Novos comentários sobre a qualidade arquitectónica residencial
Melhor Habitação com Melhor Arquitectura XI:
A privacidade arquitectónica no habitar - II
Artigo de António Baptista Coelho
NOTA IMPORTANTE: POR SE TRATAR DE UM ARTIGO COM MAIS DE 20 PÁGINAS FOI DIVIDIDO EM DUAS PARTES TENDO SIDO EDITADO NA PASSADA SEMANA E COM EDIÇÃO CONCLUÍDA NA PRESENTE SEMANA, JUNTANDO-SE UM ÍNDICE PARA ORIENTAÇÃO DOS LEITORES:
A BOLD/NEGRITO A PARTE DO ARTIGO EDITADA ESTA SEMANA.
Habitação e Arquitectura XI: A privacidade arquitectónica no habitar- Parte II
Índice
1 - Entre privacidade e convivialidade, um equilíbrio vital
2 - Sobre a natureza da privacidade arquitectónica residencial
3 - A estruturação da privacidade: velhas e novas ideias
4 - A privacidade, da habitação, à vizinhança e ao bairro
5 - A privacidade arquitectónica residencial ao nível urbano: como base de concepção tipológica habitacional
6 - A privacidade nos espaços domésticos e edificados versus a espaciosidade nos espaços públicos
6.1 - A privacidade nos espaços públicos
6.2 - A privacidade na vizinhança de proximidade e na relação desta com os edifícios
6.3 - A privacidade nos espaços edificados
6.4 - A privacidade nas habitações
7 - Carácter e importância específica da privacidade
8 - Notas de reflexão e para desenvolvimento sobre a privacidade arquitectónica residencial
6 - A privacidade nos espaços domésticos e edificados versus a espaciosidade nos espaços públicos
A privacidade tem naturalmente uma expressão significativa ao nível dos espaços domésticos privativos, e nestes, especificamente, nas zonas de quartos de dormir, associando-se neste caso a variados aspectos de conforto ambiental, designadamente, em termos de isolamento de ruídos e de controlo de acessos e de vistas potencialmente intrusivas.
Uma outra importante dimensão da privacidade doméstica prende-se com o relacionamento entre fogos e entre estes e espaços comuns do edifício e espaços urbanos contíguos; salientando-se os aspectos de controlo visual e de acesso e também os aspectos de isolamento sonoro.
Ao nível urbano a privacidade assume, essencialmente um carácter de definição articulada de territórios de vizinhança semi-públicos e que, consequentemente, acabam também por serem semi-privados do condomínio ou conjunto de condomínios; mas que esta afirmação não seja mal entendida como defesa do condomínio privado, este terá com certeza o seu lugar, mas estão aqui a comentar-se qualidades residenciais de arquitectura urbana e esta não se pode construir com este último tipo de condomínios, sendo perfeitamente possível garantir um equilibrado sentido de posse territorial e uma certa envolvência protectora sem se excluir a possibilidade de penetração pública, que, de certa forma, pode ser positiva e “ambientalmente” controlada, através de uma forte relação de contiguidade e proximidade entre espaço público e vãos domésticos e mediante uma escala de intervenção humanizada, que faça relacionar, muito directamente, determinados espaços públicos a determinados conjuntos de habitações, numericamente reduzidos e com presença evidenciada (ex. Quarteirões da Coohafal na Madeira, Quarteirão unifamiliar em Telheiras).
Tudo isto nos encaminha para a excelente possibilidade de podermos usar e habitar intensamente os espaços públicos da cidade e ao fazê-lo marcando-os, de certa forma, com algum sentido de “privacidade”, numa perspectiva de uso individualizado e caracterizado, seja mesmo individual, seja “individualizado” como apropriação por parte de um dado grupo de habitantes relativamente reduzido e conhecido.
E não tenhamos dúvidas de que habitamos, ou deveríamos habitar, verdadeiramente, troços estruturantes da cidade, e assim julgam-se bem oportunas as palavras de Elias Canetti, quando este escritor refere que: “para nos sentirmos confiantes numa cidade estranha precisamos de um espaço fechado sobre o qual exerçamos um certo direito e onde possamos estar sós... Nada, como desaparecer num beco sem saída, nada como ficar parado diante de um portão, do qual guardamos a chave no bolso... Entramos na frescura da casa. Fechamos o portão atrás de nós. Está escuro e por instantes nada vemos... Mas rapidamente recuperamos a visão. Avistamos então as escadas de pedra que conduzem ao andar de cima, e onde encontramos um gato. Gato que incarna o silêncio pelo qual ansiávamos. E ficamos-lhe gratos por estar assim tão silenciosamente vivo.” (3)
6.1 - A privacidade nos espaços públicos
Ter privacidade nos espaços públicos é ter aí uma relativa capacidade de isolamento, de sossego e de contemplação, eventualmente, da natureza, por exemplo num banco público recolhido mas não segregado (excessivamente isolado e até inseguro).
