dos homens começam a ser mundializados, e porque todos querem visitar e confrontar-se com todos em todos os lugares, também se diversifica o período anual de férias e de desporto internacional e de treino de desportistas de alta competição, que assim aproveitam não só as diferenças climáticas de cada país, como todo o equipamento turístico que ficava vazio quase todo o ano, permitindo a continuidade do rendimento económico e a conservação de tão belos espaços que para o recreio, desporto e turismo se construíram sobretudo no pós-boom turístico dos anos 60 do século passado, ritmo interrompido pelo tempo de duas grandes guerras mundiais – que fizeram parar o mundo inteiro –, mas tendo a Europa recuperado económica e culturalmente, o turismo recomeçou para não mais parar e se generalizar a todos os continentes, porque a Europa era o motor e a referência do desenvolvimento económico e cultural mundial, palco e espelho do que de melhor o Homem tinha alcançado.

Mas já não é. Hoje temos a Europa "plastificada", arrogante intelectual e tecnologicamente, com valores morais tecnicistas quanto ao que consideram a vida e a morte dos homens, com fobia do seu passado judaico-cristão que estruturou a mente e comportamentos, xenófoba (lembremos os resultados de 24 Setembro 2006, da votação de todos os Cantões suíços em 70% contra a nacionalização dos emigrantes que a ajudam a ser próspera) e em parte responsável pelo contínuo saque das matérias primas que tem dizimado, até ao deserto total e miséria, sobretudo a África e a Ásia, causando as alterações climáticas mundiais, sem nada dar em troca (resoluções e convenções da ECO-92 metidas na gaveta), para que os países "desenvolvidos" transformem essas matérias primas e os façam "países civilizados."
Mas dizem "os cientistas" que a Terra só tem 10 anos para parar o saque pois que se chegará ao limite do irreversível, não para os países pobres, mas para todo o planeta .



Fig. 4 – Depois da chuva no Luxemburgo, 2005.08

Com o turismo resultou melhor distribuição de pessoas e de rendimentos, bem como de actividade para os agentes de turismo, mas para o turismo proporcionar cultura ele tem de cooperar na manutenção da cultura e do património natural e edificado, mantendo-se a "sua verdade" civilizacional. O Algarve é disso grande exemplo, mas pela negativa, na medida em que o aspecto cultural foi completamente negligenciado, não apenas com a construção das unidades de complexos turísticos nos locais menos apropriados – areais e ilhas-barreira que protegem a zona costeira das investidas do mar, dunas e falésias de frágeis arenitos (alguns fossilizados), áreas agrícolas de alta produção e qualidade –, mas também pelo abandono de estações arqueológicas, de monumentos e de património construído e pela destruição da malha urbana secular, num excesso incomensurável de alienação irreversível de um local que nos anos 60 era denominado Éden, pelo turista, espaço nacional que além do mais tem clima específico que permite o recreio em qualquer mês do ano.

Tudo em troco apenas de multidão que procurou tudo, mas só encontrou alojamento massificado e de arquitectura estandardizada e de grande incomodidade visual, de estradas que em vez de unir, separam e retalham territórios naturais e edificados, que divorciam cada vez mais o Litoral do Barrocal e da Serra, as três grandes zonas ecológicas algarvias.

Será também interessante relembrar como nasceram novos desportos, sobretudo de Inverno ou de todo o ano, através dos mais jovens que de geração em geração romperam com o pré-estabelecido e que se viraram para os parcos espaços públicos ao pé da porta com o seu skate em acrobacias radicais, ou para mais longe - o mar - fazendo surf e wind-surf, ou o body-board que da praia transportaram para a neve com novas acrobacias de grande beleza e destreza.

Os jovens descobriram de novo as montanhas e inventaram o parapente e o rappel - desportos que iniciados inocentemente em cada local deram origem muito rapidamente à sua globalização até à organização de competições internacionais, constituindo hoje uma corrente de deslocações e de encontros ao longo de todas as estações do ano, que por sua vez fizeram dar mais atenção à agricultura e gastronomia, fizeram nascer novos serviços e indústrias de equipamento e de vestuário desportivo de grande beleza e criatividade, conforto e até segurança.

