Infohabitar,
Ano XVII, n.º 792
Edição:
terça-feira, 21 de setembro de 2021
Estimados leitores,
Chegou a altura de escrever, com tristeza, mais algumas daquelas palavras que ninguém, nunca terá vontade de escrever, mas que importa serem escritas e ficarem registadas;
e quem vai
acompanhando os nossos artigos semanais, que têm sido divulgados já há mais de
17 anos, na nossa Infohabitar, aqui encontra uma secção temática intitulada de
“registo e memória”, onde vão surgindo pequenas e informais memórias sobre
amigos e colegas que já partiram; e quando, por variadas razões, revejo esses
pequenos textos, confesso que o faço, sempre, com uma dupla emoção de natural
tristeza e profunda saudade, mas também de uma quase “alegria” por poder estar
a sentir, naqueles momentos, intensamente, a memória bem viva daqueles amigos.
E as
palavras tristes que aqui se escrevem registam o falecimento de um dos
fundadores da GHabitar APPQH – “antigo” Grupo Habitar – associação que baseia o
nosso blog/revista:
o Arquitecto
Duarte Nuno Simões (1930-2021) faleceu;
À família
enlutada a GHabitar, os seus corpos sociais, os seus associados e a Infohabitar
registam, aqui, os seus sinceros sentimentos; mas o Duarte Nuno estará, sempre, connosco e
quem com ele teve o privilégio de conviver sabe que o Grupo Habitar e a
Infohabitar sem ele teriam tido muito menos sentido.
O Duarte
Nuno Simões foi um meu velho amigo, no sentido de ter tido a honra de o
conhecer há cerca de um quarto de século, havendo uma significativa diferença
de idades entre nós os dois; mas isso não prejudicou, de nenhuma forma, a
nossa amizade.
Devo também
referir que devo ao Duarte Nuno importantes aprendizagens, pois ele é/era
alguém de grande humanidade, amplos conhecimentos e um muito agradável sentido
de conversação, de bom-senso e de convívio; e foi com ele que comecei a
interiorizar a real, profunda e diversificada importância da habitação no fazer
de uma cidade verdadeiramente culta e civilizada.
Quanto à sua
afirmada qualidade como Arquitecto Projectista, os diversos e numerosos prémios
obtidos pelo seu atelier – desde há alguns
anos coordenado pelo seu filho Nuno Simões – e, mais do que isso a “simples”
visita às suas obras falam por si: pela qualidade apurada do desenho, pela
sensibilidade das propostas, pela sua amigável e ampla escala humana e pelo seu
sóbrio e digno protagonismo urbano; e quem quiser ter uma ideia sobre este
excelente percurso profissional e cidadão poderá consultar a referência
editada, sobre o Duarte Nuno Simões, pelo Centro Nacional de Cultura:
https://www.cnc.pt/duarte-nuno-simoes-1930-2021/
Para se concluir
este registo a Infohabitar irá reeditar, em seguida, depois de um pequeno
enquadramento, um artigo do Arquitecto Duarte Nuno Simões, divulgado no n.º 129
da Infohabitar em março de 2007 já numa versão ilustrada de uma outra edição de
6 de setembro de 2004.
Uma imagem de tantas e tantas possíveis e de grande memória: o amigo e colega Duarte Nuno Simões, no centro da imagem, falando em representação da Ordem dos Arquitectos no grande Prémio INH/IHRU; onde na sequência de sistemáticas visitas a conjuntos de habitação de interesse social recém-acabados, se faziam únicas sessões de debate “público” entre os membros multidisciplinares do Júri e os representantes dos respetivos projectistas, promotores, construtores e mesmo, por vezes, habitantes.
Passa-se, então, a palavra ao bom amigo Duarte
Nuno Simões, através da divulgação de um seu artigo,
elaborado, há alguns anos, em forma de texto de análise, e referido ao conjunto
habitacional promovido pela Câmara Municipal do Porto no Monte de São João,
Paranhos, Porto, projectado pelo Atelier do saudoso Filipe Oliveira Dias, com
projecto dos Arquitectos Rui Almeida e Filipe Oliveira Dias, conjunto este que
foi Prémio do Instituto Nacional de Habitação de Promoção Municipal em 2004
(INH) – actual Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) –, prémio
este que foi atribuído pelo júri anual, multi-institucional e multitemático do Prémio INH, onde marcou
presença, durante bastantes anos, como representante da Ordem do Arquitectos, o
Arquitecto Duarte Nuno Simões.
Sublinha-se
que a verdadeira leitura desta análise só ficará completa com a visita a este
conjunto de realojamento, visita esta que vivamente se recomenda, no entanto o
texto incide seja sobre vários aspectos da desejável “fusão” entre a qualidade
arquitectónica e a qualidade residencial, seja sobre os modos que podem e devem
ser seguidos para um melhor conhecimento das obras arquitectónicas e
residenciais, seja também sobre importantes aspectos elementares do próprio
desenho da arquitectura urbana; e sobre todos estes aspectos é muito rico o
texto que se segue, com o os qual todos ganharemos a partir de uma leitura e
reflexão cuidadas.