Mas uma tal capacidade de relativo isolamento também se pode exercer sobre a própria animação urbana, por exemplo, num recanto de uma esplanada bem localizada ou mesmo através de uma “montra” de café (ex., Alvalade). E é também possível numa pequena bancada em que se assiste a um jogo amigável ou através de pequenos percursos de passeio em zonas verdes fisicamente marginais ou até polarizadoras (ex. Olivais Norte).
Afinal e quase em “contra-senso” acabamos por localizar diversas possibilidades de privacidade em pleno espaço público; e não será este um dos segredos da riqueza do meio urbano? Mais uma forma de acentuarmos a diversidade e a surpresa num meio agradavelmente uniformizado ou ordenado (ordenamento e diversidade, ordenamento e surpresa).
6.2 - A privacidade na vizinhança de proximidade e na relação desta com os edifícios
Ao nível urbano a privacidade assume, essencialmente, um carácter de definição articulada de territórios de vizinhança semi-públicos, caracterizadamente residenciais e intimistas, porque claramente associados a determinados e bem delimitados conjuntos habitacionais; e mais uma vez se sublinha que esta “boa delimitação” nada tem a ver com a definição de condomínios privados, pois este além de delimitarem excluem todos os citadinos do seu uso, com excepção dos próprios habitantes do respectivo condomínio.
E é na relação estreita, tantas vezes de continuidade, entre edifícios e exteriores por eles demarcados ou mesmo “abraçados”, que se podem desenvolver excelentes condições de privacidade no exterior, numa condição cuja ambiguidade será sempre factor de reforço do seu efeito, numa situação que podemos ilustrar com uma imagem de “O jardim secreto” , de Frances Hodgson Burnett (4): “ Depois entrou e fechou-a atrás de si, olhando à sua vola, ofegante de emoção, espanto e alegria. Estava dentro do jardim secreto. Era o sítio mais doce e misterioso que se possa imaginar. Os muros altos que o cercavam estavam cobertos com os troncos sem folhas das rosas trepadeiras ... Realmente, era diferente de qualquer outro lugar por ela visto até então. – Está tudo tão silencioso! – murmurou. – Tão silencioso!”
E muito haverá a dizer sobre este sentido de secretismo e de silêncio, quando aplicado ao exterior: trata-se, muito provavelmente, de toda uma outra dimensão praticamente inexplorada no que se refere a uma verdadeira qualidade do habitar e à habitação “para todos”.
Fig. 12
6.3 - A privacidade nos espaços edificados
A privacidade nos espaços edificados é aquela que, habitualmente, se considera como sendo a única privacidade residencial, mas, como tem sido apontado, ela corresponde apenas a uma parte, embora importante, da privacidade no habitar.
Ter, ou não ter, privacidade nos espaços comuns do edifício é uma opção que se faz no próprio desenvolvimento dos respectivos espaços comuns e das relações de visibilidade mútuas que são possíveis entre as habitações do edifício e relativamente aos espaços públicos contíguos e próximos, dependendo de aspectos de morfologia urbana e, naturalmente, da escolhas das tipologias de acessos comuns dos edifícios e da pormenorização dos vãos domésticos e abertos em espaços comuns; havendo, por exemplo, situações em que a fruição do ar livre e da comunicabilidade com os espaços públicos justifica galerias de acesso exteriores.
E há grande diversidade de situações possíveis: tipologias de espaços comuns; orientação de espaços domésticos; e tipologias de espaços exteriores de vizinhança de proximidade.
Fig. 13
6.4 - A privacidade nas habitações
Ao nível do espaço familiar e relativamente ao exterior público, a espaços comuns do edifício e a outros fogos, a privacidade é, naturalmente, uma qualidade essencial, que pode ter, no entanto, agradáveis excepções, com privacidades filtradas ou direccionadas, em zonas exteriores privativas térreas ou elevadas, ou através de zonas comuns bem desenhadas que podem até, por exemplo, simular o urbano a uma escala mais privada (ex. galerias/ruas de acesso a fogos e espaços comuns exteriores bem delimitados e de protecção térrea).
Salienta-se, ainda, que este nível de privacidade tem fortíssimas implicações ao nível da morfologia e arquitectura urbanas, sendo, infelizmente, frequentes as soluções que não cumprem realmente adequadas condições de privacidade mútua.