Mas o desporto não se generaliza a toda a juventude especialmente os adolescentes que sofrem de iliteracia motora, termo técnico utilizado por um professor universitário de que li entrevista, mas não consigo referenciar o seu nome, já que desde bebés são transportados por seus pais desde o jardim-de-infância até terem o seu próprio transporte privado em idade extremamente jovem, aos 18 anos, em que ainda todo o seu desenvolvimento físico e biológico está em mutação, nunca andam de transporte público nem a pé e a sua alimentação é da pior qualidade conduzindo a que haja um milhão de crianças com obesidade mórbida e com doenças parasitas como diabetes e outras derivadas da falta de esforço físico que os privou de mens sana in corpore sano, pois que tanto a cidade sem locais de desporto formal ou informal gratuito inteligentemente implantados ao nível de cada bairro, como as escolas, não têm como disciplinas obrigatórias as ligadas à boa formação do corpo físico que vai incidir sobre a "preguiça intelectual" e má prestação escolar e mesmo violência gratuita por falta de formação de disciplina física e psíquica da qual resulta responsabilidade individual para com a sua saúde global, sendo vítimas da cidade do facilitismo e imobilidade, porque a cidade já se interessa pouco tanto pela qualidade do espaço urbano como menos ainda pelos seus habitantes; e tudo isto num país em que todo o ano o clima permite não importa que desporto de ar livre.



Fig. 5 – Parapente, nas falésias junto à praia.

Que país tão pequenino mas tão rico, e no entanto tão desbaratado.

Deu-se origem a novas motivações de deslocação que se integram em mais uma razão de fazer recreio e turismo não importa em que lugar e estação do ano.

De repente, e só muito recentemente, tornou-se mais evidente para os agentes económicos do Turismo, que o turista procura (mas sempre procurou), mais do que sol e mar, porque quer encontrar marcas da história e da cultura dos locais que a identificam, embora inequivocamente tanta procura continue ainda a confundir os que têm o poder de decisão e estão do lado da oferta e da capacidade de controlo do ordenamento do espaço turístico.

É disso exemplo o caso recente ao ter sido anunciada a decisão, por exemplo, de destruir em Faro um belo teatro construído em 1916, para no seu lugar erigir um supermercado para vender mercearias e outras coisas do quotidiano, apondo-lhe várias salas indistintas sem proibição de comer pipocas, decisão que nada tem a ver com cultura, mais uma vez confundindo-se gesto privado em espaço público com os desperdícios privados, mais um equívoco do estádio de incultura e de superficialidade em que o país mergulhou profundamente de norte a sul, a partir sobretudo da década de 80 do século que acaba de passar, essa década devoradora dos espaços mais belos, seja urbanos seja rurais, seja litorais selvagens ou mesmo áreas protegidas, património da humanidade e que não deram nem mais valia cultural nem de civilidade.

O Património de qualquer lugar por mais arcaico, ou simples, ou diferente, é por todas essas razões, e sempre, património global universal; é identidade, verdade e força de ser. A destruição das coisas e dos lugares só por si conduz à desertificação cultural e humana, sem se saber prever que gestos virão a seguir, na juventude que tem de olhar para se identificar e existir e ser parte da identidade sociocultural nacional: e olhar um pôr-do-sol de Outono num belo lugar devia ser importante não importa para quem.

O recreio urbano uniformizou-se e limitou-se muito à noite das discotecas, e se a Vanessa conquistou o seu 12º título de campeã mundial do Triatlo (com 21 anos) e a preparar-se para as Olimpíadas de Xangai, repare-se quem são seus pais, humildes rurais, sem qualquer "atributo" que os identifique como "habitantes da cidade com tudo o que uma cidade dá", como se se fosse obrigado, mais uma vez, a pensar na degradação de qualquer valor (trazido do campo) e que ao chegar à cidade-metrópole, desaparece e degrada.

Mas o campo não ardeu já todo?
Não se degradou já todo?
Não foi já todo abandonado?

É inteligente reordenar acções e comportamentos que conduzem à utilização e conservação continuada dos espaços e das paisagens e dos seus valores naturais e adquiridos, elas em si mesmas páginas de livro de leitura dos gestos dos habitantes no seu diálogo com o meio ambiente habitado de gestos culturais ancestrais; e são muito diferentes os gestos actuais traduzidos na forma como os que são responsáveis tratam as paisagens e valorizam os factores da natureza que acrescentam qualidade à terra e aos homens mas que parece não terem (ainda) interesse algum.

