segunda-feira, dezembro 26, 2005

60 - O ESPÍRITO DO LUGAR - Dois artigos gémeos de Celeste Ramos e Baptista Coelho - Infohabitar 60

 - Infohabitar 60





1º Artigo – da desintegração dos lugares à urgência da reconstituição do "espírito do lugar" e aos caminhos a seguir


“Hoje fala-se muito de alienação... a ecologia humana faz salientar o resultado alienante de uma experiência comum nos nossos dias: a perda do sentido de lugar. Nos últimos 100 anos e especialmente a partir da última guerra mundial os lugares sofreram um processo de desintegração. Começaram a perder uma delimitação bem definida em relação à paisagem próxima e envolvente” (Christian Norberg-Schulz).

Quando Charles Moore escreve sobre o “desenhar do acto de habitar”, diz-nos que uma “uma habitação deveria ser o centro do universo para as pessoas que a partilham”, lembra-nos que “as aldeias de que todos gostamos ofereciam aos seus habitantes cinco benefícios: segurança, privacidade, sociabilidade, justiça e um local ligado à memória”, mas afirma que, naturalmente, “as novas aldeias não podem simplesmente duplicar as antigas”, pois “devemos aprender a desenvolver limites, para suscitar um sentimento de segurança, centros, para promover sociabilidade, organização, para proporcionar um ordenamento claro e atraente, e apoiar activamente os fundamentais aspectos do civismo e da privacidade, e ícones e ornamento, para suscitar uma forte ligação à nossa cultura” (tradução bastante livre para tentar respeitar a força das ideias do autor).

E Moore salienta, ainda, que ”depois, é preciso ter a energia e o conhecimento para fazer em conjuntos residenciais, portanto numa escala urbana significativa, aquilo que isoladamente, ou em pequenos grupos se consegue já fazer” (refere-se a todos esses aspectos de humanização e caracterização), e termina afirmando que esse objectivo “é naturalmente muito difícil.”

Começou-se este pequeno texto sobre aquilo que é provavelmente um dos mais importantes aspectos do habitar urbano, o respeito e o trabalhar com o espírito do lugar, com a lembrança que o desenhar do acto de habitar tem de ser feito na constante e intransigente conquista de um leque de qualidades essenciais e, se nelas atentarmos, verificamos que todas elas colaboram na construção do espírito do lugar. Realmente, limites, centros, organização e ícones, são matéria do espírito do lugar.

Mas falta um ingrediente básico, que é o próprio lugar, o próprio sítio, o quadro de proximidade e de paisagem com que todos aqueles vectores de projecto se deverão fundir, em harmonia e no serviço a um partido que resulte numa valorização de cada sítio e de todos os sítios pelos homens habitados e marcados.

E aqui é John Ruble que nos ajuda, quando nos diz que o mais importante valor de uma casa é a sua wohnqualitat, a sua qualidade de casa, qualidade esta, que ele sublinha reflectir-se na importância de se usar plenamente o sítio e as suas adjacências para criar um ambiente de vida específico e bem positivo, pois, tal como ele salienta, “cada aspecto do planeamento de pormenor do sítio – vistas, jardins, a localização do jogo e do recreio, a sequência de chegada – acrescenta uma dimensão vital à vivência em densidade e contribui para o sucesso ou insucesso da criação de um sítio de comunidade.”

O que Ruble acrescenta, e muito bem, à construção de um espírito do lugar feito com o lugar e naturalmente com o seu espaço público, é esse aspecto, tão importante, que é o fazer-se um sítio de comunidade.

Temos, assim, um espírito do lugar, bem humanizado, em harmonia com o sítio e ao serviço da comunidade. E temos praticamente tudo o devemos ter pois desta forma, através da (re)descoberta do espírito de cada lugar os seus habitantes muito ganharão em sentido de pertença e de responsabilidade.




Afinal vale sempre a pena ter presente que:

“... A arquitectura é um fenómeno concreto. Ela abarca paisagens e ocupações humanas, edifícios e conjugações caracterizadas. Portanto, uma realidade viva.
Desde tempos remotos a arquitectura tem ajudado o homem a dar sentido e significado à sua existência. Com a ajuda da arquitectura ele conseguiu marcar uma posição no espaço e no tempo.
A arquitectura preocupa-se portanto com algo mais do que necessidades práticas e economia. Ela refere-se a conteúdos e significados existenciais. Os conteúdos e significados existenciais resultam de fenómenos naturais, humanos e espirituais, e são experimentados como ordem e carácter.
A arquitectura traduz estes significados através de formas espaciais. As formas espaciais em arquitectura não são nem Euclidianas nem Einsteinianas. Em arquitectura as formas espaciais significam lugar, caminho e domínio, isto é, a estrutura concreta do ambiente humano.
Por isso a arquitectura não pode ser satisfatoriamente descrita através de conceitos geométricos e semiológicos. A arquitectura deveria ser entendida em termos de formas significantes. E como tal fazendo parte da história dos significados existenciais.
Hoje em dia o homem sente uma necessidade urgente de reconquistar a arquitectura como um fenómeno concreto. O presente livro pretende ser uma contribuição para se atingir este objectivo.”