Ao nível do interior da habitação a privacidade, como a convivialidade, deve ter “santuários” perfeitamente protegidos, assim como espaços ou recantos onde seja possível estar mitigadamente “sozinho” ou acompanhado; e, tal como no caso deste tipo de convívio doméstico, há que trabalhar bem os respectivos aspectos funcionais, dimensionais e de conforto ambiental, até porque as novas funções domésticas o exigem claramente, seja em termos de se facilitarem as actividades domésticas correntes, seja no suporte a “novas” actividades domésticas com forte cariz individual e privatizados.
Esta última matéria tem um claro expoente no trabalho profissional em casa, realizado num “recanto” ou num “escritório doméstico”, actividade cada vez mais frequente, muito facilitada pelos novos meios informátivos e de comunicação, mas que exige naturalmente fortes condições de privacidade e mesmo de alguma (ou total) autonomia.
No que se refere ao interior doméstico há que repensar a influência que os novos modos de vida e de uso da casa podem ter na organização e na caracterização dos fogos; e nesta matéria, que exige uma eficaz actualização de estudos, é muito provável que se chegue a uma renovada importância de cinco aspectos, ainda muito pouco frequentes nas soluções habitacionais disponibilizadas, seja “de interesse social”, seja de “mercado livre”:
• A cozinha-espaço de família considerada como pólo doméstico funcional e de convívio – assim apontada no Magazine L’ Express, por Monique Eleb, em 1998 (5); mas para tal há que dotar a cozinha de adequadas condições espaciais, funcionais e ambientais.
• A inexistência de uma rígida e gradual hierarquização de privacidades: desde a entrada na habitação até à designada “zona de quartos”; sendo a alternativa uma organização interna passivamente adaptável.
• A relativa ou mesmo total autonomização de um quarto/”suite”, que pode ser um espaço de prática profissional.
• A multifuncionalidade dos espaços de circulação.
• A adaptabilidade na compartimentação, por escolha, por exemplo, entre uma sala-comum maior, ou mais pequena e mais um quarto.
• A renovada importância de um exterior privativo com verdadeiras valências domésticas.
Fig. 14
7 - Carácter e importância específica da privacidade
A privacidade é uma qualidade cuja subjectividade é fortemente aparente, pois decorre de relações de visibilidade mútua e de distância inter-pessoal com eventuais reflexos directos, por exemplo, no afastamento entre edifícios e na respectiva pormenorização arquitectónica, o que basta para fazer salientar a sua importância.
Tal como se referiu, logo no início desta reflexão, a privacidade e a convivialidade são aspectos fortemente complementares no contexto residencial e urbano, e que interagem muito positivamente, numa gradação de territórios e de limiares, desde a cidade animada e anónima ao recanto individualizado e apropriado, de onde até pode ser possível observar calmamente a cidade animada; esta é uma possibilidade motivadora e importante desde que se baseie numa clara possibilidade de escolha: sítio mais animado; sítio mais vicinal; sítio mais sossegado, íntimo e apartado/autonomizado.
Fig. 15
8 - Notas de reflexão e para desenvolvimento sobre a privacidade arquitectónica residencial
Em termos de reflexão geral apuram-se, para já, os seguintes aspectos.
Esta reflexão sobre “a boa privacidade” individual doméstica, pode ser, de certa forma, estendida e ampliada ao que se poderá entender por uma boa privacidade da totalidade do espaço doméstico, relativamente a outras habitações e a espaços públicos envolventes; uma privacidade da totalidade do espaço/unidade “fogo”, que ultrapassa claramente os simples aspectos de proximidade ou mesmo intrusão visual ou física, pois aqui devemos tratar e incluir matérias como a diversidade tipológica, a relação interior/exterior, a marcação e identificação de vãos exteriores, a escala e a possível/desejável humanização das soluções edificadas e a própria expressão da presença/identidade de cada unidade habitacional.
Nesta perspectiva podemos, talvez, afirmar, que determinadas soluções urbanas e habitacionais cuidadosamente constituídas, configuradas e pormenorizadas poderão propiciar proximidades visuais e físicas entre habitações, que resultam em relações de privacidade mais positivas e bem toleradas, do que outras soluções urbanas e habitacionais, até, eventualmente, mais espaçosas e, mutuamente, mais desafogadas/separadas, entre habitações, mas produzindo efeitos finais em que a respectiva falta de privacidade é mais sentida como aspecto negativo na vivência diária local e portanto pouco tolerado e até potencialmente gerador de insatisfação residencial crítica.