Outono hino à luz e à cor e ao tempo de férias, de recreio e desporto, e de viagem, que da primeira feita pelo homem como caçador para sobreviver, passou para o homem caçador-de-imagens e emoções dos mundos desbravados, para acrescentar o seu saber sobre o habitar de todos os homens com o tempo e beleza, e diferença, oferecida por cada estação do ano.
Poderia, e deveria ser, viver a estação climaticamente observando os elementos da natureza, sem acusar a chuva de ter volume fenomenal provocando enxurradas catastróficas e danosas para pessoas, bens e animais, pensando em qual a percentagem de culpa que cabe ao projectista e às diversas entidades que, para se construir o que foi proposto, ignoram as consequências, consciente ou inconscientemente, relativamente aos locais que pertencem à água; já que há quem até desvie pequenos e grandes rios que, mais cedo ou mais tarde, acabam por reclamar o leito natural.

Ao encanar-se não importa que ribeira de pequena ou grande dimensão, como ao impermeabilizar-se o que deve continuar permeável, está-se a fazer "deserto" biofísico, em vez de considerar o ribeiro como área-colectiva e desenhar convenientemente o projecto de drenagem das águas pluviais, para o que não bastam "sumidouros."
Ao haver uma enxurrada, a água está, precisamente, a "ensinar" o homem que o seu esquecimento e distracção têm um preço.

Design with water - design with rainfall, é um conhecimento primário e diário dos denominados países desenvolvidos que amam as suas paisagens e, no entanto, há uma década que se vêm debaixo de água, só porque cortaram a floresta em excesso para agricultar e construir; floresta responsável pela absorção das quedas pluviométricas, pela absorção do CO2, pelo filtrar das poeiras, pela produção de oxigénio e pela manutenção da fauna e biodiversidade, para além de reguladora climática. Hoje, após alguns anos, não têm onde se esconder e fugir da água e, como dizia alguém em reportagem da BBC, exibida na semana passada na TV2, "nós não temos medo da energia atómica, não temos medo da guerra, temos medo da água", será dito em breve por toda a Europa, pelo menos.

Hoje, cada vez mais, qualquer projecto de ocupação do solo é interdisciplinar e não pode ignorar a interdisciplinaridade e a presença do arquitecto-paisagista, a única profissão que prepara o "olhar de não importa que paisagem" com sentido holístico, que não dá sabedoria a quem apenas papagueia conceitos.



Fig. 6 – olhar a paisagem urbana e natural no Sítio da Nazaré.

Os problemas têm de ser encarados com dignidade e não omitidos “e esperar que logo se vê", já que não há, igualmente, consciência do que é "área non aedificandi", a não ser as que estão listadas num qualquer DL, pois há situações que só o especialista sabe ver para além das que são seguidas pelos projectistas "by the book", pois que sendo a paisagem um texto legível, como texto manuscrito de alguém de ilegível caligrafia, assim são, também, as paisagens, e ninguém reclama a profissão de ninguém sendo que os saberes estão de tal forma desenvolvidos que ou há interdisciplinaridade acrescentando qualidade ao produto final, ou continua-se a trabalhar em "guetos intelectuais", e a natureza não está muito preocupada com essa situação, pelo contrário.

É uma questão de lentidão de mudança de mentalidade pois que em tudo o que é português impera a lentidão, excepto na invasão do betão e betuminoso e, assim, no aumento de área impermeável; e isto mesmo em passeios de peão de pedra natural, porque nenhum técnico prescinde do "cimento" mesmo nesta situação, impedindo que seja pavimento semi-permeável, para além de se tornar mais macio para a marcha para que sejam mais músculos a trabalhar na deslocação e não sempre os mesmos, se o pavimento for rígido.

As pedras dos passeios de peão assentam-se em terra, só terra, ou areia, ou areão, mais nada, sendo que os mais belos passeios de vidraço que foram criados há 2 séculos, são mais antigos do que o cimento. E com a falta de áreas de jardim, cada vez é mais distante a relação de área impermeável – área permeável, e a cidade fica reduzida a uma laje contínua de betão e de betuminoso, quem sabe para o automóvel poder, ainda, estacionar no passeio.

Automóvel que levou a que todas as ruas de todas as cidades do país fossem cobertas de betuminoso, acumulador de calor insuportável que, por sua vez, faz emitir partículas cancerosas adicionadas às que são erodidas pelos pneus e ao material dos próprios pneus que, igualmente, se desfazem com a idade do automóvel tornando a atmosfera das cidades irrespirável e insalubre. Mas convidam-se os leitores a ver alguns noticiários e a olhar o chão de outras cidades europeias, e lá se verão pavimentos de cubos de granito, tantas vezes renegados em Portugal em nome do automóvel e da menoridade estética e, por fim, do desamor ao peão.
Convida-se quem gosta de conhecer “Aldeias Históricas” de ruas de cubos de granito, passeios de peão de calcário e milhares de esplendorosas árvores de folha perene, e caduca, a que visite Nelas e logo verá o que foi aqui apontado sobre qualidade do ambiente urbano para o peão e saúde do habitante - é de facto uma Vila exemplar.