E não seria
preciso, mas aponta-se, de qualquer forma, o que se julga ser a muito oportuna
e mesmo didáctica divulgação deste tipo de análises teórico-práticas de
habitação de interesse social, procurando avançar sistematizações de uma
essencial, embora sempre pouco concretizável ou dificilmente abordável
qualidade arquitectónica, positivamente ambivalente em termos da qualidade do desenho e de uma assinalável satisfação dos respetivos moradores, textos estes que se julga assumirem um
muito especial valor quando desenvolvidas por Arquitectos projectistas muito qualificados e
premiados, e que associem a esta muito importante faceta do “bom desenho” da Arquitectura,
uma outra julgada também essencial faceta cultural e humanística, tal como
sucede plenamente, no caso do colega Duarte Nuno Simões e que aqui fica bem
evidenciada no texto que se segue.
Refere-se ainda que, provavelmente, em breve, iremos ter aqui, na Infohabitar, um ou mais artigos sobre obras habitacionais do atelier do Arq.º Duarte Nuno Simões,
atualmente coordenado pelo Arq.º Nuno Simões.
Lisboa,
Encarnação/Olivais Norte e Azambuja/Casais de Baixo, 21 de setembro de 2021
António Baptista Coelho
Fig. 01
O conjunto de habitações sociais do Monte de São João, um texto de análise de Duarte Nuno Simões – infohabitar # 792
O conjunto
de habitações sociais do Monte de São João, ultrapassadas as primeiras
impressões de claro agrado, revela uma grande coerência quanto aos objectivos que
parece terem norteado os seus autores.
Como
todas as obras de qualidade o conjunto não revela de imediato os seus
“segredos”, antes apela ao nosso interesse em descobri-los, ou seja, de aceitar
o jogo de desvendar o que, estando patente, não podemos de imediato,
conscientemente, ver…
Fig. 02
Da
arquitectura deste conjunto dir-se-á que recusa o auto-comprazimento pela forma
como fim último e seu principal objectivo. Aqui a arquitectura assume a sua
condição mais nobre de espaço da vida dos homens , onde o livre espraiar dos
afectos e da solidariedade entre vizinhos será possível. Tal como foi concebido
este conjunto não se fecha autisticamente sobre si próprio, antes estimula o
encontro, a troca, a convivência dos moradores não podendo prescindir, também,
do interesse pelos valores formais, aqui postos ao serviço de uma proposta que
assume, deliberadamente, a construção do espaço dos homens, sua finalidade
última e imprescindível.
Então a que
valores formais me refiro?
Antes de mais
à escala do conjunto, à clareza da imagem proposta, ao tratamento dado à praça
interna, mas também à simplicidade dos elementos arquitecturais,
independentemente da sua importância e à existência de funções complementares
integradas no conjunto edificado.
A recusa do modelo do grande bloco em altura, parede intransponível, objecto-obstáculo no qual as pessoas, os moradores, tendem a isolar-se umas das outras, originou um conjunto cujos elementos se desmultiplicaram em vários volumes, articulados em “três blocos que parecem oito”, como dizem os seus autores. Estes ao desconstruirem o modelo do grande bloco, propõem-nos um conjunto à nossa escala, uma arquitectura surpreendentemente jovem e afável. “Três blocos que parecem oito” testemunha a consciência da importância e do empenhamento dos seus autores de resolverem o problema da escala do conjunto, tomado o homem como referência, assumindo também conscientemente a continuidade da memória da cidade feita de edifícios que, sucessivamente, se encostam a outros edifícios, dando origem a praças e ruas.
Fig. 03
Refira-se também
a clareza com que o conjunto se apresenta a quem desprevenidamente o veja: oito
blocos que afinal não são senão três e que determinam e abraçam uma praça
interna, organizada em dois níveis principais, tema originador de grande parte
da riqueza espacial do conjunto, caracterizado por uma aparente e deliberada
simplicidade dos elementos vários que o compõem.
Cada um dos três blocos é servido por uma escada e
um elevador e tem, em cada piso, uma galeria coberta que dá acesso a quatro
fogos. Ora, a opção pelo uso de galerias não é inocente: é que as galerias acrescentam
à sua função imediata de acesso às habitações, aquela outra de se constituírem
como elementos de animação, de sinal de vida do conjunto e também como espaços
de transição entre os interiores das habitações, quadro da privacidade das
famílias e a praça interna quadro possível das mais variadas formas de
sociabilidade dos habitantes.
Fig. 04
Por isso, pelo
discreto e imprevisível espectáculo que as galerias podem suscitar, as suas
guardas não se constituíram como defesas opacas, antes protecções que assumem a
transparência garantida pelos painéis de rede metálica.
A praça interna, evolução dos antigos logradouros
privados dos quarteirões urbanos tornada aqui espaço comum, é um dos elementos
que melhor caracterizam, conceptual e formalmente, o conjunto do Monte de São
João. De facto, a praça tem todas as condições para estimular e servir de
suporte a modos de conviviabilidade entre os habitantes e até entre estes e os
habitantes das proximidades. Pense-se como as crianças poderão usar a praça em
segurança para os seus jogos e nos contactos que elas induzirão entre os
adultos seus familiares!