E a própria questão do espaço mínimo tem muito a ver com uma expressiva humanização do habitar, directamente relacionada com a ergonomia e o sentido de “espaço concha” ou “espaço toca”, tendo assim a ver, indirectamente, com um sentido lato de privacidade, ligada ao assumir da casa como “segunda pele”, ou a “casa caracol”, referida por Amália Rodrigues, “restituindo-se à casa e ao habitar um papel especial, de pausa e de silêncio, que se traduz num espaço mínimo voluntariamente racionalizado”, tal como defende Alessandra Segantini (2004) (6). Matérias estas que terão de ficar para outros desenvolvimentos, mas que, desde já, se comenta, exigirem excelente Arquitectura, caso contrário mais vale ficarmos pelas receitas tipológicas consolidadas.
Em termos dos desenvolvimentos considerados mais interessantes nestas matérias da privacidade urbana e residencial, salientam-se os seguintes temas de estudo.
Importa aprofundar a questão da identificação dos patamares mínimos e recomendáveis de espaciosidade doméstica a partir dos quais, e respectivamente, não haverá problemas críticos de falta de privacidade ou serão possíveis adequadas condições de apropriação espacial, que resultem no apoio ao desenvolvimento individual, através de estimulantes relaçãoes de privacidade mútua no uso do espaço doméstico.
• Em termos dos problemas críticos que há que encarar nestas áreas tipológicas mais inovadoras e que exigem abordagens específicas, podem-se apontar, designadamente, os seguintes:
• A necessidade de uma continuidade de atenção para com os “velhos” aspectos ligados aos níveis mínimos de habitabilidade (7) e aos modos como estes aspectos se ligam às escolhas e caracterizações tipológicas.
• A actual necessidade de novos tipos de habitar; não é já, apenas, a questão das tipologias para pessoas sós, aliás ainda não devidamente considerada, mas também a questão de tipologias para pessoas sós com problemas específicos, como é o caso, por exemplo, dos sem-abrigo.(8)
• A importância de se ponderarem as variadas consequências negativas, para a cidade e para a vida na cidade, associadas à disseminação dos condomínios com espaços exteriores privativos. (9)
• A questão, que continua muito em aberto, do até onde e como se pode/deve ir em termos de uma densificação urbana e habitacional que possa ser positiva para quem habita e para a cidade habitada; e aqui há, provavelmente, que ter coragem em arrostar contra velhos tabus de densidades, mas há que o saber fazer de forma segura e apoiada, pois é sabido que a fronteira é por vezes pouco visível e até ambígua, entre ambientes urbanos calorosos, vitalizados e humanizados e situações de sobre-ocupação e de ausência de uma fundamental agradabilidade residencial.
• E a questão essencial da integração multifacetada do verde urbano, como elemento humanizador e incentivador do conforto; aspecto este que tem exigências específicas e críticas.
Notas:
(3) Elias Canetti, “As vozes de Marraquexe – Notas de uma viagem”, Lisboa, Publicações Dom Quixote, trad. Isabel Ramalho, 1991 (1988), pp. 43 e 44
(4) Publicações Europa-América, Livros de Bolso, Grandes Obras, trad. Carmo Vasconcelos Romão, 1997, pp. 46 e 47
(5) AAVV, “Cuisine, la nouvelle convivialité”, L’Express, Le magazine , 15 Outubro 1998.
(6) Maria Alessandra Segantini, (dir), “Spazi minimi”, 2004.
(7) Valentina Marcelini, “A menina da casa sem janelas”, Expresso, 1 Junho 2002.
(8) Bárbara Lhansol Massapina Vaz,“Célula habitacional para os sem-abrigo”, Arquitectura e Vida, n.º 56, 2005, pp. 28-31.
(9) Francisco Mangas, “As fortalezas dos novos senhores: Como nas cidades da Idade Média”, Diário de Notícias, 23 Junho 2002.
Notas editoriais:
(i) A edição dos artigos no âmbito do blogger exige um conjunto de procedimentos que tornam difícil a revisão final editorial designadamente em termos de marcações a bold/negrito e em itálico; pelo que eventuais imperfeições editoriais deste tipo são, por regra, da responsabilidade da edição do Infohabitar, pois, designadamente, no caso de artigos longos uma edição mais perfeita exigiria um esforço editorial difícil de garantir considerando o ritmo semanal de edição do Infohabitar.
(ii) Por razões idênticas às que acabaram de ser referidas certas simbologias e certos pormenores editoriais têm de ser simplificados e/ou passados a texto corrido para edição no blogger.
(iii) Embora a edição dos artigos editados no Infohabitar seja ponderada, caso a caso, pelo corpo editorial, no sentido de se tentar assegurar uma linha de edição marcada por um significativo nível técnico, as opiniões expressas nos artigos apenas traduzem o pensamento e as posições individuais dos respectivos autores.
Infohabitar a Revista do Grupo Habitar
Editor: António Baptista Coelho
Edição de José Baptista Coelho
Lisboa, Encarnação - Olivais Norte
Infohabitar, Ano VII, n.º 342, 17 de Abril de 2011
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