Não esqueçamos as catastróficas enxurradas de 1983, e mais recentemente, as de 2001 e, a estas, seguiu-se uma era de fogos imparáveis, cada vez mais catastróficos já que não se foi acumulando água no solo e tal que, acompanhado de ano de grande secura maior do que o habitual, se tornou o país inteiro no fogo de um inferno dantesco, em 2003 (lição magistral da natureza, independentemente da existência de "incendiários"); fogo que não pára e é cada vez mais brutal, apesar da satisfação governamental, porque em 2006 ardeu muito menos do que em 2005.

Porque, afinal, Outono é também tempo de enxurradas e de aluimentos, dentro e fora da cidade, podendo dar origem nas áreas metropolitanas, como é o caso sobretudo do Porto, mas também de Santarém, a verdadeiras catástrofes humanas que destroem bens e também vidas, como nas enxurradas de Novembro de 1983, catastróficas para todo o país, mas piores na Área Metropolitana de Lisboa, e ainda as últimas enxurradas em 1991.

Os habitantes da borda dos estuários de grandes rios estão sempre em alerta sendo que os acidentes são tanto maiores quanto os erros humanos praticados a montante dos rios e seus afluentes, com implantação de não importa que projecto que vai alterar a circulação da água superficial e mesmo subterrânea.

Se há enxurrada é porque essa água não é infiltrada, pelo menos no volume próprio da capacidade de absorção do solo, e do lugar, e se assim for a terra que a não recebe inunda, enquanto não expele o excedente para os efluentes; sendo que no Verão a terra está tão seca que não é difícil arder a vegetação seca de Verão, também porque não há ninguém no campo, e não são os bombeiros nem o destruir de centenas de hectares para traçar novos caminhos todos os anos, sem plano nem critério, mas chamando a todos "aceiros", para passarem e atingir zonas em fogo, nem as roças excessivas dos matos, também sem plano nem consciência, que vão resolver o que quer que seja.

Design with the water, design with the rain fall ou, de forma, mais ampla, desenhar com a natureza, é, também, um item fundamental de planeamento e de projecto, acompanhado de inteligente projecto de drenagem, que não se compadece com encanar ribeiras ou ignorar a sua existência, sendo que as enxurradas vão ano a ano "ensinando" como fazê-lo, sendo que a obrigação de considerar as "áreas non-aedificandi" não é suficiente, mas sim há que estudar e realizar "carta de condicionantes" da área de projecto e área envolvente.

E em 2007 veremos, pois que há 20 anos que o cenário é o mesmo tendo havido tempo de sobra para resolver a situação e se os orçamentos autárquicos são insuficientes, que se recorra ao voluntariado, porque já são até crianças muito jovens que limpam, em cada Verão, as lixeiras dos areais de muitas praias de Portugal, mas com planeamento feito por técnicos especialistas, para que tudo não seja inútil e irresponsável relativamente à generosidade dos cidadãos que não sabendo fazer podem aprender e transmitir não importa a quem.

Já está no “osso” todo o espaço físico português e basta olhar o que sucedeu ao Alentejo de onde o vento arrancou, por ano, mais de 100 toneladas de terra-viva (valor avançado já há uma década por Carlos Pimenta), porque a vegetação florestal também desapareceu ano a ano mesmo protegida por lei, e praticamente nenhuma área regenera em menos de uma década, e só se tiver terra-viva, e não for já só “pedra”.

Enxurrada + fogo + enxurrada + fogo + enxurrada + fogo, e não há mais nada (a não ser o vento) e, à semelhança do país vizinho, que se apressou a limpar o material queimado das matas ardidas e a usá-lo para protecção e formação de taludes artificiais, para conter chuvadas e minimizar deslizamentos e erosão pela água e pelo vento, o país que habitamos "deixa andar" e logo se verá.

Então esperemos para ver.

Outono, dará descanso também ao FOGO mas não dará descanso à ÁGUA.

Outono – preparação para o silêncio do Inverno – poderia ser também tempo de meditação para o TODO do que se é e tem sido quanto ao destino a dar à Cidade e ao Campo.

"A faculdade de criar nunca nos é dada sozinha. Ela anda sempre acompanhada do dom da observação ." Igor Stravinsky (1882-1971).