Fig. 05
Outra das
características do conjunto corresponde à simplicidade do desenho dos seus
elementos mais significantes como sejam as janelas, as guardas das galerias, os
óculos que iluminam e assinalam as escadas, a elegância das entradas dos três
blocos, a organização dos vários elementos que integram a praça interna e,
ainda, o desenho das entradas de luz da garagem colectiva, sem esquecer o
cuidado posto na pormenorização dos interiores dos 55 fogos e dos vários
equipamentos que integram o conjunto: um ATL, a sede da associação de moradores
e da administração do conjunto e três fracções comerciais.
Não gostaria, também, de deixar em claro dois
aspectos que considero muito significativos da minúcia e cuidado com que este
conjunto foi projectado e realizado. Um, as paredes de fundo das galerias,
pintadas cada uma com sua cor pastel, criam uma referência facilmente
apreensível sem prejuízo da unidade do conjunto. O outro, a ligeira inclinação,
que as afasta de um aparente paralelismo, das paredes dos corpos avançados que
rematam os dois blocos e que assinalam a articulação entre os níveis da praça
interna: não sendo paralelas, como parecem, as referidas paredes reforçam a
continuidade da praça, delimitada e definida pelas frentes que sobre ela abrem,
sendo assim a unidade do conjunto salvaguardada e reforçada.
Fig. 06
Tudo aqui
transmite-nos uma sensação tão evidente de agrado que um esforço de análise
mais apurado do que o que tentei pode parecer inútil ou mesmo fastidioso. No
fundo ele não vai acrescentar grande coisa ao prazer sentido: tenho presente a
reacção de pessoas tão diferentes de formação e, até, de geração como a dos
elementos do Júri do Prémio INH 2004 que não se eximiram a espontaneamente
manifestar o seu agrado pelas características observadas deste conjunto de
habitações sociais.
Fig. 07
Toda a verdadeira arquitectura – a verdadeira, aquela que não só parece, mas que é – é um labirinto, convite não só à curiosidade mas à necessidade da descoberta. E o visitante, qual novo Teseu a quem Ariana deu outra vez o prudente fio, poderá encontrar o caminho da saída, daquilo que, escondido, se encontra bem à vista: o caminho de um maior entendimento.
A arquitectura não pode
prescindir da sensibilidade nem da inteligência de quem a imagina. Mas uma e
outra têm que ser acrescentadas pelo talento. Só assim se garantirá a passagem
de um nível honesto mas banal para o desejável grau superior da verdadeira
arquitectura assumindo-se então a sua vocação de obra de arte, de contribuição
cultural, de marca significante do tempo em que vivemos. Todas essas qualidades
o conjunto do Monte de São João no-las revelou.
Lisboa, 06 de
Setembro de 2004
Arq. Duarte Nuno Simões
Texto ilustrado e revisto para
reedição em 2007-03-07 e agora novamente reeditado, com uma introdução
específica, em 2021-09-21; fotografias de António Baptista Coelho
Notas editoriais gerais:
(i) Embora a edição dos artigos editados na Infohabitar
seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar
assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico e
científico, as opiniões expressas nos artigos e comentários apenas traduzem o
pensamento e as posições individuais dos respectivos autores desses artigos e
comentários, sendo portanto da exclusiva responsabilidade dos mesmos autores.
(ii) No mesmo sentido, de natural responsabilização dos
autores dos artigos, a utilização de quaisquer elementos de ilustração dos
mesmos artigos, como , por exemplo, fotografias, desenhos, gráficos, etc., é,
igualmente, da exclusiva responsabilidade dos respetivos autores – que
deverão referir as respetivas fontes e obter as necessárias autorizações.
(iii) Para se tentar assegurar o referido e adequado nível
técnico e científico da Infohabitar e tendo em conta a ocorrência de uma
quantidade muito significativa de comentários "automatizados" e/ou
que nada têm a ver com a tipologia global dos conteúdos temáticos tratados na
Infohabitar e pelo GHabitar, a respetiva edição da revista condiciona a edição
dos comentários à respetiva moderação, pelos editores; uma moderação que se
circunscreve, apenas e exclusivamente, à verificação de que o comentário é
pertinente no sentido do teor editorial da revista; naturalmente , podendo ser
de teor positivo ou negativo em termos de eventuais críticas, e sendo editado
tal e qual foi recebido na edição.
O conjunto de habitações sociais do Monte de São João, um texto de análise de Duarte Nuno Simões – infohabitar # 792
Infohabitar
Editor: António Baptista
Coelho
Arquitecto/ESBAL – Escola
Superior de Belas Artes de Lisboa –, doutor em Arquitectura/FAUP – Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto –, Investigador Principal com Habilitação
em Arquitectura e Urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil
(LNEC), em Lisboa.
Revista do GHabitar (GH) Associação Portuguesa para a Promoção da Qualidade Habitacional Infohabitar – Associação com sede na Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica (FENACHE).
Sem comentários :
Enviar um comentário