(Texto de Christian Norberg-Schulz, no Prefácio do seu “Meaning in Western Architecture”, Studio Vista, Londres, 1986)

Lisboa, Encarnação/Olivais.Norte, Dezembro de 2005,
António Baptista Coelho



2º Artigo – a subjectividade materializada pela criatividade e sensibilidade do projectista que é desafiado pelo próprio "espírito do lugar"


Não é linear encontrar definição para o que se entende por "espírito do lugar" porque se por um lado há características essencialmente concretas e objectivas, há, por outro, espaço para a subjectividade materializada pela criatividade e sensibilidade do projectista que é desafiado pelo próprio "espírito do lugar", o que não quer dizer que duas pessoas de idade e formação diferentes não possam, igualmente, ter propostas muito diferentes de "ocupação do espaço" com igual qualidade.

Para o projectista que tem em mãos a proposta de um projecto seja de um objecto simples de grande volumetria, incluindo o de uma estrada, ou de habitação a inserir no tecido urbano existente ou fora dele, ou de um grande conjunto habitacional, a análise do local será o primeiro passo a dar.

Mas que local é este, que informação me dá para que o que vier a ser construído seja dialogante com as características e condicionantes da paisagem e a humanize sem dissonância?

A geologia e geomorfologia, a história e a geografia, a ocupação vegetal natural e cultivada, a natureza do solo e o seu passado de ocupação, a tradição e a envolvente e ainda o clima e a luz, bem como a "cor da paisagem" são, de imediato, factores de ponderação, sob pena de se inserir um "objecto" ou corpo estranho àquele conjunto de situações.




Se um agricultor olhar uma "paisagem" e se o tempo tiver sido mais seco do que o habitual, vai com certeza afirmar que a seara não será tão grada, enquanto que um pintor, mesmo sem reconhecer que plantas lá estão, poderá extasiar-se com a cor e volumetrias, com a luz e formas e movimento, como se "o mesmo lugar permitisse várias leituras" e, ambas válidas, assim como o escultor pode ver na montanha esquálida e descarnada, a beleza quase interior das pedras que lhe convém para a sua obra de arte, podendo mesmo apreciar essa "ferida" da montanha.

Também um automobilista, que domina bem o carro que conduz, pode afirmar que a estrada que segue é fantástica, mas poderá não ter aptidão e informação para concluir se o local de implantação é inapropriado por ter decepado um território cujo valor botânico, científico e ecológico e mesmo paisagístico, entrou em degradação irreversível, e que a estrada, à luz do espírito do lugar, poderia e deveria ter sido traçada noutro lugar.

Quem é responsável por qualquer projecto que implique ocupação do solo de forma a alterar-lhe o uso irreversivelmente, como é o caso do arquitecto, neste momento em que o planeta já reage de forma tão brutal à acumulação do erro humano, terá cada vez mais de se rodear de uma equipa interdisciplinar para que a sua "ideia" se integre no LUGAR sem mais danos e possa mesmo ser "reparadora" do local porque, como a habitação, também a paisagem demolida pode ser restaurada e reconvertida, já que sempre o homem pode corrigir os seus próprios erros.


O homem criativo e sensível e bem informado olha e lê num local o que dele poderá ou não fazer, como se pudesse falar com as árvores, com o rio e com a montanha, com a cor do céu e a luz, até porque nasceu e cresceu com esses "haveres" num local qualquer e se por momentos pensou que tudo estaria sempre ao seu "serviço", cedo se apercebe de que é exactamente o oposto e que a natureza e o "espírito do lugar" lá estão a mostrar-se para serem vistos.

Lisboa, Bairro.de.Santo.Amaro, Dezembro 2005

Maria Celeste d'Oliveira Ramos


Fotografias de A. B.Coelho (por ordem de apresentação): a zona Leste da Madeira; pormenor de preexistência, jardim e edifício de habitação com projecto dos Arq.os Artur.Pires.Martins e Palma.de.Melo em Olivais N, Lisboa; porta de casa em Azambuja.

O Infohabitar deseja o melhor 2006 aos seus colaboradores e aos seus leitores, com muita saúde e felicidade. Em 2006 poderão contar com a continuidade das edições semanais da nossa revista/blog e nós desejamos poder contar com a continuidade e, muito especialmente, com a dinamização da vossa leitura e participação.
Um óptimo 2006 para todos.

A edição do Infohabitar

1 comentário :

Emaris disse...

Gostei dos artigos, pois estou fazendo Mestrado em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal Fluminense (UFF)/Brasil e minha dissertação trata de uma área central do Rio de Janeiro que considero como um não-lugar recheado de potencialidades para tornar-se um lugar. Espero trocar idéias à respeito. Atenciosamente.