Maria Celeste d'Oliveira Ramos
Lisboa – Bairro do Alto de Santo Amaro
21 Setembro 2006, definitivo em 25 Setembro 2006
Fotos MCOR, excepto fotografias de parapente e da Nazaré de ABC.

Revisto para edição por António Baptista Coelho, em 4 de Outubro de 2006.
Edição de José Romana Baptista Coelho, em 5 de Outubro de 2006

2 comentários :

Anónimo disse...

(Tinha escrito um comentário e, creio, ter lido um outro... mas curiosamente acho que me enganei, ou o meu comentário perdeu-se ou não sei onde vi o outro. 'Coisas' da internet!). Achei este texto mais assertivo que os anteriores, na capacidade de reflectir, de forma integrada, sobre territórios multifacetados. Aqui revaloriza-se extraordinariamente a função dos espaços rurais e critica-se uma massificação que, sob um modelo de turismo, vicia as especificidades locais a uma oferta de lazeres homogeneizados. Tal é o prenúncio da globalização... Também seria interessante avaliar a eficiência das medidas de restrição à mudança do uso do solo ou das formas de 'protecção' da natureza em Portugal (natureza muitas vezes 'gerida' por directores de parques ou áreas protegidas em total divórcio face às tradições e aspirações das populações locais, populações que são olhadas com sobranceria e arrogância totalitária: a defesa da natureza tem que se inserir na defesa das paisagens humanizadas, e não pode realizar-se com posturas geocráticas (1)). Mas como sempre (mesmo em época outonal) Celeste Ramos brinda-nos com a esperança sábia de que é possível fazer (a) cidade habitada e amigável. [João Lutas Craveiro].
(1) Vários estudos sociológicos atestam este divórcio entre os 'protectores' da natureza e as populações locais. Ver, p.ex., o artigo de Elizabete Figueiredo, «Proteger o ambiente em Portugal? De quem? Para quem e para quê?», publicado aqui:
http://www.aps.pt/vcongresso/ateliers-pdfs.htm

Anónimo disse...

Olá dr.joão Craveiro,
um dos cravos de abril, quem sabe, que me tocou com as suas generosas palavras de oiro puro, sobre a luz do meu equinócio que, mais um dia, o de hoje de festa do 96º ano de república, iluminou o mundo do "norte" com a luz fria de lua cheia, "aço e prata de luar" em céu negro e limpo, a anunciar tão precocemente o Verão de São Martinho que depressa virá, para nos lembrarmos das romãs e das castanhas e do vinho novo e da matança do porco, e de toda a riqueza derivada desta cultura que ainda conserva com tanta integridade a tradição que o Campo criou e de que a cidade beneficia tão descuidada e distraidamente, cidade que vai embrutecendo e, se calhar, até a matança, considerada "cruel" pelos desenvolvidos, estará em vias de extinção, também porque o economicismo leva a que os bácaros já começassem há muito a ser vendidos, muito jóvens, para "jambóm"

Platero y yo, lembro ainda que era um livro pequenino e de capa azul e desenho naíf, foi o meu primeiro livro de universitária ainda adolescente, levou-me pela mão para descobrir sem mais parar, o caminho da grandeza e variabilidade da cultura não apenas portuguesa mas a universalista dos anos 60 de que a música fazia parte integrante incluindo o Jazz ( já que acabava de ser criado por Villas Boas o Hot Club), em lisboa vivida colectivamente com as tertúlias do Vává e Copacabana, de entre outros, onde se estudava ao longo de todo o ano, e não apenas em vésperas, todos os saberes universitários de matérias ministradas por "mestres", lugares de encontro-colectivo e de intercâmbio inter-faculdades, forma tão simples e mesmo lúdica de aprender o que cada um podia abarcar, sem se confinar a um único "curso", cidade de alegria e de trabalho para a juventude inteira, mas que são hoje mega-ambourgers'houses, porque o plástico invadiu a actualidade sem critério, já que não se soube acrescentar nada ao pré-existente e, como tudo em Portugal, apenas substituir, não deixando "memória" para ser continuada, mesmo com plástico, que muitas virtudes tem com certeza mas que mal se vê e, por outro lado, mesmo com clima de calor e sol, o hábito de praia ainda não estava instalado e, assim, a cidade não se esvaziava dessa vida estudantil, parando só em agosto para se ir "à terra" , para além de nos deslocarmos sempre em eléctrico, que cruzava toda a cidade, nele lendo "O Eléctrico" de Gomes Ferreira, livrinho igualmente pequeno e gentil para ler nas curtas viagens, andando-se tanto a pé, que não havia tempo nem oportunidade de criar "gordura-mórbida", porque se fazia exercício, porque a alimentação era saudável e os alimentos não eram nem de plástico nem transgénicos - vinham da Zona Saloia de Lisboa os frescos e as primícias, a fruta, a carne de bovino e de aves, os ovos e a roupa lavada no Rio em Caneças

Mas não se estudava apenas nas sebentas e nos livros escolares "recomendados" - estudava-se poesia e filosofia (e Fernando Pessoa já estava em moda), discuti-se e interpretava-se, e tantas coisas intra-faculdades, discutindo-se também politica de ensino porque se rejeitava que a "cabeça fosse reduzida a um sanita" para encher de não importa o quê e como, e se preparava assim o difícil abril 1962 vivido por todas as universidades do país, pré-monitório do maio 68, que os nossos "intelectuais" actuais teimam em esquecer porque "68" é que é, esquecimento que talvez não interesse ou porque "furaram as greves" ou por outra razão qualquer, e já vem de muito longe que "lá fora é que é bom" e é referência de todas as coisas, existindo-se apenas para os Descobrimentos e o 25 abril e, o resto, é um grande VAZIO intelectual, económico e sociológico porque, àparte isso, o passado para além de se abater ou deixar ruir programadamente, entulha-se de betuminoso e de betão, em ambas as MARGENS do Tejo, pelo menos, agora, porque há 50 anos, um dos mais belos passeios era tomar o Cacilheiro, atravessar até Porto Brandão ou outro lugar, não sair do barco, e voltar e, pelo caminho, ver os golfinhos a saltar e gigantescos bandos de gaivotas a perseguir as traineiras de de pesca que entravam na barra vindas do mar, estando as mulheres já na Lota para comprar, e vestidas a rigor de fato de trabalho, encher as canastas e pô-las à cabeça protegida com uma "rodilha" e ir para a rua vender peixe a cheirar a mar, com os seus pregões que já se foram há muito.Parece que passaram séculos - só passram 50 anos

Esse caminho aberto pelo burrinho Platero que os árabes nos legaram, foram o suporte do mais duro trabalho do homem para trabalhar a terra e o transporte de todos os bons produzidos (ainda recebi em lisboa o pão, o leite e os legumes, e o petróleo e na praça da Figueira a bosta de burro era quente e cheirosa) até à traccão mecânica durante alguns séculos, está hoje em vias de extinção porque são, neste tempo em que tudo é descartável, como até os homens já são, sobretudo os velhos, já que se há 50 anos, a esperança média de vida não passava dos 63 anos, hoje já pode ultrapassar os 83
É longo o meu agradecer-lhe porque longo é o caminho que me obrigou a rever e sentir, de 50 anos de vivência e constatação de tanta transformação, nem todas para melhor, só porque me falou no Platero y yo
Sim eu também sei que o Deus dos cristão fez o universo e lhe deu o Sol e fez-se luz, e lhe deu as estrelas para iluminar a noite e o sol ser, à noite, apenas uma estrela que não se distingue das outras, e fez a terra para cultivar mas teve de criar também a água para a fertilizar e o primeiro Homem - Adão-Abrahaão - para a habitar, e vendo que estava muito sozinho lhe retirou uma costela e dela fez Eva e os pôs no Paraíso com a árvore da abundância e a serpente da sabedoria para se crescer em consciência
Sim todas as religiões falam da natureza, mas falar não chega porque o homem peca por "pensamentos+palavras+ obras" e a respectiva omissão, e vejamos como o mundo está tão SUJO e maltratado, e não há religião que lhe valha, a não ser a cultura-consciência, porque é só pela cultura que o homem se salva, e não pelo crescimento económico, tão orquestradamente confundido com "crescimento" que, afinal, tanto "decresce", e nem sequer é preciso ser, nem religioso nem culto, nem letrado, para constatar isso, basta ser sensível e atento à vida

Abençoado progresso, mas não a parte de essência identitária de que quem governa se envergonhou e não soube re-vivicar e revitalizar, e abateu e deixou morrer, decepando a cidade de tanto que hoje seria motivo de riqueza e de diferença e de turismo mundial, de riqueza cultural e qualidade de vida e orgulho do habitante de uma cidade VIVA e coerente com as suas colinas, o Rio e a Outra Margem, os usos e costumes e a tradição secular
MCd'OR-lisboa-santo amaro-5 outubro